• Nenhum resultado encontrado

3. ESTRATÉGIAS TERRITORIAIS DE REPRODUÇÃO CAMPONESA

3.1 COMUNIDADE GANGORRA

Existem alguns motivos de escolha e fatores levados em consideração para a análise da comunidade Gangorra74. Os principais motivos foram: trabalho

predominantemente familiar; alto grau de permanência (mesmo temporária) de jovens na comunidade após concluírem o ensino básico; atividades predominantemente agrícolas; casas fechadas e sítios aguardando o retorno do proprietário, fato indicador de migração como processo existente e a ser analisado.

Em Gangorra nosso olhar era aquele que tínhamos em relação ao Vale do Jequitinhonha e ao pouco que havíamos conhecido de Itinga, um olhar de fora e de

73 É interessante notar que o objetivo de qualquer forma de territorialização é fazer cumprir a

reprodução social de determinado grupo. No caso do campesinato temos o conhecimento dos conflitos gerados nesse processo. Em Itinga, verificamos, desde a formação daquele campesinato até os dias atuais, o processo de territorialização em meio a conflitos; representados de forma mais intensa pela expansão das grandes fazendas pecuárias e os embates com os camponeses.

74 A comunidade Gangorra foi uma das comunidades visitadas devido ao contato inicial estabelecido

com um dos filhos de camponeses da comunidade e posterior convite para conhecê-la. Após verificarmos a impossibilidade de visitar e de tratar de todas as comunidades de Itinga (55 no total), notamos a necessidade de focarmos em uma. Dentre as comunidades visitadas, foi Gangorra que mais chamou-nos a atenção e tornou-se a comunidade/objeto de análise para esta pesquisa.

longe. No olhar de perto e de dentro encontramos compatibilidades com o conhecimento prévio e, em maior parte, particularidades. Vimos na comunidade aquilo que tanto líamos nos livros: a apropriação individual das grotas e coletiva das chapadas. Forma secular de apropriação da natureza adotada pelos camponeses do Vale do Jequitinhonha, contribuindo para a reprodução das famílias camponesas. Entretanto, poucas comunidades e famílias camponesas, em Itinga, ainda contemplam e fazem parte dessa realidade. Notamos ainda, a intenção de manter preservadas as chapadas e a vigilância para ninguém prejudicar esse ambiente (espaço), em especial, em referência aos seus recursos hídricos. Deparamo-nos, a partir das conversas, com a dinâmica migratória diferente daquela que conhecíamos. Dessa forma, analisaremos a composição e forma espacial da organização familiar na comunidade para compreendermos como ocorre a territorialização desse campesinato.

***

Essa é nossa Gangorra, vale que vale, vale dizer, vale conhecer, vale saber que aqui se construiu e constrói a cada dia um novo parágrafo desse nosso jeito singular de viver75

.

A comunidade Gangorra localiza-se a cerca de 50 km da sede do município de Itinga. Atualmente compõe-se por nove famílias nucleares, das quais oito possuem laços de parentesco e uma veio de fora, estabelecendo-se na comunidade após comprar a terra. Existem, porém, dez propriedades, tendo em vista que, mesmo fora, uma família mantém sua propriedade na comunidade.

A partir da pesquisa de campo, entendemos como se deu a formação da comunidade Gangorra, foco de análise em nosso trabalho.

De acordo com as entrevistas e a partir da análise dos laços de parentesco entre as famílias, soubemos que as terras no entorno da Gangorra pertencem, principalmente, à família de Antônio Muquicho. Muquicho é um dos herdeiros daquelas terras, fazendo parte da segunda geração de donos. Os filhos de Laurentino (filho de Muquicho) narraram que as terras eram de seus bisavôs (pais de Muquicho) e foram passadas por herança para alguns filhos (não se sabe quantos). Muquicho deixou como herdeiros cinco filhos, dos quais, Laurentino e

Dalva76 mantiveram a posse da terra. Laurentino passou as terras por herança a

seus filhos e Dalva ainda tem sua posse. A maioria das famílias da comunidade são herdeiros de Laurentino, controlador da maior parte das posses de seu pai, comprando o direito de dois irmãos.

