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A contribuição da perspectiva sistémica para uma melhor compreensão da família

PAPEL DA FAMÍLIA NA INTERVENÇÃO PRECOCE: A INTERVENÇÃO CENTRADA NA

ECOLÓGICO FACTORES DE RISCO FACTORES DE PROTECÇÃO

4. A contribuição da perspectiva sistémica para uma melhor compreensão da família

Dentro da teoria geral dos sistemas (von Bertalanffy, 1968), a família surge como um sistema aberto, uma vez que permite trocas de energia e informação com o exterior. Como tal, obedece a uma série de princípios que partilha com os outros sistemas: (i) a família é um conjunto organizado de elementos interdependentes; (ii) qualquer acção que se exerça sobre um dos elementos afecta os restantes; (iii) a família tem características homeostáticas1 (tanto nas suas rotinas diárias, como nos aspectos sociais e emocionais) que mantêm a estabilidade dos seus padrões interactivos, de acordo com o princípio da equifinalidade2; (iv) a evolução e a mudança são inerentes ao sistema familiar; (v) o sistema familiar é composto por sub-sistemas separados, que se organizam de acordo com regras e padrões de interacção próprios (Minuchin, 1985, cit. Cornwell & Korteland, 1997; Pearl, 1993; Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988).

Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), propõem um enquadramento do sistema familiar que permite uma melhor compreensão e intervenção junto das famílias com crianças com NEE. Este enquadramento distingue quatro componentes que devem ser tidas em conta ao desenhar uma intervenção: os recursos da família, a interacção da

1 Qualquer acção provoca uma reacção que visa reencontrar o equilíbrio, desta forma, um estado transitório de

desequilíbrio pode conduzir a um ajuste que permita um funcionamento mais saudável da família.

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família, as funções da família e o ciclo de vida da família e que estão esquematizados

na figura 16.

R ecu r so s d a F A M ÍL IA

C ar ac ter ís tic as da NE E C ar ac ter ís tic as da fa mí lia C ar ac ter ís tic as pe sso ais

F u n ç õ es d a F A M ÍL IA E c onó mic as D o més tic as e d e c uidado s de sa úde R ec r eio S oc ializaç ão A fec to

A uto- iden tida de E duc ac iona l/ voc ac iona l

F ig u ra 1 6 . Q ua d ro c o nc e p t ua l d o s is te m a fa m ilia r (A d a p ta d o d e B a rb e r, Tu r nb u ll, B e h r & K e rns , 1 9 8 8 ).

C ic lo d e v id a d a F A M ÍL IA

E stadio s de sen vo lvi me n tais Mu da nç as es tr u tur ai s Mu da nç as func ionais Mu da nç as soc iohis tór ic as E xtra F a m ilia r C o n ju ga l F r a te rn a l P a re n ta l C o e s ã o IN P U T S O U T P U T S A d a p t a ç ã o In t er ac ção d a F A M ÍL IA P R O C E S S O Os recursos da família

Dizem respeito às características e forças disponíveis nas famílias e que podem ser utilizados para responder às suas necessidades, bem como às do seu filho com NEE. Cada família tem os seus recursos próprios, que têm de ser considerados no processo de intervenção. Os profissionais podem ter aqui um papel importante ajudando a família a identificar os seus recursos. Entre os recursos da família os autores distinguem:

· As características da NEE – que se referem ao tipo e severidade da NEE da criança. É um facto que este pode ser um factor de stress adicional para as famílias, principalmente no caso das situações mais graves, mas este efeito pode ser contrabalançado por outros factores provenientes, quer do exterior, quer dos recursos da própria família. Como afirmam Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), uma identificação correcta das fontes de stress e uma intervenção que proporcione à família informação completa sobre a natureza e implicações das NEE do seu filho, a par de uma ênfase no desenvolvimento de atitudes positivas, podem ser factores determinantes para o bom funcionamento da família.

· As características da família – entre as quais se contam: a sua composição, o número de elementos, o seu nível socioeconómico, as suas referências culturais

e a sua localização geográfica. Estas, têm uma influência grande na forma como a família responde às vulnerabilidades da criança com NEE e podem ser potenciais recursos que a ajudam a lidar com a situação. Mais uma vez se constata, que todas estas variáveis vão dar lugar a uma grande diversidade de famílias que requerem uma atenção grande dos profissionais de intervenção precoce às suas características específicas e, consequentemente, uma individualização da intervenção. Uma atenção muito particular deve ser dada às referências culturais da família, que podem influencia, nomeadamente, a forma como elas lidam com a situação, como interagem entre si e com o seu filho com NEE, como interagem com os profissionais, as formas como expressam as suas emoções, ou as expectativas que têm. Tudo isto deverá ser cuidadosamente compreendido e ponderado na intervenção, para se conseguirem resultados positivos.

