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3 A CONCEPÇÃO DE REDE NA PSICOLOGIA SOCIAL

3.2 O Conceito de Comunidade

A crescente decomposição dos vínculos comunitários que representam a integração social e as relações de solidariedade é atribuída, segundo Honneth (2003), ao processo de modernização social. Comunidade e sociedade, segundo o autor, eram minimamente diferenciados até o início do século XX. Na história do homem – considerado criatura política – ocorrem diferentes formas de união social e concentram- se nisto diferentes porções de amizade e de direito indicando diversas expressões de uma comunidade ou sociedade.

O termo koinonía que origina a comunidade abarca, sem descrever os diversos graus de homogeneização, todas as formas de socialização do ser humano fundadas no acordo, como a promessa e o contrato, e nas formas ‘naturais’ de convívio da tribo, da família, da comunidade. Comunidade costuma ser vinculada aos bons sentimentos de acolhida.

O conceito de comunidade adquire conotação politizada a partir da crise moral deflagrada pela sociedade industrial ao opor-se à idéia liberal de sociedade, já que se referia a relações afetivas mais poderosas que as existentes nas relações de direito. A publicação de “Comunidade e Sociedade”, de Ferdinand Tönnies, em 1887, citada por Honneth (2003), de algum modo, inaugura o debate sobre a comunidade, compreendida como forma de socialização, na qual os sujeitos relacionam-se atingindo um acordo tácito que repercute em atitudes de aprovação em razão da proximidade geográfica ou defesa de valores; já o termo sociedade, ainda para Tönnies, se refere a considerações objetivas e racionais do conjunto, em proveito individual.

Entretanto, após a segunda guerra mundial, o conceito praticamente desaparece, renascendo nos últimos anos, provavelmente ainda com nuances de oposição ao termo

sociedade.

Atualmente, um dos sentidos atribuídos à comunidade é que se constitua um grupo solidário que preserve os sujeitos do isolamento social. Para Honneth (2003), nesta perspectiva, está “a idéia de que um processo histórico provoca uma individualização crescente e que só se pode remediar essa evolução descobrindo novas fontes de vínculos entre os sujeitos ou revitalizando antigas fontes, como as religiosas” (p. 292). Deste modo, os sujeitos têm uma necessidade de apoio incondicional de um grupo, não estando definido o tamanho deste.

Comunidade é um conceito do qual a Psicologia também se apropriou. No Brasil, Lane (2000b) menciona que a Psicologia Comunitária nasce na década de 70, como caminho alternativo, através do conhecimento da realidade social, visando a uma transformação consciente, pela participação dos indivíduos. Assim, alicerçados pela Educação Popular, realizavam-se atividades junto a trabalhadores e seus familiares, buscando a constituição de uma comunidade. Além disso, constatava-se que as relações grupais propiciavam, frente a situações sociais comuns, a troca entre as pessoas, oportunizando a superação do individualismo. A autora ressalta que “a expressão Psicologia Comunitária já era consagrada, porém, com forte conotação de paternalismo, rechaçada por todos aqueles que lutavam pela autonomia e consciência social” (p. 60).

Recentemente, a noção de comunidade retorna e se caracteriza como uma escola de pensamento chamada comunitarismo, que se preocupa e intenta priorizar a comunidade tanto quanto a igualdade e a liberdade, afirmando que a comunidade não precisa ser construída, mas ser respeitada e protegida. Esta crítica, proveniente do

comunitarismo, é dirigida ao liberalismo moderno que apenas reforçaria o apego comum aos valores, ou até mesmo quer criar valores para serem seguidos.

Igualmente Bauman (2003) concorda que o termo comunidade vem sendo reativado à medida que nos encontramos trilhando um mundo cada vez mais privatizado e individualizado. Reitera que o entendimento comunitário, compartilhado por seus membros, está pronto, é tácito, porque é sem palavras, e é um ponto de partida para a união, precedendo os acordos e os desacordos, distinguindo-se do consenso, que é fruto de negociações, disputas entre pessoas que têm posicionamentos divergentes. Ele enfatiza que há um preço a pagar por este pequeno sonho, mas que é pago ao abrir mão da liberdade, ou a chamada “autonomia”, “direito à auto-afirmação” e “identidade”, termos que hoje se transformaram em valores; deste modo, toda e qualquer escolha requer perder e ganhar algo.

