• Nenhum resultado encontrado

6 TRABALHANDO COM A PRODUÇÃO DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES

6.2 A Construção de Redes de Relações e a Posição de Observador

6.2.1 Painéis: Uma Confecção em Rede

Ao longo da confecção de painéis realizados coletivamente que retratassem as referências nas situações educação, saúde e relacionamentos, através de desenhos e escrita, as falas de dois subgrupos foram gravadas. Estas, transcritas, nos aproximam de como se posicionam, percebendo-se na rede, e como percebem o outro – as imagens como projeções de um lugar ocupado.

Vive-se como ser humano participando, ao mesmo tempo e sucessivamente, de muitas conversações, como afirma Maturana (2002). “Nossa existência comunitária efetiva se move na medida em que a frente mutável de uma rede de conversações na qual

diferentes coordenações de ações presentes e futuras imbricadas se entrelaçam com diferentes fluxos emocionais consensuais” (p. 284).

Estas redes ganham especificidades em seu teor nos diferentes sistemas de coexistência, gerando vários tipos de redes de conversação. Ele exemplifica, para maior compreensão, algumas das possíveis conversações: De ações presentes e futuras, de queixas e desculpas por acordos desfeitos, de desejos e expectativas, de mando e obediência, de caracterizações, atribuições e avaliações, de expectativas não correspondidas, e de co-inspiração, entre outras que poderiam ser traçadas. Neste percurso de análise, as redes de conversação podem ser tomadas como circuitos perpassados por atravessamentos institucionais, como veremos.

No primeiro grupo – transcrição da gravação durante a realização do painel coletivo A saúde vinculada à idéia de “eu vou fazer um hospital... vou fazer uma cama aqui que é do hospital” traz a imagem do observador que está atrelada à imagem topológica, o local de tratamento. Saúde, em geral, é igualada à doença, sendo esta última a referência maior. A saúde fica em seu pólo oposto, pois ainda não se constituiu um olhar para ela, e sim para a doença: “eu vou fazer um médico puxando um doente”. Novamente evade a saúde.

Levando em conta que, até o advento do SUS, a saúde era completamente centralizada e não representava um direito de todos, aparece “um médico dando injeção num doente”, e outra fala repete que “tem que desenhar o hospital”. A figura do médico e do hospital revelam a síntese do que as crianças e os adolescentes entendem como saúde e que se encontra cristalizado. “Escreve saúde no hospital e o médico fazendo uma cirurgia”. Este instituído mostra uma força de conservação que coloca a saúde como

instituição em tensão, de um modelo convergente e centralizador para um modelo de saúde integral e em rede de atendimento.

Quanto ao lugar em que se situam como observadores, posicionam-se autorizando-se algumas escolhas: “Eu não quero desenhar; quero escrever”, o que é rebatido com outra posição “todo mundo tem que desenhar”.

Durante o trabalho, não ocorre a simples obediência, ou submetimento ao outro, pois todos continuam participando ativamente; no entanto, a atitude em alguns momentos é autoritária e desqualifica a produção do outro conforme se captou: “O que tu tá fazendo, meu? Apaga isso!” e “ele só estraga, não avacalha”. Este pequeno diálogo traz um laivo de emoção e de individualismo que cessa por instantes a produção conjunta havendo na conversação um entrelaçamento de negação recíproca e de auto-negação, pois correspondem, obedecendo ao pedido do outro, confirmando sua superioridade – mesmo que momentânea. Retomam, perguntando: “Tu consegue fazer um médico fazendo cirurgia?”, “Acho que não”.

Nas imagens de sociabilidade, vemos o oscilar do encontro e desencontro, o que não quer dizer que se interrompam os fluxos, porém percebe-se que são modulados a cada momento nesta relação do pequeno grupo.

A rede na qual se vêem inseridos no âmbito da saúde está circunscrita a uma lógica médico-hospitalocêntrica, significando possível delegação hierárquica de poder.

No mesmo grupo, na situação educação, as falas são: “Eu vou fazer um computador” e “vou fazer uma professora escrevendo no quadro”. Inclui-se nestas imagens topológicas o instrumento computador, mesmo que estes adolescentes não o encontrem na escola. “Coloca aí do lado uma professora e um quadro”. Mostra que há uma busca por organização, e as coordenações de ações e emoções encaminham o desejo

de alcançar algo em comum, através da conversação de co-inspiração em que prevalecem o respeito e a dignidade mútuos que, neste caso, prioriza o critério de habilidade individual: “Ele desenha a professora porque ele sabe desenhar bem, e eu desenho o quadro” ou “não precisa fazer perfeito”.

“Por que tu não vai fazendo o teclado do computador?”, “por que fazer computador?”, podem ser pensadas como imagens em construção: “No computador, tem que colocar que é estudo”. Esta afirmação tanto pode mostrar que ainda não há clareza a respeito do significado de computador vinculado a estudos, como se pode perceber que um adolescente coloca o outro no lugar de atender a sua solicitação através de conversações que têm como base emocional reclamações e expectativas: “Vai escrevendo aí, senão, não vai dar tempo”, “tu não colocou procurar o médico? Coloca assim, procurar o médico”, “escreve assim: Lugares que eu procuro quando preciso”, ao que o outro responde: “aqui que eu escrevo saúde?”, “É”. “Casa, amigos, vizinhos” são as referências que constaram no painel. Vemos a sua ligação com as imagens topológicas, como a moradia e as pessoas próximas.

