• Nenhum resultado encontrado

1. VALE DO JEQUITINHONHA: FORMAÇÃO HISTÓRICO-GEOGRÁFICA E

1.2 RUPTURAS ESPAÇO-TEMPORAIS DO TERRITÓRIO CAMPONÊS E

Primeiramente, refutamos os estudos que consideram as migrações dos camponeses do Vale do Jequitinhonha como estritamente ligadas à estagnação da fertilidade do solo, em desacordo com o que propomos. É o caso, por exemplo, das análises de Ribeiro e Galizoni (2006), para os quais a

[...] migração, sazonal ou definitiva, está relacionada à terra. Mas, não tanto às condições de propriedade, porque o domínio da terra é incontestável na maioria das comunidades rurais. Migração é associada, principalmente, às condições de produção, ao meio ambiente e sua capacidade de suporte, à sustentabilidade da exploração, à reprodução da população. (RIBEIRO & GALIZONI, 2006, p. 5).

Com essa interpretação, os autores naturalizam as migrações e adentram a ciranda da, para usar os termos de Moura (1988), aliança entre rótulos e números, principal sustentáculo dessa ideia. Os autores elaboram a análise fundada no ―esgotamento e fertilidade da terra‖ e, ao assim fazerem, reforçam a pobreza

ideológica da terra (MOURA, 1988). Tal análise, de certa forma, naturaliza processos

sociais. Para nós, as migrações definitivas e temporárias estão estritamente ligadas aos desdobramentos do processo de modernização agrícola implantado no Vale do Jequitinhonha, transformando muitos camponeses em força de trabalho necessária para viabilizar a reprodução do capital em outras regiões do país, bem como empurrá-los para as periferias das cidades, aumentando as fileiras dos desempregados e dos subempregados. Assim, de acordo com Silva (1999), não houve tão somente a transformação mecânica do camponês em bóia-fria, pois se tornar errante foi o destino daqueles para os quais a expulsão da terra culminou em migrações definitivas.

A reprodução desse campesinato, realizada prioritariamente na unidade familiar, tendo como principais espaços as grotas individuais e as chapadas de uso comum, apropriados a partir de uma forma especifica ou no interior das fazendas como agregados, moradores etc., rompeu-se concomitantemente a criação do Vale do Jequitinhonha enquanto região geográfica, em vistas a sua incorporação no rol do desenvolvimento econômico do país. Dessa forma, a modernização da agricultura ocasionou a ruptura do território camponês formado no Vale do Jequitinhonha antes mesmo de sua conformação enquanto região.

Essa ruptura, espaço-temporal, do território camponês por vezes ocasionou sua desterritorialização, implicando em reterritorializações precárias para aqueles que permaneceram nas grotas, nas cidades vizinhas ou nas grandes cidades. Implicou, também, na formação daquilo que Haesbaert (2012) chama de ―aglomerados de exclusão‖, aproximando-se do processo de exclusão-inclusão precária (SILVA, 1999) vivenciado pelos cortadores de cana nos alojamentos das usinas.

Para Martins (1988, p. 45), a migração temporária impõe ao sujeito migrante o viver em espaços geográficos diferentes e a dilaceração temporal das contradições sociais, fato que imprime no sujeito o sentimento de desenraizamento ou não pertencimento a lugar algum, ideia próxima da existência do processo de desterritorialização20. O autor separa os migrantes temporários em sete tipos.

Desses, grande parcela dos camponeses do Vale do Jequitinhonha se encaixam na condição de:

Trabalhadores rurais que migram temporariamente para outras zonas rurais em busca de trabalho, que aproveitam os períodos de entressafra de suas próprias lavouras para trabalhar na safra de outros produtos, em outras regiões. São geralmente, pequenos proprietários, pequenos arrendatários, parceiros ou foreiros. É o que ocorre com os pequenos produtores do Agreste pernambucano e da região nordeste de Minas Gerais. (MARTINS, 1988, p. 47).

20 Para Haesbaert (2012), a desterritorialização é uma das ―características centrais do capitalismo‖ e

da modernidade ―[...] seja pelos processos de acumulação, com a aceleração do ciclo produtivo pela transformação técnica e paralela reinvenção do consumo, seja pela dinâmica de exclusão que joga uma massa enorme de pessoas em circuitos de mobilidade compulsória na luta pela sobrevivência cotidiana‖. Segundo o autor, há duas formas de interpretação da desterritorialização: ―uma, a partir dos grupos hegemônicos, efetivamente ―globalizados‖ e outra, a partir dos grupos subordinados ou precariamente incluídos na dinâmica globalizadora‖ (HAESBAERT, 2012, p. 22).