A segurança e a liberdade são dois valores importantes e desejados, porém dificilmente ajustáveis, pois são incompatíveis neste momento histórico. Ao eleger a segurança, inevitavelmente renunciamos a liberdade, a exemplo de condomínios fechados, grades, zeladores, circuitos informatizados de identificação de pessoas. Em contrapartida, optar pela liberdade pode ser temerário por não contar com tais dispositivos de proteção. A questão da segurança é mundialmente debatida em função do agravamento da violência, contando, inclusive, com pressupostos em rede, a serviço do controle, da centralização de informações advindas de uma rede complexa.

O entendimento compartilhado ou “círculo aconchegante” que existe na comunidade é, como afirmava Tönnies (citado por Honneth, 2003), tácito e é vivido como natural. Sabe-se qual é o seu contorno do início ao fim; ela comporta algumas condições – como ser pequena e seus moradores se conhecerem –, é auto-suficiente, suprindo as necessidades das pessoas que fazem parte dela. “A pequena comunidade é

um arranjo do berço ao túmulo” (Bauman, 2003, p. 16). Contando com esta perspectiva, ela tende à “mesmice” por não promover a experimentação e a crítica. No início da era industrial, houve uma tentativa desesperada de fazer ressurgir aquela habilidade natural que artesãos e os demais trabalhadores demonstravam na interação comunitária anterior. Construiu-se a “ética do trabalho”, no ambiente impessoal da fábrica, utilizando ordem, a vigilância e punição.

Nestes termos, Bauman (2003) expõe o século XIX como sendo de grandes deslocamentos, desencaixes e desenraizamentos. “Os homens e mulheres deviam primeiro ser separados da teia de laços comunitários que tolhia seus movimentos, para que pudessem ser mais tarde redispostos como equipes de fábrica” (p. 33). Trava-se uma desorientação no que diz respeito aos laços sociais ao serem subjugados a novos interesses político-econômicos. Genealogicamente, podemos considerar que, mesmo alcançado, “o acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas e das escolhas feitas no curso delas. Por mais firme que seja estabelecido” (p. 19). No ocidente, a ênfase na palavra identidade parece trazer a compensação da comunidade que protege das intempéries do lá fora. Assim como comunidade significaria a possibilidade de retorno ao lar, nenhuma delas está à disposição enquanto nos privatizamos e individualizamos rapidamente diante da globalização.

Encontramos ainda uma diferenciação, exposta por Berlinck (1999), entre relações sociais comunitárias, em que há ausência de individualismo, ao contrário das relações sociais societárias que remetem a uma associação com regras mais flexíveis. Tanto a mobilidade social, como os deslizes das regras institucionalizadas, estão prévia e rigidamente estabelecidos na comunidade, que aplica punições que são conhecidas por todos, minimizando desta maneira, o espaço da liberdade pessoal. Complementando a

noção de comunidade, o autor resgata que as populações massacradas têm longa tradição comunitária.

Vemos que a comunidade “naturalmente” constituída era considerada muito poderosa. A suposta interação e os acordos tácitos tiveram que ser, de alguma forma, destruídos, ou seja, ao ritmo regulado pela natureza, como nas lavouras, pelas tradições e pela espontaneidade permitida no familiar, foi imposto um ritmo coercitivo, artificialmente planejado e controlado, como nas fábricas. Neste advento do capitalismo, a emancipação de alguns exigia a opressão de outros. Segundo Bauman (2003), os tempos atuais nos mostram que há uma “tentativa muito menos consistente (e adotada tardiamente) de ressuscitar ou criar abnihilo um ‘sentido de comunidade’, desta vez dentro do quadro da nova estrutura de poder” (p. 36).

Já com outro significado – não presencial – o termo comunidade virtual tem sido usado para exprimir a forma de comunicação de um grupo de pessoas, o que se iniciou na década de 90 com as trocas de e-mail. Utiliza a informática e, amiúde, é amplo, criando um tipo particular de vínculo social, à distância e em tempo real, mediado pelo computador. Hoje ganhou, e seguirá ganhando, vários formatos como ICQ, Orkut, Skype, MSN Messenger.

No entender de Santos (2002), dos três princípios de regulação social – o mercado, o Estado e a comunidade – esta última foi a mais negligenciada nestes 200 anos, a ponto de ser praticamente absorvida pelo Estado e pelo mercado. Sendo assim, é o princípio menos atingido por determinações e pelo utopismo técnico-científico e o mais aberto para que se produza a emancipação.

Na comunidade, está reservado, por ora, o espaço das diversidades em que não cabem intervenções regidas por especialismos, pois o próprio fato de ter sido

marginalizada e esquecida lhe conservou a solidariedade. É um lugar possível para o encontro das imagens topológicas, de sociabilidade e analítico-institucional.