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Conceito ontológico-formal de lei complementar

PARTE I PRESSUPOSTOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDO

4.1 Regime jurídico do veículo introdutor

4.1.2 Conceito ontológico-formal de lei complementar

Apesar da importância cada vez mais freqüente da lei complementar no direito brasileiro, as Constituições têm reservado pouquíssimos artigos à disciplina do regime jurídico dessa espécie legislativa. O laconismo do legislador constitucional, como observou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, acabou “forçando o intérprete a apoiar-se exclusivamente na opinião da doutrina, quando o estuda”71. Não foi diferente com a Constituição Federal de 1988, que lhe reservou apenas dois artigos:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: [...] II - leis complementares;

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Isso não significa que estejam no mesmo plano hierárquico no sistema. Os instrumentos secundários seriam o decreto regulamentar, as instruções ministeriais, as circulares, as portarias, as ordens de serviço e outros atos normativos estabelecidos pelas autoridades administrativas. A diferença entre instrumentos primários e secundários está no fato de que apenas os primeiros podem introduzir normas jurídicas inaugurais no sistema jurídico. Cf.: CARVALHO, op. cit., p. 56-76.

70

DINIZ DE SANTI, op. cit., p. 64 e ss. Sobre o tema, cf.: MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do

direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 115 e ss.

71

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta.

Inicialmente, a doutrina ligava o conceito de lei complementar ao problema das normas constitucionais não auto-executáveis. Complementares, dentro de concepção

clássica ou doutrinária72, seriam as leis necessárias à regulamentação desses dispositivos. Porém, após a chamada Emenda do Parlamentarismo (Ato Adicional n.° 04/1961), reservou-se tal denominação a um ato legislativo específico, com âmbito material expresso na Constituição e procedimento de aprovação especial e qualificado73. Consolidou-se o entendimento de que as leis complementares constituem uma categoria legislativa identificável formal e materialmente: leis especiais versando sobre matéria expressamente reservada pela Constituição e submetidas a um procedimento qualificado de aprovação (maioria absoluta)74. Em razão disso, não há discricionariedade na escolha das matérias a serem disciplinadas mediante lei complementar.

A lei complementar constitui uma limitação formal à regra da liberdade de conformação legislativa, que só é admitida por estar expressa no texto constitucional. Este fixou antecipadamente as matérias sujeitas a esta espécie legislativa. Não é dado ao legislador infraconstitucional alterá-las, em substituição ao legislador constituinte. Qualquer ampliação representa uma restrição à atividade legislativa futura, que somente pode ser realizada pelo texto constitucional ou por emendas à Constituição. Trata-se de restrição que objetiva conferir maior estabilidade a matérias consideradas relevantes pelo

72

Doutrinária foi a denominação empregada por Geraldo Ataliba (Lei complementar na Constituição. São Paulo: RT, 1971, p. 30) e clássica, por Celso Bastos (Lei complementar: teoria e comentários. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 24 e ss.).

73

BASTOS, Lei..., op. cit., p. 28 e ss.; BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: RT, 1975, p. 34; ATALIBA, Lei..., op. cit., p. 30.

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Nesse mesmo sentido, a definição de Eduardo Marcial Ferreira Jardim, para quem “a lei complementar pode ser assim definida: ‘diploma normativo que versa sobre a matéria especificamente prevista na Constituição’, cuja aprovação se subordina a procedimento legislativo especial e qualificado” (Manual de

legislador constituinte. Este procurou subtraí-las do jogo eleitoral, colocando-as, em razão do quorum de maioria absoluta, a salvo de maiorias fortuitas no Congresso Nacional75.

Portanto, não há fundamento jurídico para a diferenciação, preconizada por alguns, entre leis complementares ontológicas, voltadas à regulamentação de preceitos constitucionais não-auto-aplicáveis, e leis complementares formais, que receberiam tal qualificação por determinação constitucional expressa76. O fato de uma lei complementar também ser responsável pela regulamentação de uma norma constitucional destituída de aplicabilidade imediata não passa de mera coincidência. O campo material próprio dessa espécie legislativa é definido pelo texto constitucional. Assim, o chamado conceito clássico, doutrinário ou ontológico de lei complementar deve ficar bem delimitado em seu contexto histórico. Do contrário, confusões e perplexidades serão inevitáveis77.

Geraldo Ataliba, em 1969, tratando da lei complementar no sistema da Carta Constitucional de 1967 (com a redação da Emenda n.° 01/1969), já observara que:

[...] as categorias doutrinárias devem coadjuvar a melhor compensação do sistema, facilitar sua articulação e tornar mais fácil, segura e expedita sua exegese e aplicação. Se, como no caso presente, o Direito Positivo não acompanha rigorosamente os termos da construção científica e não guarda suficiente harmonia com suas exigências, é mais prudente - cautela obviadora de perplexidades e confusões - abandonar as categorias doutrinárias e extrair diretamente do sistema suas exatas conseqüências78.

75

CANOTILHO, Direito..., op. cit., p. 33. Como observou Geraldo Ataliba, “a exigência de quorum qualificado importa restrição ao Poder Legislativo e alteração qualificativa de sua competência, o que só a Constituição pode estabelecer. [...] Aí o principal motivo pela qual a lei complementar não pode, direta ou indiretamente, criar inibições ao legislador ordinário. Estas somente podem conter-se em disposição constitucional” (Lei complementar..., op. cit., p. 38).

