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2. Agricultura urbana, a segurança alimentar e populações vulneráveis

2.1. O conceito de segurança alimentar

A segurança alimentar é vista como um “direito fundamental”, tendo o seu conceito nascido na década de 1970, com o seu enfoque inicial na disponibilidade dos alimentos. Na Conferência Mundial de Alimentos de 1974, foram identificados a disponibilidade de alimentos e o seu preço como os principais critérios da segurança alimentar (Armar-Klemesu, 2000). A definição enfatizava a necessidade de mais produção de alimentos como resposta à fome no mundo, que segundo previsões da FAO, em 1970, afetava cerca de 30% da população mundial (Berry, et al., 2015). Neste sentido, o enfoque do conceito da segurança alimentar na disponibilidade de alimentos, remetia essencialmente para a oferta de alimentos, ou seja, para quantidade de alimentos existentes no mercado.

A mudança de paradigma surge com um melhor conhecimento do “funcionamento dos mercados agrícolas sob condições de stress e de como as populações em risco se encontraram na situação de não conseguir aceder a alimentos levou à expansão da definição de segurança alimentar”

(Berry, et al., 2015). Segundo Armar-Klemesu (2000) percebeu-se que o “problema da fome estava mais relacionado com a distribuição desigual de alimentos, (…) deixando de ser simplesmente uma questão de disponibilidade de alimentos (no âmbito nacional ou mesmo nível local) para ser uma questão mais complexa de acesso (nível familiar ou individual)”. Neste momento, para além da oferta de alimentos, começou-se a considerar o papel chave que a procura também tinha no estabelecimento do conceito de segurança alimentar.

Segundo a Declaração de Roma sobre a Segurança Alimentar Mundial e Plano de Ação da Cimeira da Alimentação de 1996, a segurança alimentar ocorre quando todas as pessoas tiverem “em todo o momento, acesso físico e económico a uma quantidade suficiente de alimentos seguros e nutritivos para satisfazer as suas necessidades e preferências alimentares e nutricionais, a fim de levarem uma vida ativa e saudável” (FAO, 1996). Ou seja, a definição de segurança alimentar deixou de considerar a disponibilidade de alimentos como o seu único pilar, passando também a englobar aspetos relacionados com o acesso, qualidade e a estabilidade dos alimentos (Duchemin, Wegmuller,

& Legault, 2008 e Stewart, et al., 2013). O acesso remete para a capacidade de uma família ou individuo aceder a alimentos suficientes para uma dieta nutritiva e variada, englobando esta dimensão fatores relacionados com o meio físico (como o transporte) e económicos (o poder de compra de alimentos), e também as preferências socioculturais (Berry, et al., 2015). Já a qualidade dos alimentos refere-se às questões relacionadas com a segurança do alimento e seus efeitos na saúde humana (Smith & Gregory, 2012), tendo as condições onde a atividade é praticada uma forte influência. O conceito da FAO considera ainda outro elemento - a estabilidade - sendo que este aspeto é aplicado aos outros fatores já referidos (disponibilidade, acesso e qualidade) (FAO, 2007), e enfatiza a importância de trazer uma dimensão temporal ao conceito de segurança alimentar (Berry, et al., 2015).

Sendo expectável que nas próximas décadas, “as mudanças climáticas, o crescimento populacional, o aumento do preço dos alimentos e os fatores de pressão ambientais terão impactos significativos, no entanto incertos, sobre a segurança alimentar” (IFPRI, 2022), é impossível separar a questão alimentar da sustentabilidade. Neste sentido, é necessário interligar a sustentabilidade ao conceito de segurança alimentar, dado a necessidade de, por um lado, diminuir os impactos da produção de alimentos no meio ambiente e na biodiversidade, e por outro garantir, a longo prazo, todas as outras dimensões da segurança alimentar (disponibilidade, acesso e qualidade e estabilidade) (Smith & Gregory, 2012). Tal como refere Berry, et al. (2015), sem a “integração da sustentabilidade como uma dimensão explícita da segurança (quinta?) da segurança alimentar, as políticas e programas de hoje podem se tornar a própria causa do aumento da insegurança alimentar no futuro”.

2.1.1 A relevância da agricultura urbana para a segurança alimentar das populações urbanas

Tal como já discutido, a crescente valorização da segurança alimentar (Duchemin et al., 2008) foi um dos principais fatores que contribuiu para o impulso da agricultura urbana, sendo que esta é também um fator de segurança alimentar, mostrando-se de especial interesse para as comunidades vulneráveis.

Tal como exposto na Figura 4, acredita-se que a agricultura urbana contribuiu para a melhoria da segurança alimentar das populações urbanas, seja pela capacidade de melhorar a acessibilidade alimentar ou potenciar rendimentos extra (Armar-Klemesu, 2000).

