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Nenuca e a crise deliberada

CENÁRIOS

4. Nenuca e a crise deliberada

A morte do diretor espiritual e guia das uruguaias gera crise importante no projeto. Crise assumida conscientemente pelas Oblatas.

Eis a análise da irmã Ivete:

Ele morrendo, a Nenuca teve que assumir a coordenação desta pequena fraternidade, que era multidisciplinar, com características bem diferentes do quotidiano de uma fraternidade da vida religiosa, pois umas eram economistas e outras operárias, e, portanto, um grupo com uma grande diversidade de formação. E a OAF se torna uma grande entidade assistencial em São Paulo e em Recife. Em 1975, a OAF tinha os melhores albergues de São Paulo, do Brasil e isto tudo inspirado em no movimento de Emaús, da França, mas surge a Teologia da Libertação, e um dia dom Paulo chama Nenuca e fala assim: ‘Coloca Puebla na Rua’. Numa conversa muito íntima e informal ele falou: ‘não era bom colocar Puebla na Rua?’. Eu acho que ele falou isso sem imaginar o que ia acontecer. Pois aí a OAF

desmoronou. A Nenuca fechou tudo: todos os albergues, todas as casas, a OAF tinha convênio no âmbito federal, municipal e estadual, e devolveu tudo e disse: ‘agora as Oblatas vão voltar para as Ruas para conhecer de novo o novo perfil da população de Rua e nós vamos assumir a Teologia da Libertação como estilo de vida’. E a Teologia da Libertação tinha os seus paradigmas: organizar a população, restaurar a cultura, restaurar a religiosidade, então nós começamos isto no viaduto. A criar comunidades, a celebrar, a organizar as cooperativas, as moradias, as festas religiosas, isto tudo embaixo dos viadutos ou em praças.

A ênfase da irmã Ivete está na coerência do projeto e estilo de vida e, sobretudo, no ato de conhecer o perfil mutante dessa população.

Padre Julio Lancellotti assume outra inflexão sobre a mudança institucional e o momento crítico da OAF:

Um ponto importante é quando a OAF tinha uma prática muito mais de acolhida, casa de mulheres, casa de meninos, uma prática bem próxima a essa população na Rua e de situação de Rua. Mas dom Paulo pediu, quando surgiu a Conferência (1979) Latino-americana de Puebla, que elas levassem as conclusões para a rua. Que as Oblatas de São Bento vivessem isto. E isto trouxe uma reformulação de toda a prática. Elas fecharam todas as casas, que eram casas de acolhimento, e passaram a viver muito mais próximas da população de rua e também fazer a experiência desta população. Houve uma intuição da irmã Nenuca, de que o povo que vivia nas ruas não tinha um espaço de expressão da fé. Onde eles iriam exprimir sua fé? Como é que eles iriam vivenciar sua fé? Todo mundo quer dar algo para o povo da Rua: comida, roupas. Quer dar alguma coisa. Nem sempre quer conviver com ele. E construir com ele alguma possibilidade. Ou rezar com eles, celebrar com eles. Vivenciar uma experiência eclesial. Uma experiência de fé a partir deles e com eles.

Padre Júlio dá ênfase à perspectiva da convivência, da experiência compartilhada e da emergência de sujeitos autônomos. Aquilo que ele chama ‘a partir deles e com eles’.

Ao participar durante alguns anos da suas vidas, as Oblatas perceberam que era preciso oferecer alternativas concretas, e organizaram instituições de qualidade em assistência social, em São Paulo e Recife. Mas a irrupção da Teologia da Libertação como um pensar crítico da realidade de empobrecimento latino-americana, e como um momento segundo do pensamento cristão tornará inevitável a crise do modelo de atendimento e a mudança de práticas sociais. As duas Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano realizadas em Medellín (1968) e Puebla (1979) colocarão na ordem do dia a emergência dos pobres como sujeitos eclesiais a partir da emblemática opção preferencial pelos pobres. Entrarão para o cenário religioso e político os conceitos da Teologia da Libertação, gestada inicialmente por Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Rubem Alves e Leonardo Boff.