O caminho entre os dois herdeiros foi diferente. A terra de Laurentino, somada aos direitos que havia comprado dos irmãos, foi dividida entre seus filhos; já a terra de Dalva, mais uma parcela ganha na Justiça77, não foram divididas entre seus filhos, criados fora da comunidade, em Araçuaí. Dessa forma, Dalva se diferencia dos moradores da comunidade, primeiro por não morar lá e, segundo, por ter ―grande‖ porção de terra78e ainda pagar para que trabalhem nela. Assim, mesmo sendo dona de parte das terras que eram de Muquicho, não é considerada como integrante da comunidade.

As nove famílias da comunidade conseguiram suas glebas de terra da seguinte forma: uma foi vendida por Antônio Muquicho para Dona Domingas; uma diz respeito a apropriação por uma posseira (Dona Dú, parente de Dona Domingas); cinco são de filhos de Laurentino79 e uma de sua já citada irmã;80 e, por último, uma

que diz respeito à compra por pessoas de fora (um casal de aposentados), de um dos herdeiros de Laurentino. A figura 8 reproduz a comunidade, com o desenho das estradas e das casas e seus respectivos donos.

76 Não se sabe o tamanho das terras de Muquicho, citamos Laurentino e Dalva pelo fato de que a

geração atual descende de Laurentino e por Dalva ainda possuir um dos direitos da comunidade (Dalva é a única filha viva de Muquicho).

77 Parcela de terra de Muquicho que estava em disputa com um fazendeiro que se dizia ser dono

daquele pedaço de terra.

78 Na expressão de Sr. Reinaldo: ―ter a maior força das terras que era de Muquicho‖. 79 Uma é da viúva do filho de Laurentino, que mora com o atual marido e um filho. 80 A irmã de Laurentino, Dalva, mora em Araçuaí.

Figura 8 – Mapa mental da comunidade Gangorra.

Alex (morador de Gangorra, filho de Dona Pretinha) desenhou a Comunidade para compreendermos a distribuição das casas e propriedades em seu interior.

De acordo com o desenho, temos:

 Casa 1 é de Dona Dalva, filha de Antônio Muquicho;  Casa 2 é da viúva de um dos filhos de Laurentino;

 Casas 3, 4, 6 e 7 são dos herdeiros de Laurentino, respectivamente Tião, Preta (esposa de Reinaldo), Antônio e Zé81;

 Casa 5 é de João Friagem, externo ao grupo familiar, comprou a terra de outra família também de fora da comunidade, adquirente do direito de um dos herdeiros de Laurentino;

 Casas 8 e 9 são de Dona Dú e Domingas (possuem laços de parentesco), tendo Dú tomado posse da terra e Domingas comprado um pedaço da terra de Antônio Muquicho, antes de sua morte.

A única família sem laços de parentesco é a de João Friagem (mora com a mulher, ambos aposentados). A filha de Dona Dú casou-se com Tião, filho de Laurentino82, estabelecendo com os Muquicho laços de parentesco.

Há outros vínculos de parentesco interpretados incompletamente, pois até mesmo alguns moradores da comunidade têm dificuldade em explicar. Entretanto, entendemos que Antônio, filho de Laurentino, é casado com Anunciada, cunhada de Dona Domingas. Assim como uma filha de Laurentino, Dona Gerinha (que saiu da comunidade), é casada com Zé Antônio, primo de Anunciada, mulher de Antonio, irmão de Dona Gerinha.

Os membros das famílias de Dona Dú e Dona Domingas83 casaram-se com

filhos de Laurentino, estabelecendo laços de parentesco entre as famílias. Tal entrelaçamento entre famílias camponesas nos remete ao ―princípio do casamento próximo‖. De acordo com Woortmann (2009):

81 Alex fez o desenho baseando-se nas casas e famílias que atualmente moram na comunidade.

Porém, existe mais um herdeiro de Laurentino, este migrou, mas ainda possui seu direito. Referimo- nos à Dona Gerinha que encontramos quando realizávamos o segundo trabalho de campo, ela e seu marido começaram a construir uma casa em seu direito. Isso será trabalhado em relação às migrações.

