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O grupo precursor das uruguaias

CENÁRIOS

1. O grupo precursor das uruguaias

Fui entrevistar a irmã Dalva Ivete de Jesus, que em São Paulo exerce tarefas importantes na Fraternidade das Oblatas e que conhecia as origens da presença católica com o povo da Rua. De forma humilde, ela apresentou-me um relato da chegada de um grupo de missionárias do Uruguai no ano de 1953, pelo porto de Santos, e de como haviam sido acolhidas no Hospital do Brás pelo padre Ignácio Lezama, também uruguaio.

Relata a Irmã Ivete:

A história mais clara com veracidade, quem a tem é a Cristina, que hoje está em Belo Horizonte, pois chegou antes de mim. O que eu sei é que a OAF (Organização do Auxilio Fraterno) foi fundada em 1955, por uruguaias que queriam ser monjas, mas que não queriam viver em um mosteiro. Elas queriam a vida do ‘Ora et Labora’, fora dos muros dos mosteiros, e aí encontraram um monge beneditino olivetano, capelão do Hospital do Brás, e fundaram uma Fraternidade sabendo que os mais pobres de São Paulo naquela época eram os operários. Elas foram, portanto, ser operárias na Indústria Matarazzo e na Phillips, assumindo este ‘Ora et Labora’, e foram percebendo que apareciam nas ruas de São Paulo outras pessoas que não eram os mendigos tradicionais, e que já eram fruto do desemprego, pois era a época em que se construiu muito prédio, muito viaduto, e isto deixou depois uma mão-de-obra sobrante. A OAF foi fundada em 1955 para atender este pessoal mais jovem – que não eram muitos – e que não eram mais os mendigos tradicionais da cidade 4.

O momento que precedeu a presença organizada da Igreja com o povo de rua já tem algumas marcas que permanecerão no futuro: a mística de unir trabalho e oração, a preocupação com a vida e o modo de viver dos mais pobres da cidade, e um claro discernimento em perceber as causas do crescimento dos moradores de Rua que não eram mais a mendicância conhecida na cidade de São Paulo, mas que se apresentava, como diz Ivete de Jesus, como mão-de-obra sobrante. É interessante notar que os anos da chegada das uruguaias e da irrupção de novos pobres na cidade coincidiram com a imensa migração nordestina que favoreceu a constituição do parque

4 Entrevista com irmã Dalva Ivete de Jesus, na Casa Cor da Rua, 06.01.2004, durante a Festa da Epifania.

industrial automobilístico, fruto da decisão política do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (que governou entre 1956-1961), pelo conhecido Plano de Metas, que pretendeu fazer do desenvolvimento a idéia chave de uma grande e rápida mudança, com o slogan: ‘50 anos em 5’. Milhões de pessoas foram desenraizadas por ampla migração forçada do Nordeste para o Sudeste brasileiro, e parte considerável tornar-se-á mão-de-obra excedente em periferias e centros urbanos.

A memória do padre Júlio Lancellotti ao valorizar o passado reafirma:

O Vicariato do Povo da Rua tem uma história que o precede. Ele não surge do nada. Existia aqui em São Paulo a Organização do Auxilio Fraterno, e a figura paradigmática da irmã Nenuca, que iniciou o trabalho com a população de Rua há mais de 35 anos” 5.

De fato, a pessoa de Griselda Marina Castelvecchi, conhecida como Nenuca, será estratégica na própria vida institucional da OAF como também em três décadas de trabalho nas Ruas. Creio que o vínculo que padre Júlio faz, personificando as origens com a vida exemplar da Nenuca e sua prática humana, é um momento importante na história.

Dom Paulo Evaristo Arns, ao ser entrevistado por minha pesquisa qualitativa, fez um largo preâmbulo para contar que em sua volta da Sorbonne, ao ser destinado para acompanhar estudantes franciscanos em Petrópolis, iniciara um trabalho com os pobres que viviam em sete morros do bairro Itamarati. Trabalho em que se manteve por dez anos. Visitava sempre as escolas e os doentes, e estas visitas o marcarão existencialmente. Ao ser

5 Entrevista com o padre Julio Renato Lancellotti, na Casa Vida, 27 de dezembro de 2003, Festa dos Santos Inocentes.

nomeado bispo, ele resistiu durante meses para aceitar o convite do Papa Paulo VI. Afinal, chegará a São Paulo em 1966 para ser bispo auxiliar e posteriormente arcebispo, em novembro de 1970. Eis o relato crítico do cardeal arcebispo emérito sobre a situação que ele encontrou ao chegar à cidade como bispo:

Quando cheguei a São Paulo, eu vi que não estava bem organizado. Havia a OAF, que me convidava e eu ia junto muitas noites com eles, para as vigílias da noite. Os pobres começaram a me interessar desde logo. Não estavam organizados, nem eles, nem os presos. Eram as duas coisas que me importavam muito. Eu fui começar a cuidar das duas coisas: dos presos e dos pobres. Eu ia toda semana visitar a Penitenciária, já como bispo auxiliar da Zona Norte. Para os pobres, nós fazíamos todo dia Sete de Setembro uma marcha, pois eu nunca fui para a parada militar. Nenhuma vez. Em 28 anos, eu não fui para a parada porque eu abomino isso e acho que não é o patriotismo que se revela lá. Que continuem fazendo se isso agrada a muita gente, mas a mim não me agrada. Então nós juntávamos os pobres em um lugar, e, como eles têm algumas pessoas influentes, sobretudo a OAF, preparava-se um almoço. Nós fazíamos uma Marcha paralela, por vielas e Ruas, enquanto o Exército marchava do outro lado. Depois, chegávamos a um lugar onde tinha comida para todo mundo, o que quer dizer, uma boa feijoada. Eu comia a feijoada junto. Em todo caso, estava certo que nós tínhamos os pobres do nosso lado, e onde quer que a gente fosse, eles diziam: aquele é o bispo que vai conosco no dia Sete de Setembro! Aquele é o bispo que vai conosco quando a gente tem uma festa! Aquele é o bispo que nos arranja as coisas quando nós não temos o que comer! Isto tudo foi de fato um trabalho preparatório muito bom. E entusiasmou a

região norte da cidade para trabalhar um pouco mais unida em favor dos pobres 6.

Dom Paulo insiste em que a presença do bispo com o povo de Rua e não nos desfiles militares do dia Sete de Setembro, demonstrava uma clara opção religiosa e uma mudança de lugar social da instituição e de seus representantes. Ele reconhece que dois grupos humanos não recebiam da Igreja institucional a devida atenção: os presos e os moradores de rua. Dom Paulo afirma que essa presença incipiente precisava de organização e planejamento articulado. Era, entretanto, preciso que o bispo (em nome da Igreja) estivesse pessoal e simbolicamente ao lado dos pobres e entusiasmasse as comunidades no engajamento.

6 Entrevista com dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo emérito de São Paulo, em sua residência no Jardim Guapira, no dia sete de janeiro de 2004.