Se por um lado, a agricultura urbana possibilita o acesso a alimentos frescos, diversificados, acessíveis e seguros, devido à proximidade entre o local de produção e o local de consumo, também garante a estabilidade deste mesmo fornecimento (Kennard & Bamford, 2020 e Adagói, 2015). Do mesmo modo, vários estudos apontam para que os agricultores urbanos consumam mais vegetais do que os não agricultores (Egal, Valstar, & Meershoek, 2001), promovendo assim uma alimentação mais saudável.

Por outro lado, a agricultura urbana é capaz de potenciar rendimentos extra (Mougeot, 2006 e (Ackerman, et al., 2014), seja pela poupança, através do consumo de alimentos produzidos em casa que são mais baratos de produzir do que comprar no mercado, ou através da comercialização dos produtos cultivados (Stewart, et al., 2013).

Figura 4. Caminhos chave para a segurança alimentar Fonte: Stewart, et al. (2013) Para Bellows e colegas (2008), pequenas parcelas agrícolas são “capazes de fornecer a maior parte das necessidades vegetais totais de um agregado familiar, incluindo grande parte das necessidades nutricionais”. No entanto, a maior parte dos estudos aponta que, dada a pequena produção, os custos e o tempo necessário para cuidar destes espaços, é improvável que a agricultura urbana assegure a autossuficiência alimentar das famílias que participam na atividade, contrariando Bellows e colegas (Nogeire-McRae, et al., 2018; Ackerman, et al., 2014; Mougeot., 2000).

Num estudo realizado por Nogeire-McRae e colegas (2018) em Fort Collins, Colorado, Estados Unidos, foi estimada a capacidade de um pequeno terreno (3,05 por 3,05 metros) dentro dos limites da cidade abastecer com legumes frescos e ovos os morados da cidade. Segundo os autores, uma pequena horta pode render cerca de 18 quilos de produtos por estação, 16% do mínimo de frutas e vegetais (110 quilos) recomendados para uma única pessoa, destacando que esta quantidade de produtos se traduzia numa poupança anual de 70$. Destacam ainda que essa mesma horta “fornecia 9,2% das proteínas, 23% de vitaminas K”, 20% de vitaminas C e quantidades menores de outros nutrientes e vitaminas”, das necessidades nutricionais anuais de um indivíduo.

Agricultura Urbana

Melhoria do acesso a produtos alimentares

Aumento do orçamento familiar

Maior quantidade total de produtos alimentares

disponíveis

Acesso doméstico direto a produtos alimentares nutritivos

e diversificados

Poupar rendimentos Gerar rendimento

Aumento da ingestão de calorias e diminuição da experiência de fome

Maior ingestão de micronutrientes e uma

dieta mais equilibrada e saudável

Menos gastos na compra de alimentos

Venda ou comércio de excedentes de alimentos cultivados

internamente

Mais receita disponível para gastar em produtos alimentares e

prevenir crises alimentares

Aumento dos níveis da segurança alimentar urbana

Não há assim evidências na literatura de que a agricultura urbana possa, por si só, ser um garante de segurança alimentar, uma vez que a mesma não consegue satisfazer todas necessidades das famílias que participam na atividade. Apesar de ser reconhecido que “agricultura urbana já fornece uma parcela significativa de alimentos” (Ackerman, et al., 2014), o seu potencial para a segurança alimentar, em qualquer uma das vias “custo de oportunidade” apresentadas na Figura 4, está dependente da ineficiência do atual sistema alimentar (Stewart, et al., 2013). Para Stewart e colegas, (2013), “lidar com a insegurança alimentar urbana, requer um ato de equilíbrio entre a agricultura urbana (o custo de oportunidade de produzir seus próprios alimentos) e mercados de alimentos urbanos mais eficientes (tornando os alimentos que você compra mais baratos)”.

Sendo as populações urbanas são mais suscetíveis a eventos de crise alimentar, é crucial pensar no sistema alimentar mais diverso e multifuncional (Oliveira & Morgado, 2016). Desta forma, a agricultura urbana pode ter um papel ao lidar com a pobreza urbana e insegurança alimentar, sendo uma das ferramentas integrante deste mesmo sistema, sendo capaz de contribuir para o aumento da resiliência das populações urbanas, especialmente as de cariz mais vulnerável.