· As características individuais dos elementos da família – estas características influenciam a forma como a família vai lidar com a criança com NEE e podem ser uma fonte de recursos ou, pelo contrário, de limitações. Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), salientam dois tipos de características: (i) as que têm a ver com a saúde física e mental; e (ii) as que têm a ver com as características de personalidade.

Começando pelas primeiras, o bem-estar das famílias, que passa pela existência de boas condições de saúde dos seus elementos, deve ser uma prioridade para os profissionais de intervenção precoce, uma vez que ele vai ser um recurso muito importante, com um efeito positivo no bem-estar e desenvolvimento da criança. Uma intervenção que se foque, apenas, no programa educativo da criança, sem se preocupar se este está, ou não, a ser um fardo excessivo para a família, e que ignore outras necessidades ou preocupações que possam estar a interferir com o bom funcionamento familiar, pode estar votada ao insucesso. Os autores chamam mesmo a atenção para a importância de se questionarem as famílias sobre aquilo que elas estão a fazer para se sentirem bem consigo próprias, como que dando-lhes “permissão” para também terem momentos para se ocuparem com aquilo que lhes dá prazer sem se sentirem culpadas e, deste modo, contribuírem para o seu próprio equilíbrio e saúde mental.

Passando agora a examinar as características de personalidade dos elementos da família, Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), distinguem três aspectos da personalidade, que segundo Pearlin e Schooler (1978, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988), foram identificados como tendo funções de “coping”: a auto-estima, a

auto-desvalorização e a mestria. De facto, enquanto alguns indivíduos sentem que conseguem ter “controle” sobre as suas vidas e que são capazes de lidar com as situações mais difíceis, ou seja, têm sentimentos de auto-estima positiva e de mestria, outros podem sentir-se ultrapassados pela situação e incapazes de desempenhar eficazmente o seu papel de pais. Os profissionais têm aqui um papel importante, ajudando as famílias a encontrar as estratégias de “coping” que melhor se adequam às suas características específicas, ouvindo-as, tratando-as como parceiros, valorizando as suas iniciativas e respeitando as suas opiniões, valores e decisões.

A interacção da família

Tem a ver com os processos de interacções complexas que se estabelecem no interior da família e com os papéis que os diferentes elementos desempenham para ir ao encontro das suas necessidades e das do conjunto da família, tais como: desenvolver as rotinas e tarefas diárias, resolver problemas, planear acontecimentos futuros ou partilhar afecto. Os autores identificam quatro sub-sistemas que se regulam por padrões de interacção próprios, entre si, com os outros sub-sistemas e na forma como lidam com a situação da criança com NEE:

· O sub-sistema conjugal – tem a ver com as interacções marido/mulher, que vão sofrer um stress adicional pela situação do seu filho. No entanto, as reacções variam de família para família e, enquanto alguns estudos atestam a existência de uma taxa mais elevada de divórcios entre os pais de crianças com NEE (Gath, 1977, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988; Tew, Payne & Lawrence, 1974, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988), outros concluem que esta situação contribuiu para reforçar os laços entre o casal (Gath, 1977, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988; Hare, Laurence, Paynes, & Rawnsley, 1966, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988). No entanto, a pesquisa também comprovou, que as mães que estão seguras da sua relação conjugal são mais capazes de lidar com o stress e as responsabilidades acrescidas que a situação lhes provoca (Friedrich, 1979, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988).

· O sub-sistema parental – tem a ver com as interacções pais-filhos. No ponto anterior já tivemos oportunidade de nos deter sobre a questão da importância destas interacções para o desenvolvimento da criança. Mais uma vez, a forma como os pais reagem à presença de um filho com NEE, varia caso a caso. No entanto, as conclusões de um estudo levado a cabo por Gubrium (1972, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988), apontam para o facto de mães e pais mostrarem preocupações diversas. Enquanto as primeiras se focavam mais em

aspectos relacionados com a família nuclear, tais como, os cuidados a prestar à criança, as tarefas diárias e a harmonia familiar, os pais estavam mais preocupados do que elas com a aceitação social, a estigmatização da família, o futuro da criança e os possíveis custos adicionais provenientes da situação. Mais importantes, porém, são os resultados de uma outra investigação, que veio comprovar que o factor que mais influencia as atitudes dos pais em relação à criança é a sua interacção com ela (Darling & Darling, 1982, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988). Cabe, portanto, aos profissionais de intervenção precoce promover interacções gratificantes entre os pais e os seus filhos, fortalecendo a relação entre eles.

