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4. A INFLUÊNCIA DO BEM-ESTAR SOCIAL NA CONTRUÇÃO DO ESTADO DE

4.5. CONQUISTA SOCIAL NO CENÁRIO DE AUSTERIDADE: A CONSTITUIÇÃO DE

Em resposta aos acontecimentos das décadas de 1960 e 1970, Pereira (2010) relata que, os movimentos sociais se intensificaram, gerando uma pressão crescente para que mudanças ocorressem no formato das políticas sociais no Brasil. Movimentos das classes de profissionais de saúde, de intelectuais, da população e parlamentares engajados com as mudanças no modelo de saúde se tornaram luta política.

Merhy (1997) identifica nesse cenário três correntes que apresentavam propostas distintas: i) o primeiro de cunho conservador, que defendia a privatização total da assistência medica e atribuía ao Estado a responsabilidade pelas ações de saúde pública, organizando os serviços pela lógica do mercado; ii) a segunda corrente, com um viés reformador, defendia que o sistema de saúde deveria se adequar às necessidades da população por meio de um sistema de planejamento de saúde, que trazia uma série de reformas, principalmente relacionadas à forma dos gastos e dos benefícios, à descentralização e unificação dos serviços; iii) a última vertente tinha um caráter transformador, pois defendia a redemocratização do poder político e a socialização dos benefícios. Esta foi a corrente que se tornou mais robusta até o final da década de 1970, defendia mudanças estruturais na relação entre o Estado e a sociedade, para as quais o resultado seria a efetivação do controle da sociedade sobre as ações do Estado.

Neste contexto, em 1975, ocorreu a quinta Conferência Nacional de Saúde, com temas de discussão que demonstravam o caráter transformador do período, como i) a Implementação do Sistema Nacional de Saúde, ii) Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, iii) Programa de Controle das Grandes Endemias e iv) Programa de Extensão das Ações de Saúde às Populações Rurais. Um marco deste período foi a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), fundado em 1976, que teve grande participação na organização do movimento para Reforma Sanitária Brasileira (PAIM et al., 2011).

De forma geral, o movimento da reforma propunha que a saúde é uma questão social e política a ser abordada no espaço público, incluindo os determinantes sociais e educacionais da saúde e sua forte associação com a capacidade de redução da pobreza. Era preciso garantir a saúde como um direito humano, agente promotor de mudanças socioeconômicas (KLEINERT; HORTON, 2011, SILVA; ROTTA, 2012). No ano seguinte seria realizada mais uma Conferência Nacional de Saúde, apresentado temas como i) A Operacionalização dos Novos Diplomas Legais Básicos aprovados pelo Governo Federal em matéria de saúde, ii) A Interiorização dos Serviços de Saúde, iii) A Compreensão do Estado das Endemias e iv) A Política Nacional de Saúde.

Segundo Pereira (2010) o marco do movimento da Reforma Sanitária Brasileira se deu em 1979, durante o Simpósio Nacional de Política de Saúde, organizado pela comissão de saúde da Câmara dos Deputados. No evento, o Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (CEBES) apresentou um documento intitulado “A Questão Democrática na Área da Saúde”, que norteou os movimentos em prol da saúde durante a década de 1980. Em 1980 ocorria assim a sétima edição da Conferência Nacional de Saúde, a terceira em menos de uma década, que trazia como tema a “Extensão das Ações de Saúde por meio dos Serviços Básicos”.

A reforma do setor de saúde brasileiro ocorreu de forma simultânea ao processo de democratização, liderada por profissionais da saúde e pessoas de movimentos e organizações da sociedade civil. A concepção política e ideológica do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira defendia a saúde não como uma questão exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos, mas sim como uma questão social e política a ser abordada no espaço público. Essas reformas definiram a saúde para além de suas conotações biomédicas, elas incluíram determinantes sociais da saúde, educação, redução da pobreza e medidas preventivas no contexto mais amplo da saúde como um direito humano. Assim, a reforma do Estado de Saúde brasileiro estava na contramão das reformas difundidas naquela época no resto do mundo, que questionavam a manutenção do Estado de Bem-Estar Social.

Pereira (2010) afirma que a Reforma Sanitária ocorreu como forma de defesa da democracia, dos direitos sociais e de um novo sistema de saúde para o Brasil e sua consolidação se deu na oitava Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. Os temas dessa conferência foram: i) Saúde como direito, ii) A Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e iii) Financiamento setorial. A Conferência aprovou o conceito da saúde como um direito do cidadão e formulou os fundamentos do Sistema Único de Saúde (SUS), contando com ampla participação de movimentos e organizações da sociedade civil e profissionais da saúde. As transformações demandadas estavam em desacordo com a agenda neoliberal que dominava o cenário político-econômico internacional, tanto que durante a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) o movimento da reforma sanitária sofreu uma forte oposição para que a aprovação das propostas fosse alcançada, mas acabaram sendo acatadas pelos deputados constituintes e inserida na Constituição Federal por meio da elaboração do SUS (PAIM et al., 2011).

