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CENÁRIOS

6. As Missões Populares

O projeto da OAF sai das instituições e passa literalmente para as Ruas. A OAF se torna ‘rueira’ e assume como tarefa acompanhar a população em seu cotidiano de sofrimento.

A ‘comunidade dos sofredores de Rua’ 8 será construída lentamente e,

desde os anos 1990 realizará momentos de oração, nos baixos do Glicério e no Parque Dom Pedro. A sopa do Parque Dom Pedro II passará a ser feita no viaduto ao lado do Mercado Municipal (JORNAL DA RUA, março de 1990). A comunidade se reunirá na Rua dos Estudantes, 549, na Rua 25 de março, 205, e na ainda na Casa de Oração da Rua Riachuelo, 272.

Irmã Ivete refaz a memória da organização daqueles que perambulavam pelas Ruas a partir do núcleo da Casa de Oração:

Criamos uma coisa que se chamou Missão que era do dia 1º até 7 de setembro, uma grande festa na Rua, terminando no dia sete com uma grande passeata. E muitas destas passeatas eram recebidas na Catedral pelo cardeal, reivindicando, por exemplo, políticas públicas, direito de entrar nas Igrejas e de não serem expulsos, o direito de ir e vir, e daí nasceu a primeira Casa de Oração, na Florêncio de Abreu, atrás do Mosteiro de São Bento. Depois, os monges fizeram uma avaliação e acharam que era muito pobre em volta do mosteiro e pediram para sair. E nós saímos da casa abandonada da Marquesa. Os franciscanos ofereceram um salão, na Rua Riachuelo, que fora lugar dos nipo-brasileiros, um anfiteatro fechado, mas interessante. Com a operação inverno (já que não havia abrigo de inverno), os frades se intrigaram, achando que os pobres podiam pôr fogo no convento e mandaram-nos sair. E nós voltamos para a rua. Em um dos natais, dom Paulo veio aqui no viaduto Glicério, e celebrou conosco o Natal. Depois houve o inverno quando Paulo Salim Maluf era o prefeito, e nós fizemos um acampamento exigindo que se abrissem abrigos, pois o frio era intenso e o povo começava a morrer. Já havia acontecido quatro ou seis mortes na rua. No próximo Natal, na verdade, no tempo do Advento, a irmã Penha Carpanedo e a Irmã Yone Buyst criaram uma Vigília de Advento, na Catedral, que o Cônego Dagoberto Boim permitiu, pois era o pároco da Catedral. E a gente fazia essa vigília todo sábado à tarde, lá em cima, no altar, onde estão as cadeiras, todo mundo ia pra lá, e o povo que estava embaixo, que geralmente era gente pobre ou beatos, acabaram se entrosando e nós fizemos dois anos de vigílias na Catedral com o povo da rua, e depois preparando uma encenação para a Noite de Natal, ao lado de dom Paulo.

As missões religiosas feitas nas Ruas da cidade sempre culminavam em momentos celebrativos em praças públicas, ou mesmo em algumas Igrejas,

incluindo a Catedral Metropolitana de São Paulo. Alguns sacerdotes abertos à situação humana dos ‘sofredores’ tornavam-se parceiros de seu peregrinar.

As memórias de Nenuca, transcritas em seu livro, assim descrevem o caminho itinerante dos participantes daquela primeira Casa de Oração:

Vão chegando aos poucos. Alguns domingos são mais de oitenta. Chegam ao velho casarão, situado bem no centro da cidade, de fácil acesso para todos. Ali tem lugar para muitos. Vêm para participar da assembléia do dia, para passar uma tarde agradável, também para rezar. Podem entrar tranqüilamente os que vivem na Rua, a casa é deles. Podem entrar e tomar a palavra no canto, nas brincadeiras, nos grupos e nas orações. Ali começam a se encontrar e a expressar- se como são às vezes: meio bêbados, criando problemas na convivência, mas são sempre eles mesmos, sem verniz nem disfarce. Vêm de todo lugar: dos mocós mais próximos, de outros mais distantes, há os que chegam do “trecho” (que é o estar e caminhar pelas Ruas das cidades), e os que estão trabalhando em obras ou em biscates. Vêm de todo sofrimento: trazem experiências de roubos, brigas, mortes, injustiças, solidão (CASTELVECCHI, 1992, p. 97).

