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Parâmetros de redução da vaguidade do conceito

PARTE I PRESSUPOSTOS DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDO

4.2 Conceito e função das normas gerais de direito tributário

4.2.2 Parâmetros de redução da vaguidade do conceito

É inócua qualquer tentativa de estabelecer um conceito definitivo de “normas gerais”. A expressão apresenta um grau de indeterminação semântica impossível de ser totalmente eliminado. De nada adianta afirmar, como faz parte da doutrina, que as normas gerais estabelecem princípios, diretrizes, linhas mestras e regras jurídicas gerais. Com isso, apenas se substitui uma expressão indeterminada por outra, sem resolver definitivamente o problema. A vagueza de conceitos jurídicos dessa natureza, quando muito, pode ser apenas mitigada através da identificação de limitações contextuais ou pela delimitação de zonas de certeza positiva e certeza negativa, de inequívoca aplicabilidade ou inaplicabilidade. Sempre, todavia, haverá casos de penumbra, nos quais a abrangência do conceito será questionável ou duvidosa, podendo apenas ser resolvida no caso concreto126.

Nesse sentido, deve-se considerar, inicialmente, que as normas gerais inserem-se no contexto de um federalismo cooperativo, no qual os entes federados legislam concorrentemente, em níveis diversos sobre uma mesma matéria, segundo ensina Raul Machado Horta:

125

Ibid., p. 209. Grifamos. Roque Carrazza, após a Constituição Federal de 1988, também continuou entendendo que “a lei complementar em exame só poderá veicular normas gerais em matéria de legislação tributária, as quais ou disporão sobre conflitos de competência, em matéria tributária, ou regularão ‘as limitações constitucionais ao poder de tributar’. [...] Tal conclusão, posto não deflua naturalmente da mera leitura do invocado art. 146, é a única possível se levarmos em conta, em sua exegese, dentre outros, os precitados princípios federativos, da autonomia municipal e da autonomia distrital” (CARRAZZA, Curso...,

op. cit., p. 755).

126

COMELLA, Justicia..., op. cit., p. 21; CARRÍO, Genaro. Notas sobre derecho e lenguaje. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1972, p. 31-35; ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la

metodología de las Ciencias Jurídicas y Sociales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1987, p. 61 e ss.; GRAU,

As Constituições federais passaram a explorar, com maior amplitude, a

repartição vertical de competências, que realiza a distribuição de idêntica

matéria legislativa entre a União Federal e os Estados-Membros, estabelecendo verdadeiro condomínio legislativo, consoante regras constitucionais de convivência. A repartição vertical de competências conduziu à técnica da

legislação federal fundamental, de normas gerais e de diretrizes essenciais, que

recai sobre determinada matéria legislativa de eleição do constituinte federal. A legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local. É a

Rahmengesetz, dos alemães; a Legge-cornice, dos italianos; a Loi de cadre, dos

franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro127.

Desse modo, estando relacionadas ao conceito de federalismo cooperativo – caracterizado, na feliz expressão de Raul Machado Horta, por um condomínio legislativo,

consoante regras constitucionais de convivência –, as normas gerais pressupõem a

participação ativa de todos os entes federados. A estes deve ser reservada a prerrogativa de legislar segundo suas peculiaridades, decidindo autonomamente sobre os tributos de sua competência, e não apenas escolhendo opções preestabelecidas. Não será “geral”, assim, a “norma” que exclua qualquer espaço de atuação legislativa das demais pessoas políticas ou esgote o assunto legislado.

As normas gerais, portanto, como ressalta Pontes de Miranda, sempre devem ser não-exaurientes. A legislação complementar federal deve receber uma configuração tal que demande um desenvolvimento por parte do legislador local. Não pode entrar em pormenores ou detalhes próprios do interesse local, estadual ou municipal. O exercício da competência da União, afinal, não pode excluir a competência legislativa dos demais entes federados. Do contrário, ficará descaracterizada sua natureza concorrente128.

Paralelamente, há um segundo fator a ser considerado: a limitação contextual decorrente do regime jurídico do veículo introdutor das normas gerais de direito tributário.

127

HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366. 128

Como ressalta Raul Machado Horta: “A legislação federal de normas gerais, como evidenciada a terminologia jurídica empregada, é legislação não exaustiva. É conceitualmente uma legislação incompleta, de forma que a legislação suplementar estadual, partido da legislação federal de normas gerais, possa expedir normas autônomas, afeiçoando as normas gerais às exigências variáveis e às peculiaridades locais de cada ordenamento jurídico estadual.” (Repartição de competências na Constituição Federal de 1988. Revista

Estas, sendo veiculadas por lei complementar, não podem alterar, contrariar ou restringir a Constituição, sobretudo o sistema de repartição de competências impositivas nela previsto. A modificação dessa estrutura predeterminada demanda alteração do próprio texto constitucional, o que, por sua vez, somente pode ser operado mediante Emendas à Constituição.