2.2.2 Riscos ambientais associados à agricultura urbana e segurança do alimento

Apesar da atividade agrícola em meios urbanos incorporar inúmeros benefícios, esta pode ter riscos associados, provocados por condicionantes do meio urbano, com graves implicações na segurança do alimento. O facto de a agricultura urbana ser praticada em áreas “densamente povoadas, próximas de habitações e cursos de água” faz com que seja “mais passível de promover ou agravar os problemas de contaminação, tanto dos alimentos, como do ambiente” (Tedesco, 2013). No mesmo sentido, Ackerman e colegas (2014) defendem que os principais problemas para a qualidade dos alimentos resultantes da prática agrícola em meio urbano relacionam-se com a contaminação, tanto química como biológica, dos alimentos, que decorre de más práticas agrícolas durante o processo de produção e distribuição/comercialização dos produtos, mas também da seleção ou localização da cultura sem a devida consideração à exposição a poluentes no ar, no solo e na água.

Como o solo urbano está sujeito a mais intervenções, construções, transformações e demolições, e como tal, vê uma redução na sua qualidade para a prática agrícola devido aos níveis de contaminação que pode concentrar, sendo a base elementar da agricultura, é o elemento que mais impacto direto tem na qualidade dos produtos (Howorth, 2011). Dada a abundância de resíduos que se produzem na cidade com potencial de reutilização e aproveitamento para a atividade agricultura, pode- se considerar que o solo urbano não está sujeito a problemas de fertilidade (Tedesco, 2013). Contudo, o mau manuseio e aplicação destes resíduos (como resíduos orgânicos ou fezes de animais) está associado a riscos para a saúde dos consumidores, embora esta seja uma prática favorável à prática agrícola (Ackerman, et al., 2014).

Howorth (2011) identifica ainda outras das principais fontes de contaminação do solo urbano:

• Pesticidas (produtos fitossanitários químicos): quando aplicados em excesso, libertam metais pesados;

• Zonas industriais: dependendo de fatores como a proximidade das zonas industriais e o período de utilização dos produtos químicos aí usados;

• Tráfego automóvel intensivo: uma maior proximidade a uma área de tráfego intenso pode influenciar a quantidade de contaminantes presentes nesse solo, especialmente chumbo;

• Derramamentos de petróleo, principalmente junto a estações de serviço;

• Aterros sanitários e depósitos de lixo que contaminam uma grande variedade de materiais pesados;

• Incêndios;

• Fertilizantes, que contaminam os solos e águas com metais pesados (cobre, zinco, cádmio, chumbo).

Um dos principais problemas decorrentes da contaminação dos solos é o facto das plantas acabarem por absorver estes elementos contaminantes, como materiais pesados, recorrentemente mencionados por diversos autores como uma das principais ameaças, devido à potencialidade de toxicidade e persistem nos solos, sendo encontrados em elevadas concentrações nas zonas urbanas (Howorth, 2011). Um dos principais agentes de contaminação dos solos com materiais pesados são os pesticidas (destacado por Howorth (2011) logo no primeiro ponto relativo às principais fontes de poluição do solo urbano), uma vez que estes produtos são utilizados recorrentemente para aumentar a produtividade agrícola, contudo a sua má aplicação pode traduzir-se em impactos significativos no meio ambiente e na saúde humana.

Do mesmo modo, não se pode considerar válidos todos os solos para a prática da agricultura, especialmente se tiverem deficiências do ponto de vista ambiental. Importa assim avaliar a qualidade dos solos, dado o seu contexto urbano ser suscetível a mais poluentes e contaminações que os tornam impróprios para a atividade agrícola (Howorth, 2011). Em áreas agrícolas informais, o solo não está sujeito a nenhum tipo de avaliação, assim como não é alvo de fiscalização, constituindo um risco para quem consome esses produtos.

Outro elemento ambiental igualmente sensível à atividade agrícola em meios urbanos é a água, seja pela contaminação de água potável ou pelo esgotamento das fontes de água (Egal et a.2001). Em hortas urbanas de cariz informal, o uso de águas não controladas é comum, havendo o risco do uso de rega das áreas de cultivo com águas contaminadas (Ackerman, et al., 2014).

Para além dos problemas ambientais, os autores apontam para outras condicionantes da agricultura urbana, nomeadamente a inexperiência ou escolaridade dos agricultores (Mougeot, 2006), que influenciam os tipos de cultivo e as formas de produção; ou ainda a durabilidade da atividade em

meio urbano, uma vez que o desenvolvimento agrícola esbarra em usos potenciais do solo e no tipo de uso de terrenos baldios, como a reivindicação dos espaços vagos em bairros de populações desfavorecidas para o desenvolvimento de habitação social (Duchemin et al., 2008).

Estes aspetos devem ser tidos em consideração na avaliação da relevância da segurança alimentar para a agricultura urbana, pois sem estes, não existe segurança alimentar nestas áreas.