• Nenhum resultado encontrado

Notas sobre a atividade teórico-filosófica

Nas seções anteriores descrevemos uma série de procedimentos que foram levados em consideração no processo de levantamento bibliográfico, de seleção de material pertinente à pesquisa, e de análise dos textos selecionados. No entanto, resta sempre a dúvida acerca da análise teórico-filosófica: o que exatamente é isso? Como fazê-la? É possível descrevê-la,

38 operacionalizá-la, enfim, sintetizá-la em um conjunto de regras de conduta a serem seguidas, tal como se faz no âmbito das pesquisas experimentais com os seus parâmetros metodológicos?

Não existem regras universais da prática teórico-filosófica. Qualquer tentativa de demarcação do método filosófico é apenas isto: uma tentativa; uma sugestão cuja pertinência e utilidade podem, inclusive, não se estender para além do ponto de vista de seus proponentes. E mais, a preocupação com a metodologia pode, inclusive, atingir níveis prejudiciais. O sujeito, órfão de método, estagna-se; ao invés de praticar filosofia, ele se vê diante de um vácuo metodológico que o paralisa. Sobre a questão metodológica, Folscheid e Wunenburger (2006) fizeram as seguintes considerações:

[...] não se pode partir de um “bom” método para confeccionar infalivelmente uma boa dissertação. É preciso fazer, produzir, escrever, para se enganar, para ter alguma chance então de progredir, e é preciso se enganar para aos poucos aprender a fazer. [...] Em suma, não há método infalível e universalmente válido (que valha para todos os assuntos) da dissertação filosófica (pp. 166-167).

Um ponto interessante é que os autores escreveram isso em um livro de metodologia filosófica. A descrição do processo apresentada na passagem nos remete ao texto no qual Skinner (1956) discorreu sobre a sua metodologia científica. Ao invés de apresentar um método da conduta científica, Skinner (1956) descreveu passagens de sua história que, em perspectiva, revelaram-se imprescindíveis para o desenvolvimento de sua ciência do comportamento. Folscheid e Wunenburger (2006), por sua vez, ressaltam que, para progredir na atividade teórico-filosófica, é preciso praticá-la. É preciso errar, corrigir os erros, se enganar, aprender, ensinar, enfim, é preciso se comportar. É preciso se submeter às contingências do trabalho filosófico, ao invés de apenas fazê-lo sob controle de uma metodologia imposta a priori.

39 No entanto, ainda que pareça não existir uma metodologia universal da pesquisa teórico-filosófica, por outro lado é possível delinear algumas regras; alguns parâmetros gerais que, no passado, ajudaram os seus proponentes a alcançar os seus objetivos filosóficos. Em nossa análise seguiremos alguns dos parâmetros propostos por Porta (2002).

Quando se lê um texto, o principal objetivo é entendê-lo, o que implica ser capaz de repeti-lo e, principalmente, parafraseá-lo. O que se entende do texto é o seu sentido ou significado: é o que o autor diz através dele (Porta, 2002). O entendimento, assim, envolve a análise do texto. A estrutura dos textos teórico-filosóficos é normalmente constituída por três partes principais: o problema, a tese e o argumento. A análise deve abarcar todas elas.

O procedimento aqui utilizado para cumprir essa tarefa é denominado de “retradução lógica” (Porta, 2002), e consiste na transformação do texto em uma sequência estruturalmente lógica através da qual o(s) seu(s) problema(s), a(s) sua(s) tese(s), e o(s) seu(s) argumento(s) são explicitados. Trata-se da delimitação das relações existentes entre o(s) problema(s), a(s) tese(s) e o(s) argumento(s).

