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5 RECONCILIAÇÃO ENTRE O PENSAMENTO CRISTÃO

5.2 A SÍNTESE TOMISTA: ATOS HUMANOS E FILOSOFIA MORAL

5.2.3 O conceito de vontade

64 “Patet autem quod omnia haec consequuntur actualem applicationem scientiae ad ea quae agimus”.

65 Para um melhor entendimento desta tese, conferir o prefácio de Ser e Tempo de Martim Heidegger.

66 “Dicendum quod actus, etsi non semper maneat in se, semper tamen Manet in sua causa, quae est

potentia et habitus. Habitus autem ex quibus conscientia informatur, etsi multi sint, omnes tamen efficaciam habent ab uno primo, scilicet ab habitu primorum principiorum, qui dicitur synderesis. Unde specialiter hic habitus interdum conscientia nominatur”.

Segundo Tomás de Aquino, o conceito de vontade se alinha à noção de necessidade e estes se relacionam à noção de telos, entendido aqui como a felicidade que é um bem desejado por todos. Tomás de Aquino distingue diferentes noções de necessidade: necessitas naturalis et absoluta, necessitas finis e necessitas coactionis. A necessitas naturalis se apresenta quando, a uma coisa, algo se apresenta em virtude de seus princípios intrínsecos, sejam materiais ou formais. Materialmente, é naturalmente necessário que o composto de contrários se corrompa. Formalmente, é naturalmente necessário que os ângulos internos de um triângulo sejam iguais a dois ângulos retos. Existem também princípios extrínsecos que garantem este tipo de necessidade, diga-se, por exemplo, a morte como causa final ou a geração como

causa eficiente (cf. AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.1)67.

A necessitas finis se põe quando alguém não pode atingir seu fim, ou atingi-lo convenientemente sem esse princípio. Tomás de Aquino cita o exemplo da alimentação para atingir uma vida saudável ou o cavalo para se chegar ao destino pretendido (cf. AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.1 )68. Finalmente, quando um ente é constrangido de tal modo que não pode fazer o contrário, a necessidade é pensada como necessitas coactionis (cf. AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.1)69.

Deve-se perceber que a necessitas coactionis é contrária à vontade, pois se constitui como uma violência à inclinação de ser humano. Não é difícil chegar a uma compreensão da liberdade em Tomás de Aquino, através das elucidações acerca do conceito de vontade. Pode-se afirmar, primeiramente, que a liberdade se refere a uma ausência de constrangimento externo. Este se constitui como um nível básico da noção de liberdade. Além disso, é importante salientar que será possível estabelecer uma distinção entre a liberdade como ausência de constrangimento interno e a liberdade como uma orientação racional ao fim e, inclusive, como independência em relação aos ditames de livre-arbítrio, que é a fonte mais primordial de exercício da vontade, mas que, ainda, não pode ser considerada liberdade no sentido pleno.

Uma vez que o conceito de vontade (ou voluntário) oferece “luzes” ao conceito de liberdade, é também possível chegar ao conceito de involuntário e, este, relaciona-

67“Sobre a necessitas naturalis et absoluta Tomás de Aquino afirma: Quod quid convenit alicui, uno

modo ex principio intrínseco: sive materiali [...] sive formali. [...] Alio modo convenit alicui quod non possit non esse, ex aliquo extrínseco, vel fine vel agente”.

68 “Fine quidem, aut bene consequi finem aliquem: ut cibus dicitur necessaries ad vitam, et equus ad

iter. Et haec vocatur necessitas finis; quae interdum etiam utilitas dicitur”.

69 “Ex agente autem hoc alicui convenit, sicut cum aliquis cogitur ab aliquo agente, it quod non possit

se ao conceito de necessitas coactionis. Um agente constrangido a fazer o que não deseja é alguém que age involuntariamente. Mas a liberdade está para além do agir, pois, é até possível obrigar que alguém faça alguma coisa, mas não é possível obrigá- lo a querer fazer.

Assim, pois, Tomás de Aquino entende que o movimento da vontade é uma certa inclinação para algo. Desse modo, “assim como se chama natural o que é segundo a inclinação da natureza, chama-se de voluntário o que é segundo a inclinação da vontade” (AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.1). Entretanto, este apetite denominado de vontade é de natureza racional. Para entender esta afirmação, deve- se estabelecer em relação à vontade, à distinção entre irascível e o concupiscível.