Tais circunstâncias, desde já, tornam o espaço de atuação das normas gerais bastante limitado. Diante da natureza analítica do sistema constitucional tributário, o legislador complementar poderia apenas explicitar o texto, sempre correndo o risco de ir além ou aquém do permitido (caso em que será inconstitucional) ou simplesmente repeti-lo (o que é tecnicamente impróprio). Dentro desse campo restrito, se as normas gerais não podem esgotar o assunto legislado nem alterar a competência impositiva das pessoas políticas, a sua função em um Estado Federal como o brasileiro seria, a rigor, apenas afastar conflitos de competência entre as pessoas políticas tributantes, como ensina Geraldo Ataliba:

Da contemplação do nosso sistema constitucional tributário e meditação sobre seus princípios informadores se vê, raciocinando-se por exclusão, que outra função não podem ter as normas gerias senão completar a Constituição onde e quando seja previsível – ou efetivamente venha a ocorrer – conflito entre as pessoas tributantes. Seria, com efeito altamente ilógico e absurdo que a Constituição tivesse conferido autonomia a Estados e Municípios, tributos privativos e competência ampla para instituí-los e regulá-los e, ao mesmo tempo, conferisse ao Congresso poderes para limitar arbitrariamente aquelas faculdades e competências [...] São, pois, exclusivamente as áreas de conflitos, desde que haja evidente lacuna no texto constitucional. De outra forma não é possível colocar o problema129.

Mesmo a doutrina tradicional, a corrente tricotômica, reconhecia tal limitação. De um lado, afirmava que as normas gerais seriam voltadas a traçar linhas gerais do ordenamento jurídico tributário, desenvolvendo os princípios constitucionais implícitos, prevendo as diversas espécies tributárias e definindo o “fato gerador” de cada um dos

129

impostos genericamente previstos no texto constitucional130. Porém, de outro, reconhecia que “o campo específico da lei complementar prevista no § 1.° do art. 18 da Constituição

Federal é dispor sobre conflitos de competência em matéria tributária”131.

O texto constitucional, portanto, foi redundante ao prever que a lei complementar do art. 146 seria voltada a dispor sobre conflitos de competência e estabelecer normas gerais de direito tributário132.

Nas demais matérias em que o problema das normas gerais se coloca, a doutrina tem se encaminhado nessa mesma linha. Como ensina Tércio Sampaio Ferraz Junior, o estudo das normas gerais a partir de seu conteúdo possível não resolve totalmente a questão, sempre restando dúvidas no caso concreto:

Deste modo, para o intérprete, a necessidade de se analisar o conteúdo num contexto finalístico se impõe. Assim, do ângulo teleológico, a distinção há de se reportar ao interesse prevalecente na organização federativa, [...] toda matéria que extravase o interesse circunscrito de uma unidade (estadual, em face da União; municipal, em face do Estado) ou porque é comum (todos têm o mesmo interesse) ou porque envolve tipologias, conceituações que, se particularizadas num âmbito autônomo, engendrariam conflitos ou dificuldades no intercâmbio nacional, constitui matéria de norma geral133.

Portanto, como demonstrou Paulo de Barros Carvalho, o legislador complementar pode perfeitamente instituir normas gerais sobre o conceito de tributos e suas espécies, os “fatos geradores”, bases de cálculo e contribuintes dos impostos previstos na Constituição; pode introduzir diretrizes acerca de obrigação, lançamento, crédito, prescrição e

130

“Nessas condições, podemos afirmar que o objetivo das normas gerais é ditar princípios básicos de atuação da discriminação de rendas, de molde a evitar conflitos de competência entre as várias entidades tributantes. Nesses mister, o legislador nacional poderá conceituar cada um dos impostos genericamente previstos na Constituição, como também poderá conceituar as espécies tributárias, de molde a impedir que os legisladores ordinários os conceituem de maneira interesseira, com vistas ao alargamento de suas competências” (SOUZA, op. cit., p. 25).

131

Ibidem, p. 25. 132

“Com tal interpretação, daremos sentido à expressão normas gerais de direito tributário, prestigiaremos a Federação, a autonomia dos Municípios e o princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno, além de não desprezar, pela coima de contraditórias, as palavras extravagantes do citado art. 146, III, a e b, que passam a engrossar o contingente das redundâncias tão comuns no desempenho da atividade legislativa.” (CARVALHO, Curso..., op. cit., p. 209).

133

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Normas gerais e competência concorrente - uma exegese do art. 24 da Constituição Federal. Revista Trimestral de Direito Público n.º 7, p. 18.

decadência tributários, assim como dispor sobre o regime jurídico do ato cooperativo. Essa competência, porém, está condicionada a uma finalidade precisa: evitar conflitos de competência tributária134.

Por isso, estando voltadas a dispor sobre conflitos de competência, as normas gerais não disciplinam diretamente a conduta intersubjetiva. Trata-se de regras de estrutura, que se limitam a regular a produção jurídica. Normas que, por não esgotar o assunto legislado, não afastam nem dispensam a edição de normas de conduta pela pessoa política competente para a instituição do tributo135.