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Capítulo 1: A declaração de independência da análise do comportamento

1.3 Conceitos e filosofia da ciência

Iniciamos a apresentação dos argumentos de Skinner com a tese basal do autor de acordo com a qual a análise do comportamento e as neurociências possuiriam objetos de estudo distintos. Talvez a origem dessa divisão esteja em sua análise do conceito de reflexo (Skinner, 1931/1961c). A seguinte passagem é esclarecedora: “[The reflex] is the conceptual expression of a correlation between certain observed events (called, in this case, stimulus and response), and has no validity beyond this correlation” (Skinner & Crozier, 1931, p. 126). Ou seja, reflexo é um conceito, e não uma “coisa”; um conceito que indica a correlação observada entre estímulos e respostas.

A relevância da definição relacional de reflexo para a independência da análise do comportamento é manifesta. Primeiramente, a partir da análise histórica do conceito, Skinner (1931/1961c) constatou que o termo figurava sempre nos estudos fisiológicos, sendo que a própria justificativa para a sua utilização indicava a influência da fisiologia: o estímulo causaria um distúrbio no organismo que, por sua vez, passaria pelo sistema nervoso central para, em seguida, ser “refletido” nos músculos (Skinner, 1938/1966b, 1953/1965). O problema é que pesquisadores como Pavlov e Sherrington, mesmo afirmando estudar o sistema nervoso, estavam na verdade lidando apenas com correlações entre estímulos e respostas. Não se estudava o sistema nervoso real (Skinner, 1931/1961c, 1938/1966b, 1975b); estudava-se o reflexo e o sistema nervoso aparecia como um aparato conceitual inferido a partir desse processo (Skinner, 1931/1961c, 1938/1966b, 1975b)20. Em segundo lugar, não havia, na definição relacional de reflexo, menção aos eventos neurofisiológicos correlatos aos processos comportamentais. Sendo o reflexo o conceito apropriado, de acordo

20 Esta é uma das críticas mais persistentes de Skinner às neurociências: o problema do sistema nervoso

62 com Skinner (1931/1961c), para descrever o comportamento enquanto processo relacional, eis aí mais uma justificativa a favor da tese de que o comportamento deveria ser considerado como um objeto de estudo em si mesmo, à parte dos eventos neurofisiológicos.

Em adição, a definição relacional de reflexo foi o ponto de partida para definições de outros fenômenos relacionados ao comportamento livres de qualquer indício de fisiologia. Sobre o tema, num preâmbulo do texto escrito em 1931 no qual a definição relacional de reflexo foi apresentada, Skinner (1931/1961c) faz o seguinte comentário: “The paper argued for the solid status of behavioral facts apart from imagined physiological counterparts. An important point is that operational definitions are suggested not only for reflex, but for drive, emotion, conditioning and other terms appropriate to the intact organism” (p. 319). Nota-se, portanto, a importância do conceito relacional de reflexo para a definição do comportamento isenta de qualquer alusão aos eventos fisiológicos e, por extensão, para a declaração de independência da análise do comportamento.

A tese de que a análise do comportamento e as neurociências possuem objetos de estudo distintos, e a definição relacional do comportamento que não faz referência a eventos neurofisiológicos são responsáveis pelo próximo argumento de Skinner em favor da declaração de independência: essas ciências atuam em níveis de análise distintos (Skinner, 1935/1961f, p. 365; 1938/1966b, pp. 428-429; 1947/1961a, pp. 232-233). E por atuarem em níveis distintos, essas ciências demandam conceitos apropriados aos seus objetos de estudo (Skinner, 1950, p. 193; 1959/1961e, p. 253; 1974, pp. 232-233). É o que Skinner parece sugerir quando afirma, em diversas passagens, que o comportamento deve ser estudado pelos seus próprios termos (Skinner, 1938/1966b, pp. 440-441; 1956, p. 223; 1957/1961b, p. 195; 1959/1961e, pp. 253-254; 1980/1998, p. 295; 1986b, p. 208-209; 1988, pp. 460-461; 1989a, p. 56; 1989b, p. 122; 1993, p. 3). O autor (1947/1961a) desenvolve a questão na seguinte passagem:

63 The appeal to what we may call naive physiologizing, like the appeal to psychic determiners, is made in an attempt to explain behavior by shifting to a different level of observation. These are "outside" theories, which account for one thing by pointing to something which is going on somewhere else at the same time. For this reason they cannot fill the need for a theory of behavior, no matter how carefully they may be extended or repaired. What is emerging in psychology, as it has emerged at some point in the history of most sciences, is a theory which refers to facts at a single level of observation. The logic of this is simple enough. We begin with behavior as a subject matter and devise an appropriate vocabulary. We express the basic protocol facts of the science in the terms of this vocabulary. In the course of constructing a theory we may invent new terms, but they will not be invented to describe any new sort of fact. At no time will the theory generate terms which refer to a different subject matter, to mental states, for example, or neurones. It is not the purpose of such a theory to explain behavior by turning to "outside" determiners (pp. 232-233, itálico adicionado).

