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3. COMO SE EXPRESSAM AS DIFERENÇAS? AS DEFINIÇÕES DE EQUIDADE E

3.1. DESIGUALDADES EM SAÚDE: O QUE É JUSTO E O QUE É INJUSTO

3.1.2. Conceitos de Equidade e Igualdade em Saúde

Albrecht, Rosa e Bordin (2017) afirmam que a saúde participa da justiça social de várias formas distintas, uma vez que é um componente fundamental das possibilidades humanas e, por isso, a análise da equidade e da igualdade em saúde deve focar em como a saúde se relaciona com outras características por meio da distribuição de recursos e acordos sociais. Sen (2002) apresenta o conceito de desigualdades em saúde como um conceito multidimensional que inclui: i) aspectos que dizem respeito a possibilidade de alcançar uma boa saúde e não apenas com a distribuição da atenção sanitária, ii) a promoção de justiça nos processos, prestando atenção na ausência da discriminação da prestação da assistência sanitária e iii) a integração

entre as considerações sobre a saúde e os temas mais amplos da justiça social e da equidade global.

De acordo com Albrecht, Rosa e Bordin (2017), o conceito de equidade em saúde começou a ser debatido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1986, por meio da Carta de Ottawa – documento resultado da Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde –, sendo um dos oito pré-requisitos da saúde (OMS, 1986). O termo ganhou espaço nas conferências subsequentes, a ponto da OMS solicitar a elaboração de um documento dedicado à aprimoração da definição da equidade em saúde.

Contudo, como dito anteriormente, existe uma dificuldade em definir e diferenciar os conceitos gerais de equidade e igualdade, e seus contrários, desigualdade e iniquidade. Em saúde esses conceitos ainda se relacionam a outros três: i) desigualdades em resultados de saúde, ii) no uso de serviços de saúde e iii) no financiamento em saúde. Devido às limitações deste trabalho e à proximidade dos métodos estatísticos na mensuração dos dois primeiros conceitos, o estudo se dedicará aos dois primeiros. De acordo com Nunes et al. (2001) os determinantes das desigualdades em saúde não são os mesmos das desigualdades no consumo de serviços de saúde, como também a equidade no uso de serviços de saúde não resulta, necessariamente, em igualdade da situação de saúde. A separação entre estes princípios não se dá na distinção de direitos entre os indivíduos, já que todos têm igualdade de direitos em ambos os sentidos, mas ocorre na forma como esse direito é atendido, o que resulta em perspectivas diferentes em relação às regras distributivas.

Nunes et al. (2001) destacam um aspecto importante quando se trata de atenção à saúde: a escolha de quem deve merecer a atenção do Estado não é óbvia. Neste caso, a opção de muitos países, que contam com diferentes regimes políticos, é a utilização de um sistema de saúde universal, que leva em consideração os seguintes fatores: i) Imperfeições de mercado, ii) Impossibilidade da população em geral, ou grande maioria dela, custear diretamente os serviços de que necessita, iii) Dificuldades operacionais em discriminar quem pode de quem não pode se valer do mercado e em que situações e iv) Existência de externalidades positivas geradas pela presença dos estratos mais afluentes nos serviços públicos de saúde (NUNES et al., 2001). Esta discussão acerca do merecimento tem relação direta com os conceitos de igualdade horizontal e vertical, que são tratados por Le Grand (1987a). O autor afirma que a igualdade vertical se refere à prestação de cuidados diferentes aos indivíduos que pertençam a grupos populacionais com diferentes capacidades2 sociais e econômicas, enquanto o conceito de

igualdade horizontal se refere a prestação de um tratamento de saúde igual para aqueles em iguais condições socioeconômicas. Contudo, aponta quatro problemas na utilização da primeira definição: i) o que são necessidades desiguais?, ii) como é possível identificar todas as dimensões das desigualdades entre pacientes?, iii) como medir diferentes graus de necessidade e, consequentemente, merecimento de tratamento diferenciado?, iv) como tratar de forma desigual as desigualdades?. Por isso, ele recomenda a utilização do conceito de igualdade horizontal quando se tratar de igualdade em saúde. Assim, pacientes em iguais condições devem receber um tratamento de saúde que permita alcançar um estado de saúde semelhante.