76

Ives Gandra Martins, opinião da qual se diverge, entende que “[...] têm natureza de lei complementar propriamente dita aquelas leis explicitadoras da Constituição e de nível hierárquico superior, sendo apenas formalmente complementares aquelas que disciplinam normas auto-aplicáveis. [...] Por qualquer dos dois tipos de lei complementar, haverá sempre a necessidade de quorum qualificado [...]” (Comentários à

Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, vol. 4, tomo I, 1995, p. 296 e 297).

77

Como esclarece Manuel Afonso Vaz, “[...] por muita que seja a importância dos conceitos tradicionalmente aceites para a estabilidade da dogmática jurídica geral e do próprio direito, o critério decisivo para confirmar ou estabelecer conceitos dogmáticos é a normatividade da Constituição” (Op. cit., p. 24).

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Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados e Municípios: limites à norma geral – Código Tributário Nacional. Revista de Direito Público n.° 10, p. 62.

O conceito constitucional de lei complementar, portanto, é ontológico-formal. Resulta, como ensina Paulo de Barros Carvalho, da conjugação da reserva legal qualificada e do quorum especial previsto no art. 69 da Constituição79. Exigir lei complementar para a regulamentação de preceitos constitucionais não auto-aplicáveis equivale a impor uma limitação ao legislador ordinário sem amparo constitucional. Seria mais um entrave à efetivação daqueles direitos e garantias que, embora consagrados na Lei Maior, em razão da inércia do legislador infraconstitucional, acabam por ficar completamente destituídos de eficácia social.

Por outro lado, como a utilização da lei complementar é predeterminada pelo texto constitucional, uma lei que não trate de matéria expressamente reservada a esta espécie legislativa, mesmo aprovada nos termos do art. 69 da Constituição, não pode ser considerada como tal80. Trata-se de uma lei complementar aparente, que, na verdade, não passa de uma lei ordinária. Por essa razão, pode perfeitamente ser revogada por uma lei ordinária posterior81.

Nesses casos, como esclarece Sacha Calmon Navarro Coêlho, a lei complementar sofre uma espécie de quebra de status, passando a valer tanto quanto uma lei ordinária federal. Considerando a identidade do órgão legislativo, aplica-se o princípio segundo o qual não há nulidade sem prejuízo82.

Pela mesma razão, discorda-se da recente tendência, defendida por respeitáveis doutrinadores e segundo a qual, “[...] a rigor, não há vigente na Constituição qualquer norma, ou princípios, que expressa ou implicitamente autorize a conclusão de que a lei complementar somente pode cuidar de matérias a estas reservadas pela Constituição.

79

CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 149. 80

BORGES, ob. cit., p. 26. 81

Nesses casos, como explica Celso Bastos, “[...] essa ‘pseudo’ lei complementar pode ser revogada por lei ordinária, dispensando desta maneira a necessidade de votação por maioria absoluta” (Lei..., op. cit., p. 144). 82

Existem é certo, dispositivos que tornam determinadas matérias privativas de lei complementar, o que é coisa rigorosamente diversa”83.

Pretende a referida doutrina ser possível a instituição de leis complementares fora das matérias expressamente sujeitas a essa reserva legal qualificada. Basta que se trate de um projeto de lei complementar aprovado por maioria absoluta do Congresso. A tese, como se vê, conflita com o conceito jurídico-constitucional de lei complementar, que é ontológico-formal. Ao mesmo tempo, não parece correta a conclusão no sentido de que a inexistência de norma proibitiva implica a possibilidade de instituição de leis complementares fora das hipóteses expressamente reservadas pelo texto constitucional. Basta lembrar que, em direito público, o legislador somente pode atuar diante de normas de competência autorizadoras, razão pela qual se considera proibido tudo o que não se encontre expressamente permitido84.

Também parece inadequada a tentativa de caracterização da lei complementar como sendo uma lei nacional. Esta, diferente das leis federais stricto sensu, cujo âmbito de aplicação circunscreve-se à União e a seus administrados, aplicam-se a todas as pessoas políticas de direito constitucional interno, por ser fruto da atividade legislativa do Estado total ou global. Todavia, existem matérias que, apesar de não estarem sujeitas à reserva de lei complementar, constituem leis tipicamente nacionais. É o caso de matérias da competência privativa da União para legislar sobre direito civil, comercial e penal (CF, art. 22, I), que podem perfeitamente ser reguladas por lei ordinária federal. Essa constatação já é suficiente para afastar as doutrinas que afirmam ser a lei complementar uma lei nacional,

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MACHADO, Hugo de Brito. Posição hierárquica da lei complementar. Revista Dialética de Direito

Tributário n.° 14:20-21.

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Desse modo, como já ficou assentado, “a utilização da lei complementar não é decidida pelo Poder

Legislativo. Ao contrário, a sua utilização é predeterminada pela Constituição” (COÊLHO, Sacha Calmon

Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 64).

e não simplesmente federal85. Além disso, a previsão pelo texto constitucional de leis complementares estaduais, como a do § 3.° do art. 25, também exclui a procedência dessa generalização indiscriminada.

Manuel Afonso Vaz, com base na doutrina constitucional alemã, esclarece que, nos temas envolvendo a lei como categoria jurídico-positiva, o intérprete, muito mais do que nas outras matérias, não pode simplesmente repudiar os limites e conceitos constitucionais, criando outros em sua substituição86. Portanto, as concepções doutrinárias incompatíveis com o direito positivo devem ser abandonadas.