82 Deixamos claro quais são os laços de parentesco das famílias para, posteriormente, entendermos

as redes de relações sociais que compõem o processo migratório e, ainda, para compreender a constituição dos territórios-redes.

83 Dona Dú e Dona Domingas possuem laços de parentesco, entretanto, não conseguimos saber

O casamento preferencial é aquele entre primos, mas pode ser também entre vizinhos, mesmo que não haja laços de sangue [...] Acrescenta-se ao princípio do casamento próximo a prática do ―casamento trocado‖, ou seja, literalmente a troca de irmãs, e o casamento de dois ou mais irmãos de uma família com duas ou mais irmãs de outra. São práticas muito comuns em grupos camponeses do Brasil e da Europa [...]. (WOORTMANN, 2009, p. 231).

Na perspectiva das análises de Woortmann (2009), percebemos a estratégia para não fracionar demasiadamente a terra: o casamente entre vizinhos, entre duas famílias centrais. A partir desses laços, essas famílias se transformaram em uma comunidade e sua delimitação são as propriedades e famílias que a compõem, estritamente ligadas a terra e aos laços de parentesco. O fato de Zé Friagem não ser parente de ninguém e mesmo assim sua família ser considerada da comunidade, deixa claro que, além dos laços de parentesco e de proximidade, fazem parte do reconhecimento de ser da comunidade a condição de ―ser igual‖ (pequeno) e as relações de sociabilidade no trabalho, como, por exemplo, as trocas-de-dias, o uso comum das chapadas, a participação nas festas e o convívio do dia-a-dia. As famílias criaram um código camponês, manifestação de sua territorialidade, ou seja, aquele que adentra a comunidade deve inserir-se nesse modo de vida, assim a terra não será vendida a um desconhecido. A terra é concebida como patrimônio familiar e zela-se para que não ocorra a sua venda para alguém de fora.

A concepção da terra como patrimônio da família é latente nas entrevistas que realizamos com os moradores da Gangorra. Alguns dos jovens, quando discorriam sobre a divisão da terra e venda daqueles que migraram, frisavam a vontade de mantê-la sob o domínio familiar. Assim,

[...] não se vê a terra como objeto de trabalho, mas como expressão de uma moralidade; não em sua exterioridade como fator de produção, mas como algo pensado e representado no contexto de valorações éticas. Vê-se a terra, não como natureza sobre a qual se projeta o trabalho de um grupo doméstico, mas como patrimônio da família, sobre a qual se faz o trabalho que constrói a família enquanto valor. Como patrimônio, ou como dádiva de Deus, a terra não é simples coisa ou mercadoria. (WOORTMANN, 1990, p.12).

Entre os filhos de Laurentino, herdeiros, a posse da terra corresponde a ter um direito. Essa concepção decorre do fato de que as terras não estão separadas juridicamente (por meio de documentos), são terras no ―bolo‖, o herdeiro não possui o documento da terra, mas sim o seu direito.

Além disso, ainda de acordo com Woortmann (1990), a terra como patrimônio familiar é transmitida com o saber do processo de trabalho, tornando-a terra de

trabalho. Observamos essa concepção em diversos trechos da narrativa de Dona

Joanita, por exemplo: ―Eu agradeço muito a Deus porque pai ensinou nós a trabalhar [...] a profissão que deu pra gente foi muito bom. Ensinou trabalhar e ser honesto‖ (Entrevista com Joanita, jan. 2014).

Em relação a seu cunhado, Reinaldo, marido de Dona Pretinha, Dona Joanita diz ter sido seu pai que o ensinou a trabalhar na roça, pois não sabia sequer roçar manga, pois em um único dia quebrou cinco foices. Ensinar o trabalho na roça para Reinaldo era condição necessária para passar o direito da terra à filha, já que a roça é vista como o lugar de trabalho do homem. Passa-se o direito de trabalhar na terra e não apenas a terra como um recurso econômico.

Diante da importância da terra para a família, notamos que a venda para alguém de fora do contexto familiar só ocorre quando o herdeiro se encontra em situação de necessidade e nenhum dos irmãos pode comprar o seu direito. Não encontramos nenhum caso de o herdeiro vender seu direito antes de sair ou para sair da comunidade, o que há são casos em que depois de sair ter ocorrido a venda por necessidade. De acordo com os camponeses, vender a terra é a pior escolha.