A migração de muitos camponeses do Vale do Jequitinhonha teve (e ainda tem) como destino o Estado de São Paulo, para o corte da cana de açúcar21.

Entretanto, não é necessariamente a expansão dos agrocombustiveis que ocasionaram essas migrações, mas sim a ligação entre o processo de expropriação ocorrido no Vale do Jequitinhonha e o aumento da demanda por força de trabalho para o corte da cana. Com o decreto de criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975, a demanda por força de trabalho teve salto extraordinário. Para suprir essa demanda, as usinas paulistas enviavam agenciadores para o recrutamento de trabalhadores no Vale do Jequitinhonha, com muitas promessas em relação ao trabalho e, principalmente, ao salário. Após certo tempo não foi mais necessário os encarregados da usina se locomoverem até o Vale para o recrutamento dos trabalhadores. Surgiu o gato, trabalhador da própria região e de mesma origem dos demais trabalhadores, cuja função era a seleção dos trabalhadores, como também, informá-los sobre a data e local da partida, tendo destino principal os municípios do interior paulista, onde se concentram as unidades sucroalcooleiras.

Mais do que isso, Silva (1999) explica a importância do papel do gato tanto no processo de agenciamento dos trabalhadores quanto no alojamento e no trabalho do corte da cana. O gato geralmente era o cortador de cana conhecedor do serviço, aparecendo como exemplo a ser seguido, pois conseguiu, por meio do trabalho árduo, o cargo ocupado. A ideia central é demonstrar para os demais trabalhadores a possível mobilidade social por meio do trabalho pesado, tendo na figura do gato o exemplo de possível melhoria nas condições de trabalho e salário (SILVA, 1999, p. 208-209).

Outros mecanismos também foram criados para extrair a mais-valia dos trabalhadores, como a criação do bom e do mal cortador de cana, sendo vergonhoso ser considerado mal cortador. Assim, todos se esforçavam ao máximo para aumentar a sua produção, chegando ao limite de sua força física; com isso instaurou-se a disputa desleal, utilizando-se da concorrência e da humilhação como forma simbólica para aumentar a exploração do trabalho.

21 A migração dos sujeitos pesquisados para o trabalho temporário varia no tempo e no espaço.

Durante anos essa dinâmica ligava atividades agrícolas na propriedade familiar com atividades agrícolas em outros estados (ou mesmo em Minas Gerais), em diversos tipos de monoculturas. O trabalho era voltado em maior parte para a cultura que estaria em ascensão, o que não indica necessariamente a inexistência de trabalhadores que se dirigissem para atividades diversas.

Além dessas formas de coerções simbólicas, há outros meios de extração da mais-valia, como, por exemplo, a forma de pagamento pelo trabalho baseada no pagamento por produção. Sobre o pagamento por produção, Silva (1999) discorre:

Trata-se de uma forma de salário mais vantajosa ao capitalista uma vez que a intensidade do trabalho não depende dos investimentos em capital constante, mas do próprio trabalhador. É um salário que reforça as diferenças de habilidade, força, energia, perseverança dos trabalhadores individualmente, provocando diferenças nos seus rendimentos e o estabelecimento de concorrência entre eles. Esta competição estimula o aumento da intensidade do trabalho e, consequentemente, da produtividade. (SILVA, 1999, p. 86).

Os mecanismos de exploração não cessam por aí, pois além de instaurar a disputa, em muitos lugares a usina coloca numa lista a quantidade de cana cortada por trabalhador na ordem decrescente, dos que cortam mais cana para os que cortam menos. Nessa lista todos podem ver o desempenho do companheiro de trabalho, fato que aumenta a pressão para o aumento da produtividade. Dessa forma, além da violência expressa pela tomada de suas terras no lugar de origem, esses camponeses sofreram, concomitantemente, a violência de mudança cultural em seu modo de vida, na forma de trabalho, em seus costumes. Silva (1999), sobre a violência imposta a esses sujeitos, argumenta:

O tempo cíclico marcado pelos momentos de plantar e colher e definidor do tempo de trabalho foi substituído pelo tempo linear, capitalista das usinas e fazendas do Estado de São Paulo. O tempo, agora, é compreendido pelo tempo da migração forçada, especialmente a temporária, mediante a permanência nas fazendas e usinas durante quase 9 meses ao ano. (SILVA 1999, p. 58).

O trabalho familiar que no Vale acompanha o ciclo da natureza é substituído pelo trabalho no canavial ditado pelo ritmo linear do capital. Além de tantos mecanismos para extrair a mais-valia dos trabalhadores, esses também acabam por intensificar cada vez mais o trabalho, pois estão interessados em ajudar financeiramente a família que ficou na terra.

