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CONCEITO E ORIGEM DA EXPRESSÃO FUNÇÃO SOCIAL DA

CAPÍTULO 6. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

6.3. CONCEITO E ORIGEM DA EXPRESSÃO FUNÇÃO SOCIAL DA

O princípio de proteção à propriedade encontra raízes na cultura nacional, como reflexo, afinal, de toda influência das nossas origens civilizatórias. Afirma-se, tradicionalmente, como o faz Carlos Alberto BITTAR, que a propriedade é elemento essencial ao desenvolvimento do ser e de sua família, meio de possibilitar o alcance das metas individuais, familiares e sociais.224

222 LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978, p.78. 223 LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1978 p.79.

224 BITTAR, Carlos Alberto. O direito civil na Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 153-

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Segundo estudos, nos primórdios da humanidade, a propriedade confundia-se com a esfera imediata do trabalho humano, mantendo assim relação direta com a menor ou maior capacidade de cada indivíduo na apreensão dos recursos naturais. No direito romano, a propriedade adquire pleno caráter absoluto e individualista.225

Em sua longa trajetória evolutiva, o direito de propriedade teve, na doutrina liberal de LOCKE, sua inclusão como o mais sagrado e típico dos direitos naturais, que se não dissolvem no pacto social . Cabe lembrar que a organização política e jurídica da sociedade, sob orientação do liberalismo, tinha por fim a limitação do poder, visto como fantasma que atemorizava o indivíduo, segundo expressão de Paulo BONAVIDES, para garantia das liberdades inatas dos indivíduos. A correspondência no campo econômico, do Estado liberal, absenteísta, alheio a iniciativas sociais, servo de um indivíduo supostamente dotado de direitos inatos, é a propriedade como direito inviolável, absoluto, sagrado, do qual ninguém poderia ser privado, senão quando a necessidade pública o exigisse, mediante justa e anterior indenização; neste sentido, deve-se analisar o artigo XVII da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.226

A passagem do Estado Liberal ao Estado Social, induzida por mudanças estruturais em uma realidade de crescentes exigências sociais que aquela ordem não visava a atender, conduziu à nova definição do direito de propriedade. A caracterização da propriedade como direito absoluto foi, portanto, ultrapassada, evoluindo para um sistema de limitações decorrentes de confrontações com interesses públicos. Chegou-se, assim, ao direcionamento da propriedade para cumprimento de uma função social.

A propósito das transformações ocorridas na vida econômica, especialmente pelas mudanças nos modos de exercício da propriedade, com elevação do papel das empresas nesse cenário, bem como pela crescente intervenção e participação do Estado, ensinam Orlando GOMES e Antunes VARELA, em obra escrita ainda na vigência da Constituição Federal de 1967, mas que mantém atualidade:

225 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 226. 226 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado Social. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 163.

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Ora, quando houve essa modificação e começaram as suas conseqüências a se positivar no mundo moderno, um velho conceito que vinha do positivismo fora aproveitado por DUGUIT, nos primeiros anos do século corrente, para introduzir, na propriedade, a noção de função social. Naquela época todos se levantaram entendendo que era contraditória essa noção. Não se imaginava que, poucos anos depois, se chegaria à convicção, hoje generalizada, porque inclusive aceita em várias Constituições, de que a propriedade é uma função social, de que a utilização dos bens para o exercício de uma atividade produtiva não mais pode ser admitida como um direito natural, que se exerce em proveito próprio, para tirar vantagens, porque se assumem os riscos desse exercício. Hoje, a idéia de função social está substituindo a de propriedade como direito subjetivo, ilimitado.227

A determinação da função social do Estado e a necessidade de harmonização dos conflitantes interesses dos titulares do status vivendi, como forma de assegurar a convivência e a cooperação entre os homens, são a chave imediata, na concepção de Herman HELLER228, para compreender os fenômenos estatais que mais problemas apresentam, tais como a soberania, a supremacia territorial, o monopólio coativo etc., problemas estes de alta indagação em um mundo que busca a uniformidade das diferenças mediante a política neoliberal capitalista denominada de “globalização”, com sérias repercussões no que se refere à proteção ambiental e ao desenvolvimento econômico.229

227 A) GOMES, Orlando; VARELA, Antunes. Direito Econômico. Saraiva: São Paulo, 1977, p. 169-170.

B) Sobre considerar a propriedade função e não direito, ver nota nº 217.

228 HELLER,Hermann. Teoria do Estado, trad. de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, , 1968,

p. 245, afirma verbis: “A função do Estado consiste, pois, na organização e ativação autônomas da cooperação social-territorial, fundada na necessidade histórica de um status vivendi comum que harmonize todas as oposições de interesses dentro de uma zona geográfica, a qual, enquanto não exista um Estado mundial, aparece delimitada por outros grupos territoriais de dominação de natureza semelhante”. Assim, esse consagrado jurista e cientista político ressalta que a função do Estado deve ser centrada no ser humano (único com status vivendi pleno), buscando a harmonização dos interesses opostos existentes em determinado território (enquanto não exista um território mundial).