· O sub-sistema dos irmãos – tem a ver com as interacções entre os irmãos. São relações muitas vezes difíceis por diferentes razões, tais como, o facto de terem de partilhar a atenção dos pais, terem idades e, eventualmente, sexos diferentes, terem características diversas, ou terem de partilhar espaços e brinquedos. Tudo isto se torna mais complicado quando um dos irmãos tem uma NEE, solicitando um acréscimo de atenção e preocupação por parte dos pais. Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988) referem algumas pesquisas que apontam para reacções negativas dos irmãos, tais como: (i) comportamentos de chamada de atenção (Kew, 1975); (ii) receio de serem eles próprios deficientes; (ii) sentimentos de culpa, vergonha e abandono (Grossman, 1972); e (iv) preocupações com o futuro (McCullough, 1981). Noutros casos, porém, Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988) citam estudos em que se encontraram irmãos que conseguiram adequar- se bem à situação, revelando uma melhor compreensão dos outros, maior tolerância e uma maior valorização da sua própria inteligência e saúde (McMichael, 1971, Schipper, 1959, Grossman, 1972). Os profissionais devem trabalhar no sentido de reforçar esta ligação entre os irmãos, mas, também, terem a preocupação de chamar a atenção e ajudar os pais, muitas vezes absorvidos pela criança com NEE, a responderem às necessidades específicas dos seus irmãos.

· O sub-sistema extra-familiar – tem a ver com as interacções da família ou dos elementos da família, com a família alargada, os amigos, a comunidade e os profissionais. Este sub-sistema pode ser uma fonte muito importante de apoio informal à família, prestando-lhe apoio, informações ou ajuda para cuidar da criança. Porém, no caso das famílias com crianças com NEE, devido à própria problemática da criança ou a uma retracção das famílias, muitas vezes esta rede de apoio é mais reduzida. Nalguns casos, os avós são o principal, ou mesmo o único, recurso com que podem contar. Os profissionais devem estar muito

atentos a este aspecto, pois um bom enquadramento da família, proporcionando o apoio de uma rede de qualidade é essencial o seu bem-estar e, consequentemente, ao do seu filho.

Estes sub-sistemas, como é evidente, não existem obrigatoriamente em todas as famílias, o sub-sistema conjugal não existe, por exemplo, nas famílias monoparentais, assim como o dos irmãos não existe no caso dos filhos únicos. No caso da intervenção precoce, é muito importante que os profissionais estejam atentos a este sistema complexo de interacções, específico de cada família e que no desenho da intervenção tenham em conta os efeitos que ele pode ter na criança.

As funções da família

Dizem respeito às tarefas que a família desempenha para responder às suas necessidades. Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), identificam sete tarefas, ou funções: económicas, domésticas/cuidados de saúde, de recreio, de socialização, de auto-identidade, emocional e educacional/vocacional. Estas funções não são independentes. Por exemplo, a forma como a família resolve os seus problemas económicos vai ter um impacto importante noutras funções. Cada família tem a sua forma própria de se organizar para responder a estas necessidades e a existência de uma criança com NEE pode requerer uma reorganização de todo este processo. Muitas vezes as exigências em termos de cuidados que a situação acarreta vão impedir a família, nomeadamente a mãe, de desempenhar outras tarefas. Outras vezes, surge um acréscimo de despesas com cuidados médicos, terapias, ou transportes, que a família tem dificuldade em enfrentar.

Perante estas exigências ela poderá ter tendência a utilizar duas estratégias: recorrer ao apoio da família alargada, normalmente os avós, dos amigos ou dos vizinhos, para os ajudar nos cuidados e tarefas diárias; e priorizar as necessidades e funções, sendo normalmente enfatizadas as funções económicas, domésticas e de cuidados de saúde, ou seja, aquelas que são necessárias à sobrevivência no dia-a- dia. As funções, em geral mais sacrificadas, são a vida social e as actividades de recreio que, embora não sejam indispensáveis à sobrevivência, são muito importantes em termos de bem-estar. É essencial que os profissionais compreendam bem as necessidades e prioridades da família, para que a sua intervenção em vez de uma mais-valia, não se transforme em mais uma sobrecarga para a família.

