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MODELOS E PRÁTICAS DE INTERVENÇÃO PRECOCE

2. O conceito de Intervenção Precoce

Segundo Shonkoff e Meisels (2000, p. XVII), é possível enquadrar a prática actual da intervenção precoce de acordo com três pressupostos que podemos sintetizar do seguinte modo:

• Todos os organismos têm a capacidade de se adaptar ao seu ambiente e, quer o comportamento, quer o desenvolvimento não são, nem predeterminados, nem geneticamente fixos.

• O desenvolvimento das crianças e jovens só pode ser compreendido num contexto ecológico abrangente: família, comunidade.

• A complexidade das situações em jogo na prática da intervenção precoce determina a necessidade de uma intervenção interdisciplinar.

Podemos considerar que estes três pressupostos, de certo modo, remetem para marcos importantes na evolução da intervenção precoce nos Estados Unidos da América1 ao longo das últimas quatro décadas, até atingir o conceito abrangente que hoje lhe atribuímos.

A certeza de que quer o comportamento, quer o desenvolvimento não são, nem

predeterminados, nem geneticamente fixos, mesmo para aquelas crianças com

situações de atraso de desenvolvimento ou com uma situação de incapacidade, corresponde a um ponto de viragem na compreensão do desenvolvimento, que culminou com a adesão às teorias desenvolvimentais sistémicas e, consequente, ao ultrapassar da polémica nature-nurture. Esta viragem, como vimos no capítulo anterior, tinha começado a emergir, em anos 60, com a divulgação da obra de Piaget nos EUA, que veio abrir a porta aos primeiros programas destinados a crianças com necessidades educativas especiais em idades precoces. O desenvolvimento passou a ser encarado como resultante da interacção entre factores biológicos e factores do meio, tendo como consequência a valorização dos programas que, ao manipularem as condições do meio, contribuíssem para uma optimização do desenvolvimento da criança. Estes são programas com uma fundamentação teórica ainda inconsistente, cujas práticas decorriam de esquemas conceptuais muito diferentes, que iam desde a abordagem psicanalítica, à médico-social, e à comportamental. Destacamos aqueles que são considerados os percursores dos actuais programas de intervenção precoce, os chamados programas de educação compensatória, a que já nos referimos, e que surgiram em meados de anos 60. São, na sua maioria, programas focados na criança e visando, essencialmente, a sua estimulação com o objectivo de prevenir ou remediar atrasos a nível do desenvolvimento. No entanto, marcam um ponto de viragem importante e, entre eles, destacam-se programas de grande qualidade com características mais abrangentes, como o Head-Start, anteriormente citado. A década de 60 é justamente considerada por Meisels & Schonkoff (2000), como aquela que assinala a entrada da intervenção precoce na era moderna.

Como vimos anteriormente, os programas que surgem em anos 70 revelam uma preocupação crescente em envolver crianças com deficiências ou incapacidade e em contar com a participação dos pais, para que estes, sob a orientação dos profissionais,

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Citamos a Intervenção Precoce nos EUA, pois este país tem sido, desde meados de anos 60, quer em termos teóricos, quer organizativos, legislativos, ou a nível das práticas, a grande referência nesta área. Tivemos já

colaborem na estimulação dos seus filhos. Predominava uma perspectiva funcional e utilizavam-se técnicas e estratégias que se enquadram no modelo behaviorista. Em muitos programas havia, ainda, a preocupação de proporcionar aos pais várias formas de aconselhamento ou apoio, que frequentemente se concretizava na participação em grupos de pais. Este modelo foi posteriormente contestado por se considerar ser um modelo paternalista, que desvalorizava a competência dos pais podendo, ainda, por em causa as relações pais-criança, levando os pais a esquecerem o seu papel de pais ao assumirem com demasiado zelo o de “professores” dos seus filhos. Acresce, ainda, o facto de poder ser culpabilizante para os pais que não tivessem disponibilidade, real ou psicológica, para assumirem esse papel. Foi, no entanto, um passo importante, pois veio, pela primeira vez, dar aos pais um papel activo na intervenção. Como uma referência de qualidade entre os programas que surgiram nesta altura, destacamos o Program Portage para Pais, que temos analisado noutros textos (Almeida, 1989, 2000a; Almeida, Felgueiras, Pimentel & Morgado, 1991 a, b; Almeida, Felgueiras & Pimentel, 1997) e ao qual voltaremos no capítulo da avaliação em intervenção precoce.

