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5 ESTRATÉGIAS PARA TECER UM CONHECIMENTO SOBRE REDES

5.2 Um Recorte do Contexto e da História dos Participantes Crianças e Adolescentes

Na elaboração da questão que fez emergir a construção desta tese, cabe lembrar os múltiplos atravessamentos que perpassam a concepção de redes. Devido ao contato

com crianças e adolescentes na trajetória profissional e, mais especificamente, na extensão universitária, por mais de seis anos, delineio este campo no tempo e no espaço, considerando a importância de tal acompanhamento junto às atividades voltadas para este estudo.

O trabalho de extensão se inicia na comunidade, designada como vila, em 1995, a partir da constatação de que muitas (8,7%) crianças e adolescentes que realizavam trabalho infantil pediam esmolas e circulavam no centro da cidade de São Leopoldo. Elas provinham desta localidade, como mostra a pesquisa publicada pelo Programa de Apoio a Meninos e Meninas (PROAME). Os objetivos do estudo estavam centrados no propósito sócio-educativo em meio aberto, previsto pelo ECA.

O Projeto de Extensão, diante destas condições, buscava oferecer espaços lúdicos e educativos com atividades diversificadas, que objetivavam trabalhar com a cultura, a cidadania, os aspectos afetivos, resgatar as histórias dos participantes, da família, do lugar, conhecer e se apropriar do ECA, privilegiando o trabalho grupal, a dialogicidade e a efetiva participação. As atividades eram coordenadas por estudantes dos diferentes cursos de graduação e supervisionadas por professores das áreas de Psicologia, como eu, de Serviço Social e Educação Física.

Houve, neste Projeto de Extensão, uma constante preocupação em articular as propostas curriculares e acadêmicas às políticas públicas voltadas à infância e adolescência, nacionalmente vigentes desde 1990. No entanto, historicamente o município era visivelmente omisso em relação à planificação e execução de qualquer cuidado neste setor.

Ao mesmo tempo, por tratar-se de um município do eixo coureiro-calçadista, a economia e a mão-de-obra estiveram sempre ligadas a este mercado que tanto empregava

operários, como contratava serviços que envolviam o trabalho infantil. Isto causou a migração de pessoas vindas de outros municípios e, inclusive, de outros estados, para a região, como contou a mãe de um menino participante do projeto: “Vim com minha mãe, meu padrasto e meu irmão. Daí eu comecei a trabalhar logo em uma fábrica de calçado. Sim, na colônia, o pequeno não tem chance lá fora”.

Utilizo a referência a este tipo de trabalho no passado verbal, por ter sido acompanhado de um forte declínio e crise do setor, na década de 90, que trouxe como decorrência o desemprego, constituindo, nesta época, um agravamento dos problemas sociais nos municípios atingidos. Alguns dos fatores como concorrência internacional, política econômica, interesses comerciais, conflitos partidários e falta de investimentos, são levantados como causas da crise que perdura até hoje.

Nesta comunidade, muitas famílias prestavam serviços nestas condições: As crianças e os adolescentes trabalhavam em casa confeccionando partes do calçado. O trançado de calçados denominado trisset – muito desvalorizado na remuneração de sua confecção e valorizado na comercialização – é feito tanto por adultos como por crianças que contribuíam com a renda familiar, muitas vezes deixando os estudos e outras atividades, dizendo: “Hoje não posso ir ao Projeto porque tenho que trabalhar” ou “esta semana vou fazer chaveiros”. A remuneração deste ofício sempre correspondeu a baixos salários, para adultos e crianças, além de envolver, em alguns processos, produtos tóxicos como solventes e colas, e ferramentas cortantes.

Na última década, tivemos deste modo, ausência de políticas públicas, aumento considerável do desemprego que se acentua na região – em relação ao país por suas especificidades – e o crescimento desordenado da cidade. Com isso, intensifica-se o processo de desafiliação principalmente junto às populações em situação de maior

vulnerabilidade social como no caso da infância, adolescência e juventude. Hoje, mais do que o trabalho mal remunerado, se põe à vista o desemprego.

As crianças e os adolescentes que fizeram parte deste estudo situam-se neste contexto. A defasagem escolar, repetência, evasão, falta de escuta, as carências afetivas, a carência econômica, o adoecimento e a violência, estão presentes na vida de muitas delas, conforme levantamentos realizados.

Considerado o período até o final do ano de 2005, a escola na qual estão vinculadas carece de condições em sua infra-estrutura para representar um diferencial na vida de seus estudantes. Há precariedade no espaço físico, constante e prolongada falta de professores, uma equipe diretiva e pedagógica restrita sem profissionais para o acompanhamento e escassa capacitação docente por parte dos órgãos responsáveis, não há acesso à informática para seus alunos, além de violência que vai desde agressões até o porte de armas e de drogas por parte de alunos. A mãe de um participante relata: “Não fico sossegada enquanto ele está na escola porque tem muita violência lá, e eles não dão conta”. A situação de violência é freqüentemente apontada como relevante fator de evasão escolar, de rotatividade de professores e de faltas à escola pelo receio dos pais de que seus filhos sofram agressões quando há brigas entre gangues.

Sendo esta uma escola de 1ª a 8ª séries, a educação infantil, prevista pela primeira vez no Brasil na Lei de Diretrizes e Bases (LDB 1996), é oferecida na vila, através de uma creche comunitária que possui convênio com a prefeitura; atende a uma parcela mínima de crianças, havendo sempre uma extensa lista de espera para novas matrículas. Não há pré-escola para crianças de 4 a 6 anos, ainda que o ECA, no artigo 53, preveja o direito à educação para crianças de 0 a 6 anos de idade como responsabilidade do Estado.

O ingresso da maior parte das crianças nesta escola, para a 1ª série, é direto, sem terem passado pela educação infantil. Em um trabalho de acompanhamento dos processos de ensino-aprendizagem junto às séries iniciais, realizado no Projeto de Extensão em parceria com a escola e com familiares, observaram-se graves dificuldades no processo de alfabetização, que remetem a este conjunto de circunstâncias.

A Unidade Básica de Saúde (UBS) igualmente apresenta condições físicas ruins, com falta e ausência de profissionais, falta de equipamentos e medicamentos de acordo com o que necessitaria, diante das demandas desta população. “Vou direto ao postão, porque aqui é muito difícil de conseguir atendimento”, diz outra mãe. Além disto, não há serviços para crianças que realizem atendimentos em saúde mental, exceto em um projeto de extensão universitária.

O direito ao lazer está comprometido quanto ao acesso a bens públicos que ofereçam cultura, esporte e lazer. “Eu faço o serviço de casa, depois jogo bola na rua”, conta uma participante; não há praça, canchas para esporte ou qualquer outro tipo de local adequado para o convívio comunitário. As igrejas de diferentes orientações religiosas são um dos poucos espaços de encontro, juntamente com a Associação de Moradores, em precárias condições, que também sediava o Projeto de Extensão. Outros aspectos, geradores de exclusão social também verificados são, moradia, falta de saneamento, desemprego, falta de segurança, precariedade na coleta e separação de lixo.

Para os objetivos desta tese, busquei aqui traçar uma rede partindo de um recorte topológico, mais cotidiano, por onde as pessoas, especialmente crianças e adolescentes, circulam. Considerando isto, a rede aqui referida é vislumbrada como decorrência da articulação de políticas públicas que envolvem alguns dos direitos fundamentais do ECA, nas áreas como saúde, educação, convívio familiar e social, largamente apontados nas