A Constituição de 1988 definiu a saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado, garantida por meio de políticas sociais e econômicas que sejam baseadas nos princípios estabelecidos nos artigos 196 e 198: i) Universalidade que garanta acesso para todos; ii) Integralidade, que significa oferta completa de serviços de promoção de saúde, prevenção, tratamento e reabilitação; iii) Equidade, que atenda a população de forma proporcional às suas necessidades; iv) Regionalização e Hierarquização dos serviços e v) Descentralização (OCKÉ- REIS, 2009; SILVA; ROTTA, 2012). A criação do SUS estaria então relacionada ao combate da pobreza e da desigualdade social, na medida em que a Constituição previa a superação da cobertura seletiva, até então existente, sendo a equidade e a igualdade as bases do modelo universalista implantado. Além disso, a Constituição garante a participação popular nas

tomadas de decisão do sistema de saúde por meio da realização de conferências e formação de conselhos com a participação da sociedade civil (SANTOS, 2008, BARROS; SOUSA, 2016).

Cabe ressaltar que, a equidade no acesso e na utilização, indicada no terceiro item, se refere a uma equidade horizontalizada, ou seja, que garanta igualdade de utilização dos serviços de saúde entre os grupos sociais que tenham iguais necessidades de saúde (TRAVASSOS; CASTRO, 2012, BARROS; SOUSA, 2016). No Brasil, os esforços para reduzir as iniquidades em saúde consideram a garantia de equidade na dotação de recursos financeiros, no acesso aos serviços de saúde e na igualdade de tratamento (BARROS; SOUSA, 2016).

Os resultados dessas transformações puderam ser observados nos temas elencados nas duas Conferências Nacionais de Saúde que ocorreram na década de 1990. A nona conferência, realizada em 1992, trouxe como tema principal “A Municipalização é o caminho”, e nela foram discutidos os seguintes pontos: i) Sociedade, governo e saúde, ii) Implantações do SUS e o iii) Controle social. A décima conferência foi realizada em 1996, e discutiu questões como: i) Saúde, cidadania e políticas públicas, ii) Gestão e organização dos serviços de saúde, iii) Controle social na saúde, iv) Financiamento da saúde, v) 5. Recursos humanos para a saúde e vi) Atenção integral à saúde.

Porém, como dito anteriormente, a Constituição foi proclamada numa época de instabilidade econômica, durante a qual os movimentos sociais se retraíam, a ideologia neoliberal proliferava e os trabalhadores perdiam poder de compra. O sistema público de saúde, assim como outras políticas sociais, surgiu como parte integrante de um novo sistema de direitos sociais básicos instituídos pela Constituição de 1988, porém, dependente dos limitados recursos do Estado (PEREIRA, 2010). Paim et al. (2011) contam, que, apesar da restauração democrática e da elaboração da Carta Magna, durante o período de instabilidade e da utilização da agenda neoliberal de recuperação econômica, na década de 1990, as políticas sociais e os gastos ocorreram de maneira discreta e só foram amplamente executados a partir do século XXI. O esgotamento do modelo de crescimento econômico do Regime Militar deu início a quase vinte anos de baixo crescimento, com altos níveis de inflação até 1994, elevação do endividamento interno e externo e frequentes ajustes fiscais.

Por causas ideológicas políticas e econômicas e devido ao cenário restritivo da década de 1990, os valores de caráter social da Reformas Sanitária, como a solidariedade e o igualitarismo, que contrapunham os valores individualistas e autointeressados do Estado de Saúde do período militar, não se generalizaram na elite governante e em grande parte da sociedade. Essa situação resultou na falta de apoio por parte dos trabalhadores e de categorias sociais no momento de implantação das políticas públicas de saúde no Brasil. Isso provocou a

formação de um sistema de saúde dual, público e privado que segmentou os usuários, como nas políticas anteriores (PEREIRA, 2010).

Paim e Teixeira (2007) ao analisarem a Reforma Sanitária como um processo, identificaram grandes obstáculos para sua efetivação, dentre eles: sérios problemas na gestão do sistema, principalmente nos hospitais e unidades básicas, falta de profissionalização de gestores, descontinuidade administrativa, clientelismo político e interferência político partidária no funcionamento dos serviços. Da mesma forma, para Menicucci (2007) e Pereira (2010) a implementação do SUS ocorreu em um cenário adverso tanto nacional, quanto internacionalmente. Os governos eleitos após o período de transição democrática mantiveram posições conservadoras, que favoreceram o viés do debate internacional que enfatizava políticas voltadas para o mercado.

Os resultados observados ao longo da década seguinte à promulgação da Constituição e à criação do SUS foram grandes prejuízos para o sistema de políticas sociais. Ao contrário do que se esperava, uma ampliação dos serviços de saúde de maneira universalizada, a imposição dos déficits fiscais provocou uma retração redistributiva das políticas sociais, o que, consequentemente afetou a agenda de saúde. Assim, junto à instituição do SUS se consolidou um sistema privado de assistência à saúde. Esses acontecimentos foram entendidos como o fracasso da proposta do SUS como política de Saúde, permitindo o desenvolvimento do que foi chamado de “universalização excludente” (PEREIRA, 2010).

Segundo Paim e Teixeira (2007), a reforma política liberal que vinha acontecendo desde meados da década de 1960 foi considerada a raiz do problema, fundamentada por um modelo gerencialista e que descentralizava do Estado o papel de promotor do desenvolvimento econômico e social, e consequentemente, da implantação do Estado de Bem-Estar Social. Paim e Teixeira (2007) destacam também a utilização de modelos de gestão terceirizados, que provocaram a precarização do trabalho em saúde e criaram obstáculos para que modelos alternativos pudessem ser implementados.

4.6. SÉCULO XXI: A ESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA E A VOLTA DAS POLÍTICAS DE