A alma possui potências sensitivas e intelectivas, estas últimas são também chamadas de potências espirituais. O apetite sensitivo se diversifica em concupiscível, quando se refere à razão de bem, no sentido daquilo que agrada aos sentidos, e, em irascível, quando se refere à razão de bem, enquanto se busca evitar aquilo que é prejudicial (cf. AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.5)70. Estes apetites são ambos da ordem da sensibilidade. A vontade, porém, diz respeito à razão, faz parte dela:

voluntas in ratione est. A vontade é próprio apetite intelectivo e, por isso mesmo, o

bem a que a vontade apetece é o bem sob razão universal.

Este conceito aprofunda a noção de voluntário e involuntário e é entendido como um movente das ações, tanto naturalmente como teleologicamente. Não há, segundo Tomás de Aquino, uma oposição entre a necessidade de um fim e a ideia de vontade: “A necessidade de fim não repugna à vontade, quando ela não pode atingir esse fim senão por um só meio; por exemplo, quando se tem a vontade de atravessar o mar, é necessário a vontade que queira um navio” (AQUINO, Tomas de, S. Th., I, q.

82, a.1)71. Resulta claramente que não há oposição entre a liberdade e teleologia em Tomás de Aquino.

Desse modo, Tomás de Aquino compatibiliza a ideia de liberdade com a ideia de fim. Analogicamente, assim como o intelecto adere aos primeiros princípios, a vontade deve, pois, aderir ao fim último, que é a bem-aventurança, uma vez que a

70“Appetitus autem sensitivus non respicit comunem rationem boni: quia nec sensus apprehendit

universal. Et ideo secundum diversas rationes particularium bonorum, diversiticantur partes appetites sensitive: nam concupiscibilis respicit propriam rationem boni, inquantum est delectabile secundum sensum, et conveniens naturae; irascibilis autem respicit rationem boni, secundum quod est repulsivum et impugnativum eius quod infet nocumentum”.

71 “Necessitas autem finis non repugnat valuntati, quando ad finem non potest perveniri nisi uno modo:

bem-aventurança, ou a felicidade, é almejada por todos. Assim sendo, compreende- se que o fato de haver uma vontade natural não implica uma contradição com uma vontade livre.

Um esclarecimento deve ser feito nestas teses de Tomás de Aquino. Ele retira a felicidade como sendo o fim último do homem pelo fato de todos os seres humanos serem dotados de vontade e este desejo é universal, pois decorre da natureza humana o fato de todos desejarem ser felizes. Poucas pessoas parecem duvidar desta tese, entretanto, é possível concluir que o problema não está no fato de todos desejarem a felicidade, mas no itinerário que cada pessoa particularmente percorre para atingi-la. Tomás de Aquino salienta que a escolha não versa sobre o fim; ela versa sobre os meios para o fim (Cf. AQUINO, Tomás de, S. Th., I, q. 82, a.1)72. Isto implica em dizer que o fato de a felicidade ser o fim último do homem não tem nada aver com sua escolha, uma vez que este é o fim natural a que todos tendem, o destino potencial de todo homem. Por que o destino potencial? Naturalmente, este “destino” não implica um fim inexorável, mas o horizonte que dá sentido às ações praticadas. Elas devem ser orientadas de modo a tornar mais acessível o alcance desse fim. Na ética de Tomás de Aquino, assim como na ética de Aristóteles, as ações são apropriadas em virtude do bem que elas proporcionam e não porque o valor das ações se encerra nelas próprias. A ética de Tomás de Aquino, seguindo a moral aristotélica, vai propor o exercício das ações virtuosas como o meio para se atingir essa felicidade.

O ato de buscar a felicidade através das virtudes, além de ser a maneira mais adequada a essa busca, apresenta indiretamente a força que a ideia de liberdade possui na ética cristã. Henrique de Lima Vaz, lendo Hegel, afirma que “a ideia de liberdade pertence à esfera da manifestação mais alta do Espírito, da sua manifestação como razão” e complementa, “para Hegel, o momento decisivo em que, na cultura do Ocidente, a razão se manifesta como liberdade tem lugar com o advento do Cristianismo” (VAZ, 2002, p. 14). No esquema geral da Suma Teológica, é por livre vontade que homem opera um caminho de retorno a Deus. Assim, a ideia de liberdade pode ser apontada como elemento distinto na reconciliação entre o aristotelismo e o pensamento cristão.