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4 O PROJETO DE DEPOIS DA VIRTUDE E A TEORIA

4.1 O ANTES DE DEPOIS DA VIRTUDE

4.2.2 O conceito de práticas

Costumeiramente, Aristóteles fala da excelência na atividade humana referindo-se a algum tipo de prática humana bem definida: tocar flauta, guerrear, pensar geometricamente. Essas práticas proporcionam a oportunidade de expressão das virtudes, são o campo onde elas se desenvolvem. MacIntyre salienta que práticas não têm o sentido usual, nem também são a única base, através da qual as virtudes são exibidas. Qual é, pois, o sentido de Prática?

Prática é qualquer forma coerente e complexa de atividade humana cooperativa, socialmente estabelecida, por meio da qual os bens internos a essa forma de atividade são realizados, durante a tentativa de alcançar os padrões de excelência apropriados para tal forma de atividade, e parcialmente dela definidores, tendo como consequência a ampliação sistemática dos poderes humanos para alcançar tal excelência, e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos (MACINTYRE, 2007, p. 187)27.

Parece não haver escrito de ética que não traga exemplo. Assim, MacIntyre apresenta o exemplo de uma criança de sete anos que ele gostaria de ensinar xadrez, mas que ela não está imediatamente interessada no aprendizado do jogo. Como toda criança gosta de doce, ele o oferece a ela, desde que ela jogue xadrez, uma vez por semana, pois aí ela receberá 50 centavos em doces e, se ela vencer, vai receber mais 50 centavos em doces. Desse modo, a criança está motivada e joga para ganhar. Apenas os doces motivam, proporcionam à criança um bom motivo para jogar xadrez. Ela não tem razão para trapacear, e está cheia de motivos para trapacear, contanto que consiga fazê-lo com êxito. Entretanto, haverá um momento em que a criança vai encontrar, nos bens específicos do xadrez, na aquisição de certa capacidade especialíssima, imaginação estratégica e intensidade competitiva. Este será um novo conjunto de razões, e razões agora existem não apenas para vencer em determinada

27“By a ‘pratice’ I am going to mean any coherent and complex form of socially established cooperative

human activity through which goods internal to that form form of activity are realized in the course of trying to achieve those standards of excellence which are appropriate to, and partially definitive of, that form of activity, with the result that human powers to achieve excellence, and human conceptions of the ends and goods involved, are systematically extended”.

ocasião, mas para tentar destacar-se de todos os modos que o jogo de xadrez exigir. Caso a criança trapaceie, não estará derrotando o oponente, mas a si mesma (cf. MACINTYRE, 2007, p. 188).

Os bens internos ligados a essa atividade são realizados, durante a tentativa de alcançar os padrões de excelência apropriados a tal forma de atividade. O sentido de bem interno pode ser explicitado de duas maneiras: há certa capacidade que apenas o exercício dessa atividade pode proporcionar: no caso do jogo de xadrez ou de qualquer outro da mesma natureza, é a capacidade especialíssima de jogá-lo; a outra maneira se refere ao fato de que esses bens só podem ser identificados e reconhecidos pela experiência em participar da atividade.

Bens externos e internos ainda trazem outra característica relevante que proporciona uma maior compreensão e distinção. Bens externos, quando conquistados, são sempre posse de alguém. Além disso, sua posse é limitada de modo que eles não estão disponíveis para todos, sendo, portanto, objeto de disputa e concorrência. Por outro lado, bens internos, embora sejam objeto de competição, sua conquista se torna disponível a toda a comunidade envolvida na prática. Como, pois, a noção de bens internos se relaciona com a noção de virtude? A resposta a esta questão se apresenta na primeira definição provisória de virtude que Macintyre oferece: “a virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos capacitar a alcançar aqueles bens internos às práticas e cuja ausência nos impede, para todos os efeitos, de alcançar tais bens” (MACINTYRE, 2007, p. 191)28.

A definição provisória de virtude elucida sua função na vida humana: seu papel é proporcionar ao ser humano o acesso aos bens internos às práticas. Sua ausência significa, de certo modo, a negação do acesso a esses bens.

