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5 RECONCILIAÇÃO ENTRE O PENSAMENTO CRISTÃO

5.1 AS VIRTUDES E A TEORIA ARISTOTÉLICA DOS ATOS – E.N III, 1-8

5.1.3 A definição do objeto do querer

A reflexão aristotélica, em torno do querer, ou do desejo racional, é um debate latente entre as teses platônicas e sofistas que será exposta a seguir. Além disso, muito mais do que uma simples síntese entre esses dois posicionamentos, Aristóteles inaugura uma perspectiva nova em torno da teoria das ações, a saber, a compreensão de que o bem aparente é uma condição necessária ao bem, embora não lhe seja suficiente (Cf. ZINGANO, 2010, p. 193). A tese geral de Aristóteles é a de que, para uma coisa ser tomada como fim, deve ser tomada como tal pelo agente, isto é, no processo de direcionamento em busca do bem, a questão fundamental é como o agente percebe um determinado objeto. O texto aristotélico abre a discussão em torno de se o querer diz respeito ao fim:

Foi dito que o querer concerne ao fim, mas a uns parece concernir ao bem; a outros, ao bem aparente. Aos que dizem que o objeto do querer é o bem, decorre que não é objeto do querer o que quer aquele que não escolhe corretamente (pois, se for objeto do querer, será então um bem; era, no entanto, no caso, um mal); por sua vez, aos que dizem que o bem aparente é objeto do querer, decorre que não existe objeto do querer por natureza, mas é objeto do querer o que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas, mesmo, no caso, coisas contrárias) (ARISTÓTELES, Ethica

Nicomachea, 2010, III, 6, 1113, a15 )54.

A referência à filosofia platônica pode ser reconhecida pela proposição de que o bem é objeto do querer e que apenas este, o bem, poderia ser o seu objeto. Note- se que o termo original para fim é τέλους e que o querer, βούλησις, se direciona a este fim porque ele é um bem enquanto tal, τἀγαθοῦ. O inconveniente desta tese para Aristóteles é o fato de que, se apenas o bem é objeto do querer, implica dizer que a escolha errada também seria um bem, uma vez que, de certo modo, também ela é querida. Assim sendo, o fato de os agentes escolherem errado, permite concluir que 53 “οὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη· οὐδὲ δὴ τὰ καθ᾽ ἕκαστα”. 54 “ἡ δὲ βούλησις ὅτι μὲν τοῦ τέλους ἐστὶν εἴρηται, δοκεῖ δὲ τοῖς μὲν τἀγαθοῦ εἶναι, τοῖς δὲ τοῦ φαινομένου ἀγαθοῦ. [...] συμβαίνει δὲ τοῖς μὲν [τὸ] βουλητὸν τἀγαθὸν λέγουσι μὴ εἶναι βουλητὸν ὃ βούλεται ὁ μὴ ὀρθῶς αἱρούμενος (εἰ γὰρ ἔσται βουλητόν, καὶ ἀγαθόν· ἦν δ᾽, εἰ οὕτως ἔτυχε, κακόν), (20) τοῖς δ᾽ αὖ τὸ φαινόμενον ἀγαθὸν βουλητὸν λέγουσι μὴ εἶναι φύσει βουλητόν, ἀλλ᾽ ἑκάστῳ τὸ δοκοῦν· ἄλλο δ᾽ ἄλλῳ φαίνεται, καὶ εἰ οὕτως ἔτυχε, τἀναντία”.

o τἀγαθοῦ unicamente não pode ser o único objeto do querer, a menos que se queira considerar a escolha errada também um bem.

Já a referência à posição sofista, dá-se em virtude da tese de que o bem é um modo particular de sentir-se atraído por um objeto que, dependendo da disposição do agente, apresenta-se como bem. O φαινομένου ἀγαθοῦ também seria um móbil do querer.

Após as objeções às teses tradicionais, Aristóteles começa a expor sua tese na forma de pergunta: “se, então, estas posições não são satisfatórias, não se deve dizer que é objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem, enquanto o que aparece a cada um é o bem aparente?” (ARISTÓTELES, Ethica Nicomachea, 2010, III, 6, 1113, a20)55. Aristóteles entende que, primeiramente, tanto o homem virtuoso quanto o de pouco valor desejam um objeto que lhes parece bom, entretanto, apenas o virtuoso é capaz de querer um objeto verdadeiramente bom. Sendo a virtude consolidada pelo hábito, o homem virtuoso é aquele que aprendeu em termos práticos a querer o bem. Este bem é de maior relevância do que um bem aparente φαινομένου

ἀγαθοῦ porque, por causa do exercício das virtudes, o homem virtuoso aprendeu a

distinguir o bem e o que apenas tem aparência de bem. Entretanto, Aristóteles dá a entender que o φαινομένου ἀγαθοῦ é primeiro a todos os homens, na ordem do querer: “mas é o objeto do querer o que parece bom a cada um” (ARISTÓTELES, Ethica

Nicomachea, 2010, III, 6, 1113, a20)56.

Esta parece ser uma tese central de Aristóteles: certamente é bom o bem enquanto tal, entretanto, é necessário que, independente de ser um bem real, uma coisa apareça como um bem, isto é, seja tomada como tal pelo agente. Esta é a conclusão do prof. Marco Zingano sobre esta seção:

Parecer um bem, ou seja, ser um φαινομένου ἀγαθοῦ, não é meramente uma aparência, de caráter enganador, como que o platonismo, mas é principalmente a condição lógica do bem humano, isto é, sua intencionalidade, que pode, secundariamente, se revelar como uma crença falsa, um bem aparente no sentido platônico do termo (Cf. ZINGANO, 2010, p. 193).