Digamos que, pelos parâmetros supracitados, tenhamos selecionado um texto “X” de Skinner. Iniciamos, então, a análise. Primeiro, a leitura. Em seguida, o processo de entendimento10. Acreditamos que o sujeito que entende um texto é aquele capaz de reproduzi- lo, mesmo que por paráfrase. Não se trata, porém, da mera reprodução mecânica de uma frase ou trecho do texto, mas sim da capacidade de responder à questão: sobre o que o autor discorre no texto “X”? Para respondê-la é preciso saber qual(is) é(são) o(s) problema(s), a(s) tese(s), e o(s) argumento(s) presentes no texto. O texto hipotético “X”, por exemplo, trata do

problema das explicações fisiológicas do comportamento; a tese do autor é que essas explicações são espúrias; e o argumento que a sustenta é que as explicações fisiológicas em

10 A catalogação das obras de Skinner em categorias e subcategorias descrito na seção C faz parte desse processo

40 questão são baseadas em inferências sobre o comportamento e não em dados neurofisiológicos reais.

Todavia, ao mesmo tempo em que entender é primordial para o avanço da análise, esta não se esgota no entendimento. Além de entender o texto (i.e., explicitar o seu sentido), também é necessário interpretá-lo, ou seja, completar o seu sentido em alguma direção (Porta, 2002). É nesse momento que o analista do trabalho coloca algo de si mesmo no processo. Completar o sentido do texto, estendendo-o, assim, para fora de seus próprios limites, consiste em abordá-lo à luz dos objetivos do próprio analista.

Continuando com o exemplo do texto “X”. A análise do texto ocorrerá em função dos nossos objetivos. Se o objetivo é apenas esclarecer quais seriam as críticas de Skinner às explicações fisiológicas, a atividade teórico-filosófica provavelmente se resumiria propriamente ao esclarecimento, ou seja, à localização e sistematização da lógica argumentativa (problema, tese e argumentos) de Skinner para subsequente exposição textual. Por outro lado, se o objetivo é avaliar, por exemplo, a pertinência da crítica quando esta é dirigida à teoria da sinapse de Sherrington, é preciso ir além do texto skinneriano. É preciso analisar (através do mesmo processo) a obra criticada. É preciso localizar nela possíveis contra-argumentos. É preciso, enfim, estabelecer um diálogo filosófico.

A forma um tanto imprecisa, até mesmo vaga, dessa descrição das regras de análise do texto teórico-filosófico é um sintoma da própria ausência de método universal (Folscheid & Wunenburger, 2006). Se não há método, não há “objeto” a ser descrito; e por não existir objeto restrito, qualquer descrição dele se torna vaga.

Gostaríamos de finalizar os nossos comentários com uma passagem de Skinner (1957) que ressalta outro ponto essencial da atividade teórico-filosófica:

It is a salutary consequence of this point of view to accept the fact that the thoughts of great men are inaccessible to us today. When we study great works, we study the

41 effect upon us of surviving records of the behavior of men. It is our behavior with respect to such records which we observe; we study our thought, not theirs (p. 452).

Ou seja, o “pensamento” dos autores estudados é inacessível. Não é possível saber, portanto, quais seriam as suas reais intenções ao escrever uma obra. Toda a atividade de análise resulta em entendimentos e interpretações possíveis. Em nenhum momento o resultado da análise – isto é, o texto do analista, com os seus próprios problemas, teses e argumentos – deve ser visto como uma cópia fiel da obra analisada. Até mesmo a reprodução, estágio inicial do entendimento, não consiste, no sentido literal da palavra, em uma reprodução do pensamento do autor, mas sim na produção de uma descrição dos efeitos que a obra exerce, enquanto fonte de estimulação verbal, sobre o comportamento do analista. No caso hipotético do texto “X” de Skinner, só é possível dizer, por exemplo, que o resultado da análise (o nosso próprio texto) tem como fonte a obra “X” de Skinner, mas não que ela seja a obra de Skinner no sentido de reproduzir o pensamento do autor.

Ademais, se cada analista é, em si mesmo, um sujeito único, a mesma obra poderá incitar análises variadas (isto é, poderá atuar como estímulos discriminativos com funções diversas) feitas por analistas distintos. Por isso, elas não devem ser classificadas como verdadeiras ou falsas, mas apenas como coerentes ou incoerentes. Porta (2002) fez um comentário que descreve muito bem essa situação: “Na filosofia nunca chega o momento de dizer: ‘... e viveram felizes...’; para o trabalho reflexivo não há ‘redenção’” (p. 49).

42