No segundo grupo – transcrição da gravação durante a realização do painel coletivo Iniciam definindo os desenhos para a situação educação e saúde: “Oh, aqui a gente faz uma professora e uma biblioteca”, “aqui vai ser o de saúde porque o D. já está desenhando”. Uma pequena rede de interações segue-se quando combinam: “Eu desenho a professora”, “eu desenho a biblioteca”, “eu pinto”, “não! Tu desenhas a professora e eu a biblioteca, tá?”, “tá, eu adoro, obrigada!”.

Parece estar acordado o conteúdo do que será representado no desenho; o que é colocado em questão são as ações, para as quais se posicionam dialogando e buscando as possíveis afinidades.

Na seqüência: “Dá oi para o gravador” e “não me filma não, porque ‘ele’ já tá me gravando!”. No diálogo sobre as relações com as pessoas: “É convivência porque é a mesma coisa”, “é relação”, “convivência é a mesma coisa que relação”, “bota entre parênteses a relação”. Escapa um palavrão e a exclamação: “Ai, meu Deus... vão escutar”. O fluxo da atividade é entrecortado pelos sentimentos que a filmagem e a gravação suscitam junto à discussão que se desenrolava.

Riem e falam em tom de brincadeira sobre um casal beijando-se para desenhar a convivência-relação. Cantam: “Tanto faz, é você quem determina, tanto faz, vai de álcool ou gasolina” e “redondo é o sol, redondo é o prazer, eu tenho uma skol”. Mescla-se um

jingle de propaganda de bebida alcoólica, cerveja, veiculada na televisão. Entre o grupo,

uma rede de linguajar se estende e, neste trajeto, se encontram atravessamentos da mídia, que tendem a reproduzir, neste caso, lugares instituídos em que a mulher é vinculada a prazer, sendo o outro visto como ‘objeto’.

Concomitantemente, está disposto em lei, pelo ECA, no art. 79, que revistas e publicações destinadas aos jovens não poderão fazer menção a bebidas alcoólicas. Entretanto, diariamente os diferentes meios de comunicação de massa os divulgam. Neste atravessamento institucional – mídia – se evidencia a contradição, no país, entre legislação e prática cotidiana, denotando que políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes foram de encontro com as políticas da comunicação.

“Tem que escrever, né? Alguém escreve aqui no nosso”, “este casal está discutindo a sua relação que estava quase acabando, daí eles conversaram e vão conviver

juntos novamente”, “por causa dos seus filhos”, “pois tinham os filhos pra criar”. A família, nesta ilustração, se compõe como a família afetiva de hoje, que está centrada no cuidado dos filhos, idealmente reproduzida, pois se sabe que 28% (IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) das famílias brasileiras estão sendo ‘chefiadas’ por mulheres. A família diminuta é oriunda do projeto moderno e sobre ela recai a responsabilidade sobre os filhos. As falas seguem: “...e acharam melhor ficar juntos, pois tinham os filhos para criar, e cada criança tem direito a ter uma família e dever de respeitar os pais”. Cabe registrar que estas crianças já tiveram atividades que trabalharam com o ECA e se apropriaram deste pressuposto, posicionando-se. Por outro lado, vemos como atravessamento institucional da família tradicional – o conceito de família não se restringe a pais e filhos, e é amplamente discutido que novas configurações familiares existem junto à tradicional.

Na apresentação dos painéis – transcrição da gravação durante a apresentação dos painéis coletivos

“Sem o estudo ninguém consegue nada no futuro. O estudo é importante para a vida”. A frase dita sobre os estudos remete a um conceito que reproduz a educação como um valor, ao passo que as políticas públicas educacionais se mostram muito aquém para concretizar boa qualidade no ensino. Com “Saúde é muito importante, sem saúde ninguém vive” e “Hospital, saúde”, afirmam a saúde como algo importante, mas imediatamente, também neste grupo, está relacionada a hospital.

Na apresentação do painel, comentam: “A gente botou aqui, que no estudo computador e, na saúde, o médico fazendo cirurgia. Tu aprendendo tudo pelo computador”!

As imagens de redes topológicas e redes de sociabilidade estão imbricadas, há uma intersecção entre saúde e educação. No desenho feito, onde está a tela do computador/educação, aparece uma figura de cirurgia/saúde.

Outro grupo apresenta que “é muito importante cuidar no trânsito... Na escola os alunos, quando saem, é perigoso, os carros pegam e atropelam eles”. Oferecem uma visão de risco e cuidado. A escola situa-se na avenida principal, única via asfaltada, em que carros e ônibus trafegam em alta velocidade. É uma lembrança que explicita uma contextualização e, por sua abrangência, pode levar à dimensão de coletividade.

Outras falas: “é importante cuidar da natureza... porque muita gente corta as árvores, daí os passarinhos não têm como, não tem nenhuma sombra...”; “aqui é sobre poluição” e “é sobre os índios... porque muitos índios já morreram por causa do frio e da alimentação”, denotam a posição de observadores que se posicionam reconhecendo no outro alguém destituído de direitos.