Para compreender o argumento de Skinner é preciso antes esclarecer o que o autor entende por “nível de análise”, “conceito” e “explicação”. Posto de maneira simples, dizer que a análise do comportamento e as neurociências possuem níveis de análise distintos talvez equivalha a dizer que ambas estejam interessadas em variáveis distintas. Lembremo-nos da cadeia causal de Skinner citada anteriormente (seção 1.1): eventos ambientais (variável 1) afetam o organismo no sentido de causar modificações fisiológicas (variável 2); essas modificações acabam por ocasionar ações do organismo (variável 3) que, por sua vez, são responsáveis por modificar o ambiente (variável 4). A análise do comportamento estaria interessada nas variáveis 1, 3 e 4, enquanto as neurociências tratariam da variável 2.

Os conceitos das ciências, por sua vez, são abstrações estabelecidas a partir das relações funcionais entre as respostas verbais do cientista (os “termos” que ele usa) e as condições que estabelecem a ocasião em que elas ocorrem (Skinner, 1945/1961p; Skinner, 1957). Trata-se do operante verbal denominado tacto. Para Skinner (1957), o “…tact may be defined as a verbal operant in which a response of given form is evoked (or at least strengthened) by a particular object or event or property of an object or event” (p. 82). Ou seja, o tacto é o operante verbal que tem como estímulos discriminativos objetos ou eventos. Mas os conceitos são tipos especiais de tacto; especificamente, são extensões do tacto

64 conhecidas como abstrações. Novamente com Skinner (1957): “Any property of a stimulus present when a verbal response is reinforced acquires some degree of control over that response, and this control continues to be exerted when the property appears in other combinations” (p. 107). Assim, por exemplo, o conceito de reflexo é utilizado para indicar a relação funcional observada entre estímulos e respostas. Há infinitas combinações de estímulos e respostas que podem ser enquadradas como “reflexo”, mas todas elas devem possuir, ao menos, uma propriedade em comum: estarem funcionalmente relacionadas. O cientista do comportamento pode observar estímulos de diversas intensidades, formas e durações, e respostas de diversas magnitudes e topografias, mas se houver relação funcional observada entre estímulos e respostas, então o conceito de reflexo se aplica. Ora, dado que a análise do comportamento e as neurociências focam seus estudos em variáveis distintas, os eventos que estabelecem a ocasião para a emissão de tactos e, por conseguinte, para a criação de conceitos, são distintos. Em decorrência disso, pode-se dizer que os conceitos dessas ciências são estanques – isto é, conceitos comportamentais se referem apenas a eventos comportamentais21 e conceitos neurofisiológicos se referem apenas a eventos neurofisiológicos.

Por fim, em sua definição de explicação, Skinner (1931/1961c) adota um ponto de vista machiano ao afirmar que a análise do comportamento “…must describe the event not only for itself but in its relation to other events; and, in point of satisfaction, it must explain” (p. 337). Portanto, explicar é descrever as relações funcionais entre as variáveis que são objetos de estudo de uma dada ciência (Skinner, 1931/1961c, 1938/1966b, 1947/1961a, 1953/1965, 1966c)22.

21 O termo "evento comportamental" é aqui usado para indicar os elementos das relações comportamentais. A

ação do organismo é um evento comportamental e os estímulos antecedentes e consequentes também são eventos comportamentais. Por sua vez, o termo "relação comportamental" é aqui usado para indicar o todo que define o próprio fenômeno – as relações entre eventos ambientais, antecedentes e consequentes, e as ações do organismo.

22 Adiante discutiremos com mais detalhes sobre a concepção de explicação proposta pelo behaviorismo radical

65 O círculo argumentativo, então, se fecha: (1) a análise do comportamento e as neurociências possuem objetos de estudo distintos; (2) por conta disso, elas atuam em níveis distintos de análise; (3) por atuarem em níveis distintos seus conceitos se referem a eventos distintos; (4) dado que explicar consiste em descrever relações funcionais entre eventos, as explicações neurocientíficas e seus conceitos nada dizem sobre o comportamento, pois se referem a outros eventos que não o comportamento propriamente dito. É preciso, então, uma ciência do comportamento que possua o seu vocabulário próprio, que construa seus conceitos baseando-se apenas em eventos comportamentais e que explique o seu objeto de estudo levando-se em conta apenas as relações funcionais entre as variáveis que o constituem – eventos ambientais e as ações do organismo.