Trabalhar as redes de apoio informal é um contributo muito importante, tanto mais que a pesquisa demonstrou serem preferidas pelas famílias, às redes formais

(Brotherson, 1985, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988; Schilling, Gilchrist & Schinke, 1984, cit. Barber, Turnbull, Behr & Kerns, 1988). Outro aspecto, que devem ter em conta, é o de não sobrevalorizarem o programa educativo da criança, sem dúvida muito importante e um alvo legítimo das suas preocupações, sem terem em conta outras necessidades, muitas vezes vitais para o dia-a-dia, que impedem os pais de atribuir importância a esse programa educativo. Nestas situações, é necessário trabalhar primeiro essas necessidades da família, ajudando-a a encontrar e utilizar os recursos formais e informais de que necessita, para, depois, poder estar já mais disponível a fim de participar activamente no desenvolvimento do programa educativo do seu filho.

O ciclo de vida da família

Diz respeito ao conjunto de mudanças desenvolvimentais, que as famílias e os seus elementos experimentam ao longo do tempo (Cornwell & Korteland, 1997). Estas mudanças vão ter repercussões sobre as restantes componentes do sistema familiar: a estrutura da família vai-se modificando, assim como as características dos seus elementos, as interacções que estabelecem entre si e as tarefas ou funções que desempenham. Segundo Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), o ciclo de vida da família pode ser conceptualizado numa série de estadios desenvolvimentais, que têm normalmente como referência a idade do filho mais velho e que incluem: o nascimento da criança, a infância, a idade escolar, a adolescência e a juventude. Em cada um destes estadios as necessidades da família, bem como os serviços que lhe são propostos são, normalmente, estáveis. Embora cada família tenha os seus recursos, áreas de resiliência e factores de risco específicos, a maioria passa por estes estadios e, em cada um deles, apresenta um conjunto de necessidades semelhantes. Nas famílias com um filho com NEE, cada um destes estadios passa a ter implicações particulares, levantando problemas específicos. Isto, tem como consequência, que se torne necessário, no início de cada um deles, um trabalho no sentido de ajudar a família a adaptar-se de novo ao problema da criança e às implicações que traz no dia- a-dia.

Outro aspecto a que é essencial estar atento no desenvolvimento de um programa de intervenção precoce, é o das transições que ocorrem no ciclo de vida da família, uma vez que são sempre momentos de alteração dos hábitos e das rotinas, provocando instabilidade e stress nas famílias. Barber, Turnbull, Behr e Kerns (1988), distinguem: (i) as transições desenvolvimentais, que têm a ver com a evolução em termos do desenvolvimento da criança, com marcos importantes, como por exemplo, o

nascimento, o conhecimento da situação de deficiência da criança, a entrada na creche, no jardim de infância ou na escola; e (ii) as transições não desenvolvimentais, que se referem a mudanças que podem surgir em qualquer momento, sendo portanto menos previsíveis, e que podem ter a ver com a perda de um emprego, uma mudança de residência, a doença grave de um dos elementos da família, um divórcio ou o facto de a mãe passar a trabalhar fora de casa, para dar apenas alguns exemplos. Bronfenbrenner (1986), refere-se a estes dois tipos de transições designando-as como

normativas e não normativas e considera que elas, muitas vezes, servem de impulso

para a mudança desenvolvimental. Porém, para que tal aconteça, estas transições devem, sempre que possível, ser preparadas, pois tornam-se mais difíceis se não forem atempadamente antecipadas através do desenvolvimento de estratégias que permitam manter alguma continuidade entre as diferentes etapas da vida da criança e da família.

Assim, do ponto de vista de uma perspectiva sistémica da família, torna-se claro que a família é uma realidade dinâmica que se vai modificando, apresentando prioridades e preocupações que vão evoluindo ao longo do seu ciclo de vida. Os profissionais e os serviços devem, portanto, ser suficientemente flexíveis para serem capazes de mudar e dar as respostas adequadas em cada momento. Da mesma forma, a compreensão da família dentro destes parâmetros conduz a um tipo de intervenção muito mais abrangente. Como referem Dunst, Trivette e Deal (1988) o funcionamento da família traduz, em cada momento, um sistema em interacção onde há que ter em conta os papéis requeridos na altura a cada um dos seus elementos, assim como com as fontes de stress e de apoios provenientes, quer do exterior, quer do próprio sistema familiar. Intervenções planeadas numa perspectiva sistémica da família têm, portanto, de considerar as necessidades e prioridades, não só da criança, mas de todos os elementos do sistema familiar, assim como as múltiplas interacções entre este sistema e os sistemas exteriores.

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