229 Ressalta Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO que "A função social da propriedade urbana, considerada

como fator econômico, é o fundamento de várias modalidades interventivas previstas no Título VII da Constituição. Assim, no Capítulo I, trata-se da intervenção sancionatória nos casos de abuso do poder econômico (art. 173, § 4º), da intervenção expropriatória sobre as jazidas e demais recursos minerais (art. 176) e da intervenção monopolista sobre jazidas de hidrocarbonetos e minerais nucleares (art. 177); Capítulo II, da intervenção ordinatória sobre a propriedade urbana (art. 182 - de que nos ocuparemos a seguir); no Capítulo III, da intervenção expropriatória e ordinatória sobre a propriedade rural (arts. 184 e 190), e, por fim, no Capítulo IV, da intervenção ordinatória sobre a propriedade de ativos financeiros (art. 192). Situa-se, portanto, no Capítulo II, do Título VII, da Constituição, o fundamento para a intervenção econômica, explícita e exclusiva do Município, sobre a propriedade urbana, para execução de suas respectivas políticas de desenvolvimento urbano. O Município é, portanto, a única entidade competente para orientar economicamente a destinação da propriedade urbana em sua circunscrição territorial. Esta é a coerente justificação porque a política urbana se deslocou do Capítulo relativo à Ordem Social para o que dispõe sobre a Ordem Econômica e Financeira: a enfatização de seu aspecto econômico, notadamente como orientador de sua função social específica." (Direito urbanístico e

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Para José de Oliveira ASCENSÃO, intimamente relacionada com a problemática do fundamento do direito real está a da função social deste. Observe-se que também aqui se fala vulgarmente em função social da propriedade, dando ao termo propriedade o significado amplíssimo que já conhecemos, como todo o direito real até todo o direito patrimonial. Desvanecida a ilusão liberal da coincidência dos interesses individual e coletivo, coloca-se com premência a necessidade de assegurar que a propriedade não seja alheada do benefício social. A primeira tentativa nesse sentido foi expressa pela teoria do abuso do direito. Os direitos (e antes de mais nada a propriedade) não poderiam ser exercidos de forma abusiva.230

Em um segundo momento, para o mesmo autor, procura-se a solução em elementos funcionais: os direitos seriam desde logo dominados por considerações finalistas. Surge a noção de direito subjetivo como um conceito funcional que busca a realização pessoal e a utilidade social. Na função social do direito de propriedade haveria funções limitadoras (lei pretende evitar excessos do proprietário) e impulsionadoras (lei age comissivamente na busca de uma melhor utilização da propriedade). Esta distinção é útil para a compreensão do material legislativo; enquanto, no século XIX, a lei quase se limitava a certo número de intervenções de caráter restritivo (direito de vizinhança), no século XX, multiplicaram-se as intervenções impulsionadoras da função social (desapropriação, entre outras). 231

Assim, os elementos conceituais da função social compreendem a limitação da propriedade e a intervenção estatal comissiva para o bem comum.

Vladimir da Rocha FRANÇA, ao estabelecer claramente que a função social da propriedade é um princípio constitucional232, dirime controvérsias:

A propriedade privada e a função social da propriedade, quando encaradas como princípios, se postos no mesmo patamar hierárquico, produzem uma contradição sem solução. Um ou outro assume um caráter acessório, no nosso entender. Optamos por colocar a função social da propriedade como princípio superior ao da

limitações administrativas urbanísticas. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal. a. 27. n. 107, jul./set. 1990. p. 105 e 106).

230 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 1993, p. 190. 231 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Coimbra: Coimbra, 1993, p. 192.

232 O artigo 170 estabelece como princípios da Constituição Federal de 1988 a propriedade privada (inciso I) e a

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propriedade privada, já que é justamente aquela o núcleo de sustentação e estabilidade da instituição da propriedade nos dias atuais.233

Eros Roberto GRAU bem adverte que:

A consagração do princípio da função social da propriedade, em si, tomada isoladamente, pouco significa, a par de instrumentar a implementação de uma aspiração autenticamente capitalista: a de preservação da propriedade privada dos bens de produção - à função social está assujeitada porque é privada. Sua maior relevância se manifesta em sua concreção nas regras do § 2º, do art. 182 - política urbana - e do art. 184 - reforma agrária, esta, seguramente, tão indispensável à realização do fim da ordem econômica quanto à integração e modernização do capitalismo nacional. Não estou, é óbvio, a atribuir desimportância social ao princípio. Pelo contrário, a afetação da propriedade pela função social importa o repúdio da concepção da propriedade exclusivamente como fonte de poder pessoal - poder que não se exerce apenas sobre coisas, mas sobre as pessoas (vide item 9), razão de ser da liberdade visualizada como atributo exclusivo dos beati possidetis. Apenas enfatizo que ela, a função social da propriedade, não porta em si relevância mais pronunciada como cláusula transformadora constitucional.234

6.4. VISÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: UMA PONDERAÇÃO DA