• Nenhum resultado encontrado

Pedras e flores pelo caminho

CENÁRIOS

11. Pedras e flores pelo caminho

Algumas mudanças aconteceram a partir das opções da OAF e da criação do Vicariato do Povo da Rua.

O serviço pastoral anunciou-se como um sinal de esperança, acolhida e defesa da vida dos que viviam espalhados, esquecidos e evitados, pelas ruas da cidade. Naquela noite de Natal de 1993, o povo de rua conquistou um espaço na Igreja Católica de São Paulo.

Espaço que até aquele momento jamais detivera. Ganha reconhecimento aquilo que Nenuca, padre Ignácio e tantos leigos da OAF tinham semeado por 38 anos. O grito profético reverberava há décadas: “Somos um povo que quer viver”, e provocava uma abertura na estrutura eclesiástica da Igreja Católica em São Paulo. Contrariamente ao bíblico “não havia lugar para eles”, registrado nos Evangelhos e dito a José e Maria, naquele Natal de quase 2 mil anos passados, ouvia-se no ano de 1993 um sim acolhedor. Havia lugar para esse povo na Igreja paulistana. Não mais um lugar de ‘piedade’, mas lugar de direito, que lhes era reservado por sua perseverança na luta do dia-a-dia para continuarem vivos. Lugar eclesial para que formassem comunidade, solidariedade, enfim, reconhecidos e valorizados como pessoas, em seus trabalhos, direitos e sofrimentos.

O que pretendia ser o novo Vicariato Episcopal? Assim responde o padre Júlio Renato Lancellotti:

Sempre ficou muito claro para nós de que sempre íamos ter duas vertentes. Nunca dom Paulo ou dom Cláudio Hummes disseram: eu quero que o Vicariato faça isto. No direito canônico, o vigário episcopal é um ordinário sem caráter. Ele responde pelo bispo naquela questão ou área. Nós tivemos sempre a preocupação da construção coletiva. Sempre tivemos dois pontos que nos marcaram. A primeira vertente é a pastoral e metodológico. Qual é o método? Esta é questão pastoral, enfim. Como se trabalha com a população de rua? Eis a questão.

Durante alguns anos, a questão do fundamento pedagógico e metodológico, acompanhou as preocupações teórico-práticas de muitos agentes. Não era a única vertente de ação e reflexão. Havia outra, como diz Júlio:

A outra questão é a vertente (política) das políticas públicas. Nós temos que trabalhar esses dois sentidos. Usar o peso do Vicariato institucional para trabalhar, aprofundar uma questão metodológica, pedagógica e pastoral. Que resultou na Cartilha (Pastoral do Povo de Rua: Vida e Missão, São Paulo, Loyola, 2003). Era o resultado formal de uma reflexão. A cartilha é a reflexão da prática. Aquilo não é teoria. Bom, é uma teoria no sentido verdadeiro de teoria. Teoria como o fato de ter pensado e avaliado a prática, com os depoimentos da população de rua. E essa é uma prática presente em vários lugares: Belo Horizonte, Ceará. A Cristina anima a pastoral de rua em Belo Horizonte há dez anos, extremamente articulada, conhecida e valorizada. Nós assumimos muito a questão da vertente política. Para nós a caridade maior, segundo o Papa Pio XI, é a política, é o amor político. Nós não vamos atingir só aqueles que estão conosco. Nós queremos atingir a população de Rua como um todo. Fomos, portanto, discutir política pública em nível estadual, municipal, federal. Havia uma prática do governo do Estado que era o Cetrem com o departamento de migrantes. Mas, a população de rua muda de perfil.

Houve avanço grande na gestão da Luiza Erundina, quando iniciamos novos trabalhos com a população de Rua. Tivemos o início do esboço de uma política pública, que contou muito com a figura pessoal da prefeita. Em função de sua qualificação profissional e da ligação prévia que tinha com os movimentos sociais e em especial com o movimento da População de Rua. Porque no caminhar da Casa de Oração tínhamos a Missão. E a Luiza tinha participado das missões. Vinha gente de todo o Estado de São Paulo e levava uma semana de missão. Tínhamos a figura do padre Alfredinho (Fredy Kunz). Há muitos personagens. Temos a Cinira. É uma história muito densa. A sopa lá no Glicério com a irmã Ivete, a famosa sopa! No governo da Luiza Erundina surge a Comunidade São Martinho do

Povo de Rua (em 22 de fevereiro de 1990) com o apoio de dom Luciano Mendes de Almeida. A Rede Rua surge nessa época da Luiza também. Gente como Arlindo e Alderon que foi formada na Casa de Oração.

Uma das novidades dessa vertente política foi o surgimento, em 1994, de um grupo de treze moradores de rua articulados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), e que em 22 de dezembro, participaram da ocupação da Fazenda Pirituba em Itapeva (Trecheiro, dez. 1995, ano V, Especial Sem-Terra).

As críticas do povo da rua permanecem ácidas, como conta irmã Ivete:

O povo da Rua tem uma crítica tremenda à Igreja Católica. Sempre teve. Às vezes, até criticam Jesus Cristo. Dizem: ‘Se ele morreu na cruz é porque alguma coisa ele fez’. Ele tem uma extrema reverência por Deus. Ir à Igreja, eles não acreditam mais. Nem à Igreja do Davi Miranda (Deus é Amor), nem a do bispo Edir, nada. Para ele, estes bispos e Igrejas não chegaram a uma vivência cotidiana. Poucos falam de dom Paulo. Os pobres da periferia falam muito do cardeal. Os da rua não chegaram a entender a posição dele, que é uma posição super-radical. Eles, os da rua, acreditam em Deus: Deus é muito bom! Eles não acreditam em Igreja, pois nela transita a questão econômica. E a questão econômica cria desconfortos. Até mesmo o padre Júlio é por eles criticado. Um dia, Nelson chegou aqui para tomar café e disse: ‘Quem trabalha não tem tempo de ganhar dinheiro’. Essa é a filosofia dele. Quando saiu a frente de trabalho, ele queria ficar aqui conosco. Eu nem consultei o grupo e disse a ele: ‘quem trabalha não ganha dinheiro’. Aqui não é o seu lugar. Ele sabe que quem trabalha, de fato, não ganha muito dinheiro. Mas ele replicou: ‘Vocês me criticam, pois dizem que eu achaco. Ontem o padre Júlio estava achacando na Igreja. E a gente da rua não pode

achacar?’ A crítica de dele era porque padre Júlio, na missa, havia pedido dinheiro nas ofertas, para a coleta das missões, e ele via nisso uma grande contradição, criticando-o fortemente.

Os depoimentos que registramos formam belo quadrívio de testemunhas imprescindíveis que se entrecuzam e se completam, e onde todos nos reconhecemos: "Somos de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê em seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirme a nossa visão” (BOSI, Ecléa, 2004, p. 407).

CAPÍTULO SEGUNDO - DA EXCLUSÃO À CIDADANIA