Ao conceito macintyreano de práticas, sejam elas jogos, artes, ciências, atitudes, também pertence o pressuposto de que os bens internos a essas práticas só podem ser adquiridos por meio da própria subordinação, dentro da prática, no relacionamento com outros praticantes. Toda prática, neste caso, requer certo tipo de relacionamento entre os seus integrantes. A função das virtudes é apresentar-se como uma referência para definir o modo de relação entre os integrantes da prática. É necessária a aceitação dos componentes necessários que a prática foi, aos poucos,

28“A virtue is an acquired human quality the possession and exercise of which tends to enable us to

achieve those goods which are internal to practices and the lack of which effectively prevents us from achieving any such good”.

estabelecendo como padrão interno de excelência. Diga-se isso principalmente da justiça, coragem e da sinceridade. A não aceitação desses padrões é análoga a estar disposto a trapacear, assim como a criança do exemplo acima. Assim, faz-se necessária uma constante valorização das virtudes e de seu papel na aquisição dos bens internos.

A relevância da sinceridade, da justiça e da coragem é realçada por MacIntyre, dado que essas virtudes definem o relacionamento entre os integrantes de uma prática:

Acredito, então, que do ponto de vista desses tipos de relações, sem os quais as práticas não se mantêm, a sinceridade, a justiça e a coragem, e talvez algumas outras, são excelências genuínas, são virtudes à luz das quais precisamos caracterizar a nós mesmos e aos outros, seja qual for nossa perspectiva moral ou os códigos específicos da nossa sociedade. Esse reconhecimento de não podermos escapar à definição dos nossos relacionamentos, segundo tais bens é perfeitamente compatível com o reconhecimento de que cada sociedade tem, e tem tido, códigos diferentes de sinceridade, justiça e coragem (MACINTYRE, 2007, p. 192)29.

Embora os códigos se apresentem como muito distintos, eles apenas o são, sob certos aspectos, distintos das virtudes particularmente; o que não acontece, porém, é o florescimento das virtudes em comunidades que não as valorizem. As virtudes são fundamentais porque elas consolidam as práticas e a aquisição dos bens relativos a elas.

As práticas, no entanto, não devem ser confundidas com um conjunto de capacidades técnicas. O que distingue o modo como os conceitos dos devidos bens e fins aos quais as capacidades técnicas servem é a aptidão que uma capacidade técnica proporciona à transformação e ao enriquecimento dos poderes humanos e da consideração por seus próprios bens internos. Estes, por sua vez, também vão definir parcialmente cada prática ou tipo de prática.

MacIntyre acrescenta que “as práticas nunca têm uma meta ou metas fixas definitivamente – a pintura [por exemplo] não tem tal meta, nem a Física – mas as

29“I take it then that from the standpoint of those types of relationship without practices cannot be

sustained truthfulness, justice and courage – and perhaps some others – are genuine excellences, are virtues in the light of which we have to characterize ourselves and others, whatever our private moral standpoint or our society’s particular codes may be. For this recognition that we cannot escape the definition of our relationshipsin terms of such goods is perfectly compatible with the acknowledgment that different societies have and have had different codes of truthfulness, justice and courage”.

próprias metas se transmutam, ao longo da história” (MACINTYRE, 2007, p. 193 )30. É, pois, em virtude da transmutação das metas que as práticas se modificam e, consequentemente, cada prática será portadora de uma história peculiar, diferente da história do aprimoramento de uma determinada capacidade técnica. Esta é, pois, uma dimensão história fundamental, na relação entre práticas e virtudes.

Práticas, virtudes, bens internos e externos se relacionam, pois, da seguinte maneira: numa sociedade que não valoriza as virtudes só poderia haver um reconhecimento dos bens externos, e, em hipótese alguma, dos bens internos, no contexto das práticas. MacIntyre acrescenta, “que em qualquer sociedade que reconhecesse somente os bens externos, a concorrência seria a característica predominante e até exclusiva” (MACINTYRE, 1988, p. 196)31.

Neste sentido, é possível delinear uma relação distinta entre as virtudes e os bens externos e internos. A posse das virtudes é necessária para se alcançar os bens internos; entretanto, esta mesma posse pode dificultar o acesso a bens externos, pois o cultivo de determinadas virtudes, como a justiça, a sinceridade e a coragem, pode, muitas vezes, impossibilitar o acesso às riquezas, ao prestígio, ao status. Nesse sentido, talvez seja possível pensar que, na verdade, a riqueza, o prestígio e o status sejam incompatíveis com uma vida virtuosa.

Desse modo, no sentido empregado por MacIntyre, as virtudes, mesmo proporcionando os bens internos às práticas, justificam-se, independentes de seus resultados, pois, embora elas sejam necessárias às práticas, o acesso aos bens não se dá de maneira unívoca.