Ao fato de possuírem objetos de estudo distintos, adiciona-se a ideia de que a análise do comportamento e as neurociências atuam em níveis diferentes de análise e de que seus conceitos devem ser criados tendo em vista os eventos que constituem seus níveis específicos. Tem-se aqui, portanto, mais um argumento para a independência da análise do comportamento perante as neurociências. Argumento que é reforçado pelas seguintes considerações de Skinner (1938/1966b):

The first of these is hygienic. A definition of terms in a science of behavior at its own level offers the tremendous advantage of keeping the investigator aware of what he knows and of what he does not know. The use of terms with neural references when the observations upon which they are based are behavioral is misleading. An entirely erroneous conception of the actual state of knowledge is set up (pp. 426-427).

Ater-se aos conceitos comportamentais na explicação do comportamento é vantajoso porque mantém o discurso do cientista conciso, sem referências a eventos que não fazem parte do universo comportamental (Skinner, 1938/1966bh, pp. 426-427; 1966c, p. 217). Além disso, a utilização de conceitos neurofisiológicos na explicação do comportamento pode gerar

66 a ilusão de explicação, mascarando, assim, o que de fato se sabe, e o que não se sabe, acerca do comportamento.

Atrelada ao argumento dos níveis de análise e conceitos, há outra tese skinneriana que parece justificar a construção de uma análise do comportamento autônoma: os fatos da análise do comportamento seriam imunes aos fatos das neurociências (Skinner, 1938/1966b, p. 432; 1953/1965, p. 35, p. 54; 1959/1961e, p. 253; 1969c, p. 60; 1974, pp. 214-215; 1975b, p. 43; 1988, p. 128; 1989e, p. 18). Trata-se do desdobramento da ideia, exposta na seção anterior, segundo a qual as neurociências não adicionariam nada de novo à explicação comportamental. Se as neurociências nada têm a dizer no âmbito das explicações comportamentais, então as leis, conceitos e teorias que compõem tais explicações permanecerão inalteradas, a despeito dos eventuais avanços no campo neurofisiológico. Isso se dá porque, conforme visto anteriormente, os conceitos, leis e teorias que estruturam as explicações comportamentais se referem unicamente a eventos que constituem o nível de análise comportamental. Esta parece ser a conclusão de Skinner (1989e): “The analysis of behavior need not wait until brain scientists have done their part. The behavioral facts will not be changed, and they suffice for both a science and a technology” (p. 18).

O último argumento desta seção talvez seja um dos mais importantes apresentados por Skinner. Em linhas gerais, o autor sustenta que é imprescindível ter uma análise do comportamento autônoma porque é esta análise que estabeleceria a agenda de pesquisa das neurociências, informando ao neurocientista o que procurar no sistema nervoso (Skinner, 1935/1961f, p. 365; 1938/1966b, p. 422, p. 429; 1969c, p. 60, p. 63; 1974, p. 210-211; 1975b, p. 43; 1980, p. 341; 1983a, p. 367; 1985, p. 297; 1986c, p. 235; 1988, p. 60, p. 128, p. 245, p. 470; 1989e, p. 18; 1993, pp. 3-4). Mas o que isso quer dizer?

Para entender esse argumento é pertinente iniciarmos apresentando a ideia de Skinner de acordo com a qual os conceitos comportamentais precedem os conceitos neurofisiológicos.

67 Esse ponto é exposto, por exemplo, quando o autor (1931/1961c) trata do conceito de arco- reflexo: “We may note […] that the description of a reflex in functional terms (as a correlation of stimulus and response) is always prior to the description of its arc. In any available procedure the anatomical inference must always be drawn from an experiment in which the integrity of a function is critical” (p. 333). O reflexo enquanto relação funcional entre estímulos e respostas sempre precede a delimitação de seu correlato fisiológico – o seu “arco”. É possível generalizar a argumentação para qualquer relação comportamental: estas e as contingências específicas que as tornam únicas sempre precederiam a delimitação de seus correlatos neurofisiológicos. O argumento é robusto e simples: para compreender os processos neurofisiológicos relativos a um dado tipo de relação comportamental é preciso antes entender e ter uma clara definição da própria relação comportamental foco de estudo.