Granja, Zoboli e Fracolli (2013) também tratam do conceito de igualdade relacionado à saúde de forma muito semelhante aos conceitos apresentados por Le Grand (1987a), ou seja, por meio de duas vertentes: a primeira define igualdade como o tratamento igualitário a todos os indivíduos, priorizando as ideias de universalidade de acesso aos serviços de saúde; a segunda, define igualdade como o tratamento ou a prestação dos serviços de saúde de forma desigual para os desiguais, priorizando os mais necessitados segundo suas condições socioeconômicas e alguns grupos específicos, segundo os critérios de risco.

Quando se trata das desigualdades em saúde causadas por fatores injustos, ou iniquidade, a autora mais citada na literatura é Whitehead (1991, 1992), que considera que, além das diferenças em saúde serem desnecessárias e evitáveis, incorretas e injustas, acrescenta uma dimensão moral e ética do termo. O termo ganha uma perspectiva moral e ética na medida em que incorpora o conceito de que, embora os fatores biológicos e os efeitos de pessoas doentes se deslocando para classes sociais mais baixas sejam em parte responsáveis pelas diferenças em saúde, os fatores socioeconômicos e ambientais são os protagonistas nesse cenário.

Esse conceito foi elaborado pela autora no documento de consultoria para a Organização Mundial da Saúde (OMS), posteriormente publicado no International Journal of Health Services com o título The concept and principles of equity and health. Ao discorrer sobre equidade e saúde, Whitehead (1992) parte de dois pressupostos: i) Grupos de pessoas menos favorecidas têm menores chances de sobrevida e ii) Existem grandes diferenças nas experiências de adoecimento entre as pessoas. A questão da injustiça se relaciona com o nível de escolha envolvido, pois, existem pessoas que possuem pouca ou nenhuma escolha sobre as condições de vida e de trabalho, e isso resulta em disparidades em saúde.

Para Whitehead (1992) a equidade exige que, idealmente, as pessoas tenham oportunidades justas de atingir seu potencial em saúde e que ninguém deveria ser menos favorecido de atingir esse potencial, caso essa situação possa ser evitada. Para isso, ela defende

a utilização de políticas que deveriam reduzir ou eliminar as diferenças em saúde que são resultado dos fatores considerados evitáveis e injustos. Na década seguinte, observa-se a influência das contribuições de Whitehead por meio da substituição gradual do enfoque na igualdade dos cidadãos pela ênfase na redução das disparidades sociais e regionais existentes nos países (ALBRECHT; ROSA; BORDIN, 2017).

Segundo Vieira-da-Silva e Almeida Filho (2009) o principal problema no conceito de Whitehead é que ela não apresenta nenhum conceito de justiça para fundamentar sua proposição das diferenças evitáveis e injustas, mas, quando define equidade no cuidado de saúde como “acesso igual para cuidado disponível para necessidades iguais” (WHITEHEAD, 1992, p. 434), acaba por incorporar fórmulas implícitas de justiça abstrata no sentido de Perelman (1996, p. 9): “a cada qual a mesma coisa”.

Num trabalho anterior, Vieira-da-Silva e Almeida Filho (2009) propõem um conjunto de conceito que se afasta desse aspecto que dá enfoque à justiça social e se aproxima das diferentes dimensões do processo saúde-doença, e exploram os conceitos de: diferença, diversidade, distinção, desigualdade e iniquidade. O primeiro deles se refere às disparidades identificadas à nível individual e, o segundo, à nível da espécie, sinalizando as variações entre grupos de indivíduos. O conceito distinção remete à dimensão simbólica, o de desigualdade incorpora a dimensão da justiça e o de iniquidade adquire sentido na dimensão política de repartição das riquezas na sociedade.