Durante o segundo trabalho de campo, em janeiro de 2014, tivemos a oportunidade de entrevistar duas herdeiras que moram fora. Uma havia vendido seu direito ao irmão (Sr. Zé) e a outra manteve o seu. Joanita, a herdeira que vendeu seu direito, narra o quanto se arrependeu por tê-lo feito. ―[...] vendi ai eu fiquei sem lugar. Porque foi preciso eu vender. O homem ainda vendeu pra Zé de lá, por telefone. [...] eu arrependi de ter vendido, e muito! Agora não tem pra onde voltar‖84

(Entrevista com Joanita, jan. 2014).

Há mais herdeiros que venderam seus direitos: dois venderam para o mesmo irmão que comprou de Joanita e um para uma família de fora da comunidade. Todas as vendas foram realizadas em função das migrações, não para migrar, mas para os sujeitos se manterem no lugar de destino (construir casa etc.). Há também casos como os de Dona Gerinha e Antônio que migraram, mas não venderam seus direitos.

84 Dona Joanita quando vai à comunidade fica um pouco na casa de cada um dos seus irmãos que lá

Com a venda da terra de alguns herdeiros, além de desagregação do patrimônio familiar (quando se vende para alguém ―de fora‖), algumas mudanças podem ocorrer nas relações no interior da comunidade, sejam elas causadas pela chegada de alguém externo ou pelo aumento dos direitos de um herdeiro que os comprou de seus irmãos e assim aumentou sua posse.

Ao caminharmos pela comunidade observamos que a maioria das trilhas, tanto as que levam para cada propriedade quanto as que são utilizadas para cortar caminho em direção à estrada, passa por dentro de todas as propriedades, com exceção daquela que leva à propriedade de João Friagem, e, também, não há trilha que ligue a propriedade dele com a de qualquer outro membro da comunidade. Dessa forma, entendemos que isso é um forte fato simbólico de diferenciação dessa família em relação aos outros moradores da comunidade.

A propriedade dessa família é considerada, pelas demais, como somente dela. Já as demais posses, mesmo que cada herdeiro possua seu direito, tendo limites definidos para o uso da terra, cada parcela é vista como partes integrantes de uma herança, como patrimônio familiar, e, com isso, pode até mesmo haver a concessão do uso da terra de uma família à outra. As famílias que não são de herdeiros de Laurentino adentram essa relação por meio dos vínculos criados a partir do casamento com os herdeiros.

Por outro lado, o aumento dos direitos por um dos herdeiros parece acarretar algumas mudanças nas relações de trabalho entre as famílias. São mudanças substanciais como, por exemplo, na dinâmica de troca-de-dias e no trabalho-a-dia85.

Entretanto, esse fator não faz desse herdeiro um forte ou diferente em relação ao modo de vida camponês, mas fez com que passasse a ter outra posição dentro da organização da comunidade.

A partir desse ponto de vista, em relação ao aumento dos direitos, notamos que a compra de terra parece não ser viável para as famílias da comunidade, mesmo ao seu redor, tendo em vista que seus limites esbarram nas grandes e médias propriedades86. No âmbito da própria comunidade, sem que ocorra a saída

de algum dos seus membros, pois cada herdeiro possui o equivalente à cerca de dez hectares, a divisão impossibilitaria a permanência com condições dignas de

85 Elas serão analisadas no subitem a seguir.

86 Uma tem o plantio de café como principal atividade e nas outras se destaca a pecuária e o

reprodução. Caso alguma família migre, parece-nos que o herdeiro que já possui a maior parte dos direitos seria o único que poderia comprar, fato que aumentaria a diferenciação interna entre as famílias da comunidade e poderia alterar de forma intensa as relações de sociabilidade.

A transmissão da terra por herança feita por Laurentino para todos seus filhos foi possível devido ao fato de o tamanho de sua posse suportar tal divisão, de acordo com a quantidade de membros herdeiros. Veremos, mais adiante, a influência desse fato nas migrações.