Os quatro teólogos podem ser considerados os pais da corrente teológica da libertação. Gustavo Gutierrez imprime seu primeiro texto em julho de 1968, em Chimbote, Peru, ampliado e editado em 1971, em Lima (GUTIERREZ, 1971). O teólogo presbiteriano Rubem Alves publica seu texto nos Estados Unidos, em 1969 (ALVES, 1969). Leonardo Boff lança Jesus Cristo Libertador em 1972, em Petrópolis (BOFF, 1972). E, enfim, Hugo Assmann lança, em 1976, suas reflexões em Salamanca, na Espanha (ASSMANN, 1976). Vale lembrar nomes dessa primeira hora: Enrique Dussel, dom Helder Pessoa Câmara, dom Manuel Larraín, Richard Schaull e dom Cândido Padin.

Ao assumir a Teologia da Libertação como estilo de vida e proposta alternativa, Nenuca e suas companheiras trazem Puebla para as Ruas e alteram profundamente o modelo de ação social desenvolvido até o ano de 1979. Aqui aconteceu um ponto de mutação, que terá conseqüências profundas na Igreja e na presença católica no centro urbano da cidade. A teologia apresentada em Medellín e Puebla, conhecida como Teologia da Libertação, realizou uma ‘violação’ da linguagem teológica e religiosa no continente, e foi a pedra de toque da mudança estrutural de ações religiosas e práticas sociais. Aconteceu na teologia e na prática evangelizadora aquilo que Thomas S. Kuhn analisara nas revoluções científicas (KUHN, 1989, p. 93).

Irmã Ivete comenta algumas crises posteriores da tomada de decisão e fala sobre as esperanças acalentadas por Nenuca:

Nesta época, além de fecharmos tudo, nós começamos a sair de São Paulo e a ir para São Mateus, no Espírito Santo, pois havia uma experiência de comunidades de base, com as irmãs combonianas. Fomos para o Mato Grosso, fomos para a cidade onde havia comunidades que se organizavam. Chamamos o frei Carlos Mesters e o padre. Arturo Paoli. Fomos buscar os grandes mestres, Gustavo Gutierrez, para a gente poder ouvir um pouco desta nova teoria, que é que o pobre tem que se organizar. Um dia, estávamos nós juntas, em um retiro, e uma das meninas disse o seguinte: ‘eu não estou acreditando que o pobre vá se organizar’. ‘Eu vejo é muita bebida, já que (neste tempo) não havia tanta droga. Muita violência, muito problema mental’. E a Nenuca disse: ‘Vai ter um sinal e nós vamos esperar este sinal’. E disse a menina: ‘Você pode até ter razão, mas o sinal vai ser quando esses pobres tiverem filhos. Esse vai ser o nosso sinal. Quando eles começarem a constituir família: esse vai ser o sinal’. Isso foi em 1978, quando eu vim morar no Glicério. Nós

ocupamos nove casas abandonadas que tinham por aqui, todas estragadas, e começamos a invadir e a organizar a comunidade e ao mesmo tempo a sopa. A sopa e a comunidade. E aí nasceu a primeira criança de um casal da Rua. Ela em uma casa abandonada e ele na Rua. E foram morar naquela vilinha, que é da Igreja, perto da atual Casa de Oração, e hoje uma destas é uma menina que tem 21 anos e trabalha na Secretaria da Habitação e passou em jornalismo este ano e têm três filhos. Ela é funcionária da Casa de Oração e depois, em seguida, casou o Paulo, com uma trombadinha da Sé, que mais parecia um menino, e vieram morar do meu lado, e tiveram três filhos (o primeiro morreu) e estão hoje na periferia, têm um carro, continuam catando papelão na 25 de Março. Depois veio o Carlinhos, que é da Cooperativa, também casou. A Maria, que já tem netos. Quando nasceram essas crianças, a Nenuca nos reuniu de novo e disse: ‘O grande sinal está aí, as crianças nasceram’. Agora, é possível organizar o povo da Rua!