As migrações para o corte da cana, interpretadas como temporárias pelos dados estatísticos, teriam datas marcadas para saída e retorno, sendo consideradas migrações cíclicas. É interessante a análise que ultrapassa o entendimento de migrações temporárias tendo em vista sua permanência no tempo e espaço dos sujeitos envolvidos, dinâmica tratada por Silva (2001) como partidas

permanentemente temporárias. Dessa forma, para a autora, os migrantes

temporários estão inseridos no permanente ir e vir.

Para Cavalieri (2010, p. 218), as condições de reprodução das famílias de camponeses-migrantes do Vale do Jequitinhonha têm como causa a dupla expropriação a que esses sujeitos estiveram submetidos, qual seja, por um lado a perda da terra de uso comum e a consolidação da fazenda e do monocultivo de eucalipto e, por outro, a exploração da força de trabalho no corte da cana. A autora22 interpreta as práticas cotidianas das famílias camponesas como parte integrante de um tempo ordinário composto por aquilo que é corriqueiro e está inserido na normalidade; podemos entender o tempo ordinário do campesinato como a indissociação entre tempo de vida e tempo de trabalho. Já o trabalho dos homens no corte da cana, regrado pelo tempo linear do capital, em um mundo da mercadoria e da produção, é interpretado como o tempo do Extra-ordinário. Compreende-se a existência de um tempo ordinário e outro Extra-ordinário apontando para a ambiguidade vivenciada por esses sujeitos: ora camponeses, quando estão no Vale do Jequitinhonha com suas famílias, ora assalariados, quando estão nos canaviais paulistas.

Na mesma direção, em outro trabalho que realizamos23, entendemos tal

ambiguidade vivenciada em tempos e espaços diferentes, a partir da análise do trabalho camponês e do trabalho assalariado como contraditórios e complementares, uma vez que o camponês migrante (temporário) se assalaria no corte da cana, tal assalariamento, contraditoriamente, permite a permanência da família em seu território e assegura a sua reprodução social enquanto camponês.

A dinâmica do deslocamento para o corte da cana aparece como a principal forma de migração dos camponeses do Vale do Jequitinhonha, é, de longe, a mais analisada por pesquisadores, por ser, também, a atividade para qual se destinava a maioria dos migrantes temporários.

A partir do referido trabalho (BERSANI, 2012), foi possível compreendermos melhor a dinâmica da migração e do trabalho para/no corte da cana realizado pelos camponeses do Vale do Jequitinhonha. Como também, a partir de então,

22 Sua investigação versa sobre as estratégias de reprodução social das famílias de camponeses

migrantes cortadores de cana. São famílias camponesas de duas comunidades rurais localizadas no município de Araçuaí.

23 BERSANI, A. R. S. Trabalho familiar versus trabalho assalariado: os camponeses do Alto

Jequitinhonha-MG e o trabalho no corte da cana em Mirandópolis-SP. Monografia (Especialização em História e Sociedade) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, 2012.

entendemos que há dinâmica especifica em relação ao processo migratório para o trabalho no corte da cana: a migração temporária e todos seus meandros. Também há diferentes dinâmicas quando o processo envolve outras formas de migrar. Nessa perspectiva, quando nos referimos a camponeses-migrantes é preciso ponderar e destacar as diferenciações existentes no processo migratório e as mudanças em curso.

As migrações dos camponeses do Vale do Jequitinhonha persistem no tempo e no espaço, assim como, também, persiste a permanência desse campesinato. Nessa perspectiva, as migrações forçadas pelo avanço do capitalismo no campo se tornaram estratégias de reprodução social das famílias camponesas, no processo envolvendo os que partem e os que ficam e, por isso, não podem ser entendidas como um fim em si, ainda mais quando destacamos a diversidade existente no que diz respeito a essa dinâmica e às condições sociais dos sujeitos nela envolvidos. Em outras palavras, mesmo o campesinato do Vale do Jequitinhonha sofrendo diversas modificações em sua organização interna, juntamente com mudanças nas dimensões cultural, econômica e política, muitas famílias permanecem no campo, assentadas em um modo de vida camponês. Com o fim do corte manual da cana anunciado, as migrações, por muito tempo realizadas para essa atividade, já não fazem mais parte da principal dinâmica do processo migratório desses sujeitos.

Para compreender as novas dinâmicas do processo migratório, tendo em vista as mudanças ocorridas no espaço rural brasileiro e o findar do corte manual da cana de açúcar, analisaremos as especificidades de determinado contexto socioespacial: o município de Itinga, lócus de nossa pesquisa, para integrar a análise microestrutural das migrações ao panorama analisado nesse capítulo, entendido como macroestrutural.