A questão fundamental, neste caso, não está num caráter pejorativo de uma aparência de bem que apetece ao querer, mas no modo como o ser humano vai se

55 “εἰ δὲ δὴ ταῦτα μὴ ἀρέσκει, ἆρα φατέον ἁπλῶς μὲν καὶ κατ᾽ ἀλήθειαν βουλητὸν εἶναι τἀγαθόν, ἑκάστῳ

δὲ τὸ φαινόμενον”.

relacionar com essa representação. Aristóteles tem claro que, sem a aparência de bem, não existe a apetência pelo objeto, mas ela não dispensa o julgamento do ser humano: “O homem virtuoso julga corretamente (κρίνειὀρθῶς) cada coisa e em cada uma a verdade se manifesta a ele” (ARISTÓTELES, Ethica Nicomachea, 2010, III, 6, 1113, a30)57. Pelo julgamento correto, κρίνειὀρθῶς, o homem chega à visão do verdadeiro em cada coisa. O homem virtuoso é, pois, não apenas aquele que age frequentemente bem, mas o que toma posse das razões pelas quais age e as tem diante de si, e isto faz dele um homem prudente. Se pela phrónesis, a virtude intelectual é posta em relevo, no homem virtuoso, suas disposições são moralmente boas.

O papel da phrónesisna restringe apenas às virtudes intelectuais. Existe uma relação entre a phrónesise as virtudes morais, assim como existe relação entre a

phrónesise a empeiria. Marcelo Perine esclarece este caráter paradigmático da phrónesis:

Aristóteles vai mostrar que phrónesis é um estado habitual cognitivo, isto é, racional e, por isso, é uma virtude intelectual, que, contudo, pressupõe seja um estado desiderativo, portanto, não-racional, seja um estado cognitivo não-racional, que é, justamente, a experiência (PERINE, 2006, p. 28).

O objetivo da phrónesis são bens humanos e estes são alcançados a medida que podem estar em consonância com a phrónesis. Não é a toa que o debate entre o ato voluntário e o involuntário envolva aquilo que aparece como bem e o que necessita de um posterior discernimento. Assim, nesse processo de desvelamento, não se deixar de lado a importância das intenções.

Aristóteles não parece citar o termo intencionalidade nas questões práticas, mas ela parece estar latente nesta questão da aparência de bem. Aristóteles tem claro que, sem a aparência de bem, não existe a apetência pelo objeto, mas ela não dispensa o julgamento do ser humano. Pelo julgamento correto, κρίνειὀρθῶς, o homem chega à visão do verdadeiro em cada coisa.

A aparência de bem, muito mais do que uma aparência enganadora, constitui- se como modus cognoscendi preparatório e necessário ao julgamento correto e à visão da realidade da coisa, em nível prático. Assim, até mesmo as coisas que, posteriormente, são constatadas como boas, também requerem uma aparência de bem e, no caso destas, um bem real. Assim, o homem virtuoso é, pois, não apenas

aquele que age frequentemente bem, mas o que toma posse das razões pelas quais age e as tem diante de si, e isto faz dele um homem prudente. Marco Zingano acrescenta que:

...enquanto no homem prudente φρόνιμοςé ressaltado o papel da virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais, no homem virtuoso σπουδαίoς o que é posto em relevo é o fato de suas disposições serem virtuosas ou moralmente boas (ZINGANO, 2010, p. 197).

Neste sentido, o domínio da virtude pode ser delineado não apenas pelo homem prudente, enquanto capaz de ponderar o que seria a virtude num determinado caso, mas também pelo homem virtuoso que é capaz e age segundo esta virtude. A relação entre bem e verdade, para Aristóteles, inclui, agora, certo ordenamento: primeiramente, aquilo que aparece como bem não é necessariamente bom e, por isto mesmo, necessita passar pelo julgamento do homem prudente, φρόνιμος, para, em seguida, revelar-se como verdadeiramente boa ou não.

A partir do esclarecimento aristotélico entre escolha deliberada e querer, esclarece-se qual o domínio de cada um destes atos e, consequentemente, qual sua relação com as virtudes: pertence ao querer ter o fim por objeto, enquanto os meios para alcançá-lo dizem respeito à escolha deliberada. Neste sentido, compreende-se que o fim é apenas reconhecido, isto é, não se constitui como objeto de escolha. O âmbito das escolhas são os meios, isto é, as ações que dizem respeito a elas são por escolha delibera e voluntárias. Aristóteles completa, dizendo que “as atividades das virtudes envolvem estas coisas” (ARISTÓTELES, Ethica Nicomachea, 2010, III, 7, 1113, b5). A conclusão de Aristóteles é a de que escolha deliberada relaciona-se diretamente às virtudes, uma vez que elas são meio e sobre elas se pode deliberar. Assim sendo, um entendimento adequado das virtudes requer a distinção entre a escolha deliberada e os diversos outros atos humanos.

Ao final do tratado dos atos, Aristóteles se posiciona acerca do que vem a ser o engano no julgamento em relação às ações: “à turba do engano, parece, engendrar- se devido ao prazer, pois, não sendo de fato um bem, parece ser” (ARISTÓTELES,

Ethica Nicomachea, 2010, III, 6, 1113, b1). Com isso, talvez seja possível afirmar que, para Aristóteles, o prazer, de certo modo, não contribui com o voluntário.

Tomás de Aquino adota uma postura distinta de Aristóteles neste ponto preciso. Segundo ele, o desejo sensível, caminhando no mesmo sentido da vontade para um

certo bem, contribui para aumentar o caráter voluntário das ações, ou seja, a sensibilidade, formada pela virtude, pode, por vezes, participar de uma ação boa. Assim, a conclusão que Tomás de Aquino propõe é dizer que a causa do involuntário não está necessariamente no desejo sensível, embora, ele possa, eventualmente, obscurecer o juízo.