Breilh (1998) também propõe três conceitos distintos e complementares relacionadas ao processo saúde-doença para tratar das diversidades existentes em uma população. O conceito de diferença, que se aplicar às variações observadas na distribuição das doenças em populações e constituiriam a expressão nos indivíduos: ou da diversidade, em sociedades solidárias, ou da iniquidade, em sociedades em que haja concentração de poder; o conceito de distinção, que remete às práticas sociais cotidianas constitutivas das identidades individuais e o conceito de desigualdades ou diversidades, que se refere às diferenças produzidas no processo social em decorrência das diferenças na distribuição das posses e do poder entre grupos sociais em uma dada formação histórica.

Para o autor, a iniquidade é uma categoria analítica que marca a essência do problema da distribuição de bens na sociedade, enquanto a desigualdade corresponde a evidências empiricamente observáveis. Quando a iniquidade surge, a diversidade assume um papel negativo, tornando-se veículo de exploração e subordinação. No entanto, a diversidade pode ter um sentido positivo, quando corresponde às variações em características de uma população, como gênero, nacionalidade, etnia, geração, cultura.

Le Grand (1982, 1987b) e Mooney (1983, 1986) também trazem definições alternativas. O primeiro autor ressalta que a equidade deve ser avaliada pelo lado do demandante de saúde, considerando suas capacidades de dispender tempo e dinheiro para ter acesso aos cuidados de saúde, permitindo assim que sejam realizadas políticas que promovam uma distribuição dos serviços, espacial, temporal e de financiamento, que seja considerada socialmente certa e justa. O segundo autor destaca que a equidade de acesso é um fenômeno do lado da oferta dos serviços, qualificação dos profissionais, disposição de horários de prestação, infraestrutura e outros fatores.

Macinko e Starfield (2002), por sua vez, fazem uma crítica direta à inclusão do conceito de justiça na discussão acerca da equidade, afirmando que esse conceito traz problemas operacionais, pois se utiliza de julgamentos de valor. Propõem então usar a definição de equidade adotada pela International Society for Equity in Health (ISEqH), segundo a qual, o significado de equidade corresponde à ausência de diferenças sistemáticas potencialmente curáveis em um ou mais aspectos de saúde, em grupos ou subgrupos populacionais definidos a partir de critérios sociais, econômicos, demográficos e geográficos. Essa concepção, no entanto, não distingue equidade de igualdade ao defini-la como “ausência de diferenças”. Contudo, possui vantagens operacionais, pois, ao deslocar o problema das diferenças para o âmbito do controle técnico (diferenças curáveis), permite uma melhor identificação do que seriam situações iníquas para fins de intervenção.

Barata (2001) conclui que, enquanto o conceito de desigualdade incorpora a ideia de uma repartição desigual produzida pelo próprio processo social, isto é, a percepção de que o acesso a bens e serviços e a um dado nível de saúde está fortemente determinado pela posição que os indivíduos ocupam na organização social; o conceito de equidade inclui a ideia de necessidade, ou seja, parte-se do princípio de que os indivíduos possuem diferentes necessidades e que, portanto, a simples partilha igualitária dos recursos não atenderia, obrigatoriamente, a essas necessidades. A impossibilidade de realizar as necessidades seria, então, vista como injusta ou, iniquidade.

A definição utilizada neste trabalho para o par igualdade e desigualdade se aproxima daquela apresentada por Le Grand (1987a) e Granja, Zoboli e Fracolli (2013) de igualdade horizontal, que também é o conceito utilizado na Constituição Federal de 1988 e, consequentemente, pelo Sistema Único de Saúde, que indica que igualdade dos tratamentos de saúde, ou dos resultados de saúde, avalia indivíduos em iguais condições. Contudo, conforme os conceitos que se utilizam da justiça social, essas condições irão se referir àquelas que são consideradas justas, ou que produzem desigualdades esperadas. Para o estudo da equidade de

acesso à saúde será utilizado o conceito de Whitehead, que incorpora a justiça social e característica de evitabilidade das diferenças injustas, e leva em consideração o efeito das condições socioeconômicas, culturais e ambientais sobre as capacidades dos indivíduos.