É justamente por esse motivo que, segundo Skinner, a análise do comportamento fornece a agenda de pesquisa das neurociências – pois estabelece os parâmetros comportamentais que norteiam a busca dos correlatos neurofisiológicos do comportamento. Skinner apresenta esse argumento em diversos momentos, mas cada passagem contém aspectos únicos que se somam ao argumento central. Portanto, analisemos a primeira delas:

What is generally not understood by those interested in establishing neurological bases is that a rigorous description at the level of behavior is necessary for the demonstration of a neurological correlate. The discovery of neurological facts may proceed independently of a science of behavior if the facts are directly observed as structural and functional changes in tissue, but before such a fact may be shown to account for a fact of behavior, both must be quantitatively described and shown to correspond in all their properties (Skinner, 1938/1966b, p. 422, itálico adicionado).

Essa passagem indica que só uma análise rigorosa das variáveis comportamentais fornecerá os parâmetros adequados para a busca dos correlatos neurofisiológicos do comportamento. Todavia, Skinner também sustenta que ambas as ciências possuem autonomia. Assim como este capítulo vem tentado mostrar, através dos argumentos de

68 Skinner, que uma ciência do comportamento independente das neurociências é possível, uma neurociência independente da análise do comportamento também é possível. Nesse caso, Skinner parece sugerir que tal neurofisiologia estaria interessada propriamente no funcionamento dos mecanismos neurofisiológicos como um fim em si mesmo. A questão, porém, é que se essa neurofisiologia pretender dar um passo adiante e buscar entender a correlação entre esses mecanismos neurofisiológicos e o comportamento, então, aí sim, ela precisará dos parâmetros estabelecidos pela análise do comportamento.

Skinner (1969c), por sua vez, faz o seguinte comentário:

[…] it is often implied that behavior cannot be adequately described until more is known about the nervous system. A science of behavior is called ‘highly phenomenological’ and is said to show a ‘studied indifference to brain mechanisms —to what is inside the black box.’ But we cannot say that what goes on inside is an adequate explanation until we know what the black box does. A behavioral analysis is essentially a statement of the facts to be explained by studying the nervous system. It tells the physiologist what to look for (1969c, p. 60, itálico adicionado).

O autor apresenta essa ideia como contra-argumento à tese contrária segundo a qual o comportamento não poderia ser explicado enquanto não se tem conhecimento do que ocorre dentro da caixa-preta, isto é, no cérebro. O autor sustenta justamente o oposto: é impossível saber a função dos mecanismos neurofisiológicos na manutenção das relações comportamentais até sabermos exatamente quais as variáveis comportamentais relevantes. Seria inconcebível, por exemplo, questionarmos quais seriam os mecanismos neurofisiológicos correlatos às relações operantes reforçadas positivamente sem termos conhecimento claro das variáveis comportamentais que compõem tais relações.

Outra questão auxiliar ao argumento é ressaltada por Skinner (1974): “The behavioral account is also close to physiology: it sets the task for the physiologist. Mentalism, on the other hand, has done a great disservice by leading physiologists on false trials in search of the neural correlates of images, memories, consciousness, and so on” (p. 211, itálico adicionado).

69 A análise do comportamento, conforme dito anteriormente, diz ao neurocientista o que procurar quando este está em busca dos correlatos neurofisiológicos do comportamento. Entretanto, os neurocientistas podem apropriar-se de outro vocabulário para estabelecer os seus parâmetros: o vocabulário mentalista23. As críticas ao mentalismo estão no cerne do behaviorismo radical (Carvalho Neto, Tourinho, Zilio & Strapasson, 2012; Moore, 1981, 2008; Ringen 1986; Schnaitter, 1984; Zilio & Carrara, 2008) e, nesse caso, elas se somam ao presente argumento: as neurociências nunca encontrarão, de acordo com Skinner, os correlatos neurais de imagens, de memórias e da consciência. Ao desvendar o funcionamento de todos os mecanismos neurofisiológicos, uma neurociência hipotética completa, por exemplo, não encontrará “imagens mentais”, “engramas” ou o “self”. Essas entidades mentais seriam um engodo e, por isso, levariam as pesquisas neurofisiológicas a traçar um caminho errado na busca dos correlatos neurofisiológicos do comportamento. Um caminho mais apropriado seria o estabelecido pelas informações fornecidas pela análise do comportamento. É o que Skinner (1986c) deixa claro nesta passagem: “I think the experimental analysis of behavior can best proceed as it started, until the control of the behavior of an organism in an experimental space is very nearly total. A science of behavior will then have given neurology

its clearest assignment” (p. 235, itálico adicionado).

Em linhas gerais, o maior controle do comportamento no espaço experimental implica a maior precisão das explicações do comportamento – isto é, da descrição das relações funcionais entre as variáveis estudadas pela análise do comportamento, quais sejam, os eventos ambientais, antecedentes e consequentes, e as ações do organismo. Por sua vez, a maior precisão na explicação do comportamento é diretamente proporcional à precisão com que se estabelecerão as correlações entre processos neurofisiológicos e relações comportamentais.

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