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Conceitos ambivalentes

ABORDAGEM TEÓRICA

4. Conceitos ambivalentes

A vida emancipada continua sendo um grande paradigma, e lembro de um lema de Hipócrates: ‘Que o teu alimento seja o teu remédio, e que o teu remédio seja o teu alimento’. Ou ainda de outra chave para defender e servir à vida: a qualidade é dada pela variedade. Na expressão de Vassili Grossman, em seu livro La Madone sixtine: ‘Só a vida é o milagre da liberdade’.

Relembro o tema da variedade (que rejeite a dispersão, a confusão e o centralismo) como essencial para a sanidade de uma prática de sujeitos libertários. Algumas questões são profiláticas quando falamos de população em situação de Rua. Os próprios conceitos que usamos para identificá-los são ambivalentes, pois a realidade é mutante e complexa.

Ao estudar o povo da rua verifico a multiplicidade de instituições presentes. São organizações da sociedade civil, organismos de assistência social do Estado, movimentos sociais articulados, associações profissionais,

membros de partidos políticos, entidades culturais e filantrópicas, grupos religiosos de diversas confissões. Todos se defrontam com a memória do mal e a tentação do bem, presentes nas ruas e em seus projetos institucionais. Às vezes estas duas questões: mal e bem, são bem diagnosticadas, às vezes estão ocultas e dissimuladas. Tarefa árdua e permanente é não combater o mal, pretendendo ser o dono das virtudes. Sempre devemos ter o direito de optar e de não submetermo-nos às utopias sonhadas por outros. Afirma Todorov: “Devemos optar pelo direito contra a força, mas, entre duas forças, podemos preferir aquela que diz seu nome àquela que se dissimula atrás de uma máscara de virtude” (TODOROV, 2000, p. 309).

É necessário que os sujeitos possam ter o direito social de seu próprio julgamento, aceitar ou negar o moralmente correto. Assumir ou contestar o ‘politicamente correto’. Não ser estigmatizado ou culpabilizado como bode expiatório de política econômica ou social da qual não tem conhecimento ou atuação. Sujeitos pessoais e coletivos sem soberania e identidade tornam-se massa de manobra de grupos de extermínio, mas podem também tornar-se presa fácil de grupos de assistência social.

A tentação do bem é tão perigosa quanto o mal a ser superado.

“Nem o Estado democrático nem a ordem mundial não têm por vocação encarnar o bem; é preferível que a aspiração à santidade continue sendo um assunto privado” (TODOROV, 2000, p. 336).

É fácil perceber o quanto as instituições religiosas e filantrópicas são prisioneiras das estruturas. E três desvios acontecem em inúmeros casos: desvio de identidade, desvio moralizador e, sobretudo, o desvio instrumental.

Caminham para o centralismo, em nome da liberdade. Realizam gestos ditos filantrópicos, mas instrumentalizam as pessoas assistidas em suas obras sociais. Muitas vezes, privilegiam números e quantidade de valor econômico na ação com a população empobrecida. Reduzem os moradores de rua à categoria de assistidos, esquecendo-se de que são indivíduos concretos, pessoas nominais, cidadãos de direitos e deveres. Sujeitos em construção. Frágeis, mas infinitamente preciosos (TODOROV, 2000, p. 338).

Pergunta semelhante fez José de Souza Martins a frei Betto, quando da criação da Central de Movimentos Populares (CMP):

A constituição de uma central de movimentos populares retira deles a vitalidade que lhes é própria, a criatividade e a imaginação tão necessárias à renovação social e política de uma sociedade como a nossa. Penso que um caminho poderia ser o da criação de um grupo de avaliação e acompanhamento das organizações populares, que pudesse reconhecer as peculiaridades dessa forma de expressão das demandas sociais (MARTINS, 1993, p. 18).

Os dirigentes das instituições filantrópicas colocam-se as perguntas: como saber o que essa população quer? Como conciliar o serviço voluntário a uma decidida, inteligente e articulada ação transformadora eficaz? Como trabalhar com as pessoas de forma humana e personalizada?

Não muitos se perguntam sobre as implicações pessoais da democracia. Sobre os perigos da própria democracia deixada presa a mecanismos instrumentais. Poucos assumem a questão da identidade dos sujeitos e não só o resultado eficaz de planos estratégicos da administração política. Pouquíssimos vão às causas da indiferença e de omissões. Muitos se preocupam com as formas da ordem e resultados estatísticos.