Regressando, então, aos três pressupostos de Shonkoff e Meisels (2000), acima enunciados verificamos, que a conscencialização e a progressiva assimilação à prática da intervenção precoce dos dois restantes – o protagonismo da família e da comunidade e a necessidade de uma intervenção transdisciplinar - só se dá posteriormente como resultado da reflexão sobre as práticas desses primeiros programas, da avaliação dos seus resultados e da gradual assimilação em termos teóricos de modelos transaccionais e ecossistémicos (Turnbull & Turnbull, 1986; Sameroff, 1975, 1983, 1995; Sameroff & Fiese, 1990, 2000; Bronfenbrenner 1979, 1989, 1995; 1998; Bronfenbrenner & Morris, 1998). Progressivamente, vai-se tornando cada vez mais clara a necessidade de contextualizar as intervenções e de proceder a um alargamento do enfoque dos programas. O reconhecimento de que a resposta às necessidades da criança, passa pela promoção da qualidade de vida do conjunto da unidade familiar integrada no seu contexto social, levou à substituição de um modelo de intervenção centrado na criança por um modelo centrado na família e na comunidade e de uma abordagem focada na criança e, maioritariamente, monodisciplinar, por um modelo integrado de prestação de serviços transdisciplinar e interserviços.

Um contributo fundamental foi o do Modelo dos Sistemas Sociais de Dunst (1985), de que nos ocuparemos no capítulo IV, e que veio enfatizar o papel central da família, chamando a atenção para as diferentes formas de apoio eficaz prestado no âmbito alargado da comunidade e visando a promoção das competências da família como

forma de optimizar a sua interacção com a criança, melhorar a sua auto-estima e promover, quer o desenvolvimento da criança, quer uma melhor inclusão da criança e da família na vida da comunidade.

Nos últimos anos, principalmente a partir da década de 90, temos vinda a assistir ao emergir de uma preocupação convergente, dos teóricos e investigadores nesta área, incidindo na necessidade de salientar o papel fulcral do processo interactivo criança-meio envolvente a nível do desenvolvimento e de privilegiar práticas que tenham em conta as interacções da criança com os prestadores de cuidados e outros com quem tenham oportunidade de interagir nos seus contextos de vida, a par das interacções da família com a sua rede de apoio na comunidade. Esta evolução, que se tem vindo a traduzir naquilo que Dunst (2000b) designa como a terceira geração de programas de intervenção precoce, aparece principalmente enquadrada, em termos conceptuais, no modelo bioecológico de Bronfenbrenner (Bronfenbrenner & Morris, 1998), ele próprio uma evolução do seu modelo anterior, pela ênfase que põe nos processos próximos e nas características da pessoa em desenvolvimento, assim como na perspectiva transaccional de Sameroff (Sameroff & Chandler, 1975; Sameroff & Fiese, 1990, 2000) e no pensamento de Lerner e Wachs, de que nos ocupámos no capítulo anterior.

Antes de passarmos a uma reflexão mais aprofundada sobre o conceito e práticas actuais em intervenção precoce, queremos fazer uma breve referência ao enquadramento legislativo, que foi acompanhando o evoluir da intervenção precoce nos Estados Unidos e que foi fundamental pela forma como balizou e suportou as práticas. Realçamos apenas, os principais marcos legislativos e apresentamos um quadro-resumo. Começamos por destacar a PL 90-538, de 1968, “Handicapped

Children’s Early Education Assistance Act” que, ao providenciar fundos para o

desenvolvimento de programas destinados a crianças com deficiências ou incapacidade em idades precoces e aos seus pais, abriu as portas à implementação de programas de intervenção precoce.