No casarão, contíguo ao Mosteiro de São Bento, o povo disperso se reunia, o povo das ruas se reencontrava. Ali, por muitos anos foi o lugar de encontro, onde os ‘sofredores’ passaram a ver-se e reconhecer-se como parte de um povo que, apesar de disperso, podia reunir-se, e expressar sua fé partindo da vida, descobrindo nos fatos de sua história o apelo de Deus para uma caminhada de vida, de libertação. O encontro, como toda novidade, era e é uma resposta ao convite que lhes foi feito para participarem da Boa Nova de Deus: “Não precisam mais andar de lá para cá nas tardes de domingo, nem desanimar por causa do sofrimento; o Senhor está a favor dos fracos, Ele quer

que seu povo se reúna”, dizia folheto da época. Hoje, o antigo casarão mudou de endereço, mas a missão permanece idêntica: reunir e acolher.

As Missões nasceram em 1979, com 80 participantes, e aconteciam anualmente no mês de setembro, em geral com duração de uma semana. Possuíam cunho social e religioso, tendo a Casa de Oração como ponto catalisador. Realizam freqüentes caminhadas pelo centro velho da cidade. Em Sete de setembro de 1991, ao ser feita a 13ª Missão, tal é a descrição do jornalista: “Quem estava ontem no Centro da cidade, pelas 17,30 h, ficou surpreso com o que acontecia. Mais de 300 pessoas celebrando a 13ª Missão fizeram uma caminhada pelo centro da cidade para denunciar a realidade que vivem a cada dia: fome, frio e solidão” (TRECHEIRO, 1997, ano I, n. 03/04 p.1).

Os lemas das Missões realizadas de 1979 a 1991 foram estes: 1979 – Anúncio da Palavra e vivência fraterna,

1980 – O Sofredor e a Cidade – comunidade, 1981 – Somos um povo que quer viver, 1982 – Somos um povo que quer viver, 1983 – Somos um povo que defende a vida, 1984 – Povo que quer viver, resiste para vencer, 1985 – Sem trabalho, casa e pão, não há libertação, 1986 – Lutamos noite e dia, por pão e moradia, 1987 – Estamos na miséria, queremos justiça séria, 1988 – Fizemos a cidade, não temos liberdade, 1989 – Sofredor não vai calar, é hora de mudar,

1991 – Entra na roda da Rua, vem que a festa é sua (TRECHEIRO, 1991, ano 1, n. 2).

A metodologia das Missões foi etapa importante na presença com a população de Rua da cidade paulistana. Momento de proximidade e convivência. Era momento de partilha, conversa pessoal e oração.

No percurso das Missões muita gente se agregou. Seminaristas dos missionários carlistas, franciscanos, alguns diocesanos e, de forma permanente e fiel, membros da Sociedade do Verbo Divino, os verbitas. Religiosas de inúmeras congregações e muitos leigos de paróquias e movimentos também se agregaram. Também alguns pastores metodistas e presbiterianos.

Os agentes religiosos caminharam juntos, trabalhavam, aprendiam e passavam as memórias e aprendizado aos que chegavam; alguns fazendo outros grupos; multiplicando e diversificando a convivência e o modo de estar ao lado do povo de Rua. As missões tornam-se Dias de Luta e depois momentos fortes na Quaresma e Campanha da Fraternidade em cada novo ano.

Do trajeto e da nova presença nas Ruas surge, em 1983, a Comunidade dos Sofredores da Rua, nos baixos do viaduto Glicério. Em 1986 passaram a atuar os Serviços Assistenciais Bom Jesus dos Passos, com o conhecido Rango de Pinheiros. Inaugura-se, no dia 22 de fevereiro de 1990, a Comunidade São Martinho de Lima, nos baixos do viaduto Guadalajara, no bairro do Belém. Em 1990, a Fraternidade do Povo da Rua, no Brás. No Parque dom Pedro II surge o Café do Coreano, oferecido pela Igreja Metodista Coreana e posteriormente pela Igreja Presbiteriana Coreana.