Por que consentimos com tantas coisas intoleráveis? Sabe-se que a sociedade totalitária não pode portar salvação. Seus messianismos são ineficazes e destrutivos. Os populismos atrasam e aniquilam a participação coletiva.

Os grupos e atores sociais são desafiados por sua própria prática a repensar-se, a viver sempre em movimento, e a melhor compreender seu papel na humanização de categorias sociais em sociedades complexas e assimétricas. Se querem mudar as cidades, necessitam de um planejamento urbano crítico (SOUZA, 2002) que supere enrijecidas posturas tecnocráticas e racionalistas. E que o desenvolvimento urbano seja assumido em sentido autêntico como concreta e efetiva prática de justiça social. Assumido como utopia experimental, nos termos formais citados na obra de Henri Lefébvre (LEFEBVRE, 1991, p. 108). E o horizonte do largo e penoso processo será sempre a autonomia em sentido forte (SOUZA, 1998, p. 5-29).

Sobre o tema da autonomia, padre Júlio afirma:

A autonomia não é um fato que se dá. Ela é um processo. Estamos todos mergulhados em processos de autonomia. Na rua, na Igreja, na universidade. Sua autonomia vai até aonde? Como pai você tem limitações muito grandes do que se não fora? A autonomia é relativa. Eu acho que nós vamos viver com essa tensão sempre: entre ajuda e autonomia. Você pode ser mais ou menos paternalista e mais ou menos autônomo. Porque autonomia mais do que dada, ela é uma conquista. O Evandro, por princípio, não vai a albergue. Ele me disse: eu durmo embaixo da minha carroça. É uma opção dele. Há, entretanto, albergues, na política pública, que são mais ou menos facilitadores da autonomia. Esse é um critério que você tem que ter. Quais são os critérios? Na cartilha Vida e Missão, há critérios de uma

ação pastoral. E um dos primeiros critérios é a organização do povo e a construção de autonomia. E você vai medindo mais e menos, pois é uma organização que você conduz ou você facilita? Não é possível resgatar identidades com trabalho de massa. Por isso a questão tão crucial do formar comunidades. Do trabalho em pequenos grupos. De trabalhar a convivência. De fazer uma celebração mais inculturada. Na estrutura eclesiástica, o Vicariato poderia ser visto como algo extravagante, mas o dever ético, a prática com a população de Rua, sua não exclusão, são o ponto essencial. Os moradores de rua são muito incômodos para a Igreja. Você sabe quanta encrenca eu arranjei com os próprios padres por conta do povo da rua. Todo mundo quer colocá-los bem longe. Sempre me incomodou as pessoas dizerem: você trabalha com o povo da rua porque você gosta. Não é possível idealizar o povo da rua, como santo, coitadinho, bandido etc. Você precisa treinar, parar, refletir para entender essa questão. Não podemos dizer que só podemos fazer aquilo que se gosta. A Igreja tem que dar uma resposta. E são muitas respostas. Uma resposta para um grupo específico tão depauperado, qualifica a resposta e qualifica a vida. Você responde para pessoas que estão no limite é uma forma de tornar a Igreja mais fiel. Mais humana. E mais sensível. Pois se ela não responder e não se envolver com essa população ela vai ser infiel, insensível e desumana.

Impacta qualquer recente visita a um hospital público, ou mesmo a uma escola. O encontro com os moradores de rua desnuda. É possível vislumbrar o apocalipse. É como estar diante do fim de um modelo que nunca morre. Estou diante da banalização da injustiça social, na expressão de Christophe Dejours. Estou diante da agonia estendida, daqueles resultados concretos da precarização social que deveria ser excluída da vida e do pensamento.

“Precarização que não concerne apenas ao emprego, mas também a toda a condição social e existencial” (DEJOURS, 2000, p. 124).

Face aos atuais milenarismos e fundamentalismos emergentes, muitos pensam que já chegamos ao fim do mundo. Ou, pelo menos, ao fim do Brasil como projeto de nação. Querem excluir-se do País ou temem lutar por uma resposta coletiva. Assim multiplicam-se os guetos, e tornam-se impassíveis cidadãos e instituições jurídicas. Exemplo é que passados dois anos do assassinato de sete pessoas que dormiam nas ruas de São Paulo (18.08.2004), por um grupo de extermínio, que se utilizou de marretas para o crime, nada foi solucionado. Inércia total. Silêncio enervante do poder judiciário. Somado a esse massacre houve a recente campanha difamatória organizada pela revista Veja (São Paulo)26 e por Primeira Leitura, contra o padre Julio

Lancellotti e as associações de Rua, assumia claramente a ideologia do higienismo.