Outro marco importante foi a publicação, em 1975, da Public Law 94-142, que veio reconhecer o direito a uma educação pública e adequada num meio natural, não restritivo, às crianças com necessidades educativas especiais, a partir dos 6 anos. Previu também, o desenvolvimento de Planos Educativos Individualizados (PEI), que pressupunham já a participação dos pais e realçavam a importância dos serviços destinados a crianças dos 3 aos 6 anos, providenciando incentivos financeiros à implementação de respostas para as crianças desta faixa etária.

A publicação, em 1986, da PL 99-457, veio alargar o âmbito da legislação anterior (PL 94-142), passando, na sua parte H (actualmente renomeada parte C), a abranger a população dos 3 aos 6 anos com carácter de obrigatoriedade e a recomendar a sua aplicação à população dos 0 aos 3 anos. Esta legislação de 86, põe ainda a tónica na coordenação interserviços e no papel da família e requer, também, caso a família o deseje, a elaboração de um Plano Individualizado de Apoio à Família (PIAF), ao qual voltaremos mais tarde. Foi uma legislação que constituiu um marco importante para a consolidação de um modelo abrangente para a intervenção precoce, ao instituir o direito das crianças com necessidades educativas especiais (NEE), bem como das suas famílias, ao acesso a serviços de intervenção precoce, públicos, individualizados, coordenados, multidisciplinares e interserviços, dando enquadramento legal a uma prestação de serviços holística e integrada.

Em 1990 a legislação anterior foi reautorizada (PL 101-576) sob a designação de

Individuals with Disabilities Education Act (IDEA) e, no ano seguinte, nova

reautorização (PL 102-119), vem modificar a parte H, que se passa a designar Parte C, e vem requer aos Estados o desenvolvimento de serviços abrangentes de intervenção precoce para crianças com NEE do nascimento aos 3 anos e suas famílias, utilizando pela primeira vez o termo ambientes naturais1, como sendo os mais indicados para desenvolver a intervenção. Em 1997/98, a nova reautorização da IDEA (PL 105-17), contempla, na parte C, a obrigatoriedade de prestação de serviços de intervenção precoce para crianças até aos 3 anos, com atrasos de desenvolvimento ou incapacidade, enquanto que, a parte B, requer que os estados providenciem uma educação pública e adequada às crianças com incapacidade dos 3 aos 5 anos. No que diz respeito à parte C, a lei requer, ainda, que seja garantida, no PIAF, a prestação de serviços em ambientes naturais, tais como a casa da criança, até ao limite apropriado em função das necessidades da criança e exige, caso tal não suceda, que isso seja justificado no PIAF. Numa regulamentação posterior, de Setembro de 2000, refere-se que se prevêem excepções e que a prestação de serviços noutros cenários para além dos ambientes naturais pode ser necessária em determinadas condições, embora tenha de ser devidamente justificada, cabendo a decisão à equipa que desenvolve o PIAF. Acrescenta-se, ainda, que as necessidades dos pais não são uma justificação para colocar a criança num programa não inclusivo (Bricker, 2001).

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A legislação designa como ambientes naturais os cenários que são normalmente frequentados por criança da mesma faixa etária sem problemas de desenvolvimento, tais como a casa, a creche, o jardim-de-infância ou outros cenários da

Uma última reautorização da IDEA, a PL 108-44, DEC. 3, 2004, intitula-se

“Individuals with Disabilities Education Improvement Act of 2004”. Na parte C, que

contempla a intervenção precoce, preconiza uma definição rigorosa de atraso de desenvolvimiento, uma detecção e avaliação precoce e abrangente, a ser conduzida por uma equipa multidisciplinar, um sistema de intervenção precoce abrangente, coordenado, multidisciplinar e interserviços e uma formação e supervisão adequada dos profissionais. Encoraja, ainda, os estados a expandir as respostas às situações de risco de atraso de desenvolvimento.

SÍNTESE DOS PRINCIPAIS MARCOS LEGISLATIVOS NOS EUA RELATIVOS AO APOIO A

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