Podemos interpretar os fatos dessa exclusão expiatória sob chave psicológica:

Não somente há pouca mobilização coletiva contra a injustiça cometida em nome da racionalidade estratégica, como também as pessoas de bem aceitam colaborar em práticas que, no entanto, elas reprovam e que consistem principalmente, por um lado, em selecionar pessoas para condená-las à exclusão – social e política – e à miséria; e, por outro, em usar ameaças contra os que continuam a trabalhar, valendo-se do poder de incluí-los nas listas de demissões e

26 Revista semanal Veja, 11 de janeiro de 2006, página 92, repórter Camila Antunes, matéria:

de cometer contra eles injustiças em menoscabo da lei social

(DEJOURS, 2000, p.139).

Ecoa em nossos ouvidos a voz límpida de Simone de Beauvoir: “Palavras; é tudo o que eles tinham a me oferecer: a liberdade, a felicidade, o progresso; é desta carne oca que se alimentam hoje em dia” (BEAUVOIR, 1946, p. 369).

Mas, felizmente, existem outros atores que se atrevem a falar.

Em visita feita a uma oficina de artesanato na Baixada do Glicério, encontrei obra denominada Casa Cor da Rua 27, e presenciei como a vida se

bate cotidianamente com a discriminação e a indiferença. Lá, dentro de um imenso galpão, jovens, homens e mulheres se organizam, trabalham, e fazem surgir pequenas sementes de comunhão, sensibilização e organização popular. Lidam com fragmentos construindo belos mosaicos. As palavras sensibilização e arte são chaves do trabalho comunitário. O talento vem das mãos do povo da rua, e de jovens em situação de risco social. São prova de que a arte e o design não são patrimônios exclusivos de uma única classe social. A matéria prima vem da rua, do descarte urbano. Ao refazer alguns móveis e utensílios descartados, os próprios trabalhadores refazem o mosaico de suas vidas. Ali existem quatro oficinas: a Escola da OAF: A arte que vem da Rua; a Escola da Coopamare: Coop’Arte; a Escola da Cada de Oração do povo da Rua: Arte da Rua; e a Escola da Associação Minha Rua, Minha casa. Os produtos são mosaicos, luminárias com bagaço de cana e papel reciclado, e móveis restaurados.

27 Localizada na rua dos Estudantes 483, Glicério. Horário de segunda a sexta-feira das 8 às 16 horas; aos sábados das 9 às 15 horas. Telefone: 11-32729724.

A chave política é esta: vir de baixo, vir da Rua e construir a partir das pessoas e de suas potencialidades. Espécie de luta intermediária, que não se volte diretamente contra a injustiça e o mal, mas contra o processo de banalização do mal e da negação das pessoas.

A justiça e, por conseguinte a paz conquista-se por uma ação dinâmica de conscientização e organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes impotentes em seus projetos sociais, sem o apoio popular (CELAM, Conclusões de

Medellín, cap. 2, n. 18, 1985, p. 62).

Tempos de ausculta e silêncio interrompem o cotidiano violento e alienado. Superar a cegueira pelo olhar perspicaz é tarefa de cada um. Superar a intolerância infligida aos moradores de rua. Superar a normalidade da exclusão pela palavra profética e pela perseverança.

Aqui reside a síntese de uma nova gramática do humanismo. Que integre o eu autônomo ao tu reconhecido como outro, em sintonia com o nós, vivido na tensão entre o agente social e o participante da organização. Assumindo o princípio dialógico como categoria de reconhecimento, na feliz expressão de Tzvetán Todorov, apud Bakhtine. Só em um diálogo verdadeiro, no qual a voz do outro seja audível sem prejuízo da própria voz nem anulação da voz oposta, é possível uma autêntica igualdade (TODOROV, 1983).

Superar a normopatia, tal como diagnosticada por Hanna Arendt, e superá-la ultrapassando a distorção da comunicação, para afinal superar o próprio sistema que gera a exclusão, tornando a participação política algo criativo e não um simples meio (ARENDT, 2000). Essa é a perspectiva de um intérprete de Arendt, Christophe Dejours, ao afirmar:

Sistema que gera adversidade, miséria e pobreza para uma parcela crescente da população, enquanto o país não pára de crescer. Sistema que tem, portanto, papel importante nas formas concretas que assume o desenvolvimento da sociedade neoliberal (DEJOURS, 2000, p. 139).