• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: As críticas behavioristas radicais às neurociências

2.1 Relacionismo

Cabe retomar, nesta seção, alguns pontos sobre a definição de reflexo apresentados na seção 1.2. A partir da análise histórica do conceito de reflexo, Skinner (1931/1961c) constatou que, nos estudos fisiológicos, o termo indicava o processo de distúrbio fisiológico do organismo ocasionado pela estimulação ambiental que seria transmitida até o sistema nervoso central para, em seguida, ser “refletida” nos músculos, tal como acontece com uma imagem em frente ao espelho (Skinner, 1938/1966b, 1953/1965). Entretanto, para o autor (1931/1961c, 1938/1966b; Skinner & Crozier, 1931), o reflexo seria nada mais que um conceito que indica a correlação observada entre estímulos e respostas. Não há, na definição de reflexo, menção alguma a processos neurofisiológicos, e os fisiologistas, como Sherrington e Pavlov, que supostamente estariam estudando o sistema nervoso, na verdade estavam manipulando apenas variáveis comportamentais – estímulos e respostas. Skinner (1980/1998) sintetiza com clareza seu posicionamento: “My thesis was an operational analysis of the reflex. I insisted that the word should be defined simply as an observed correlation of stimulus and response. Sherrington's synapse was a mere inference that could not be used to explain the facts from which it was inferred” (p. 291).

No âmbito dos conceitos científicos, que, como vimos anteriormente (seção 1.3), são tactos verbais, os eventos que estabelecem a ocasião para a resposta verbal “reflexo” são comportamentais; precisamente, são correlações entre estímulos e respostas. Mesmo nas pesquisas “fisiológicas” de Sherrington e Pavlov, supostamente não havia eventos neurofisiológicos controlando tal tacto. Seria um erro, portanto, assumir que o reflexo deva ser definido por eventos neurofisiológicos. Existem modificações neurofisiológicas relacionadas ao reflexo, mas elas não se confundem com essa relação comportamental. Dessa

76 forma, a definição fisiológica de reflexo é problemática, pois não captura com acurácia as variáveis que controlam o tacto relativo ao conceito em questão.

No início de suas pesquisas, mesmo após o estudo com operantes, Skinner utilizava o termo “reflexo” para se referir tanto às relações respondentes quanto às relações operantes (Skinner, 1979, 1980/1998). Pode-se sugerir que “reflexo” era, então, um termo que abrangia a maior parte, para não dizer todas, das relações comportamentais estudadas pela análise do comportamento. Esse ponto é importante, pois a crítica ao conceito de reflexo da fisiologia seria, dessa forma, generalizável ao conceito de comportamento. Na definição de comportamento como sendo a relação entre as ações do organismo e o ambiente (seção 1.1), não há espaço para os eventos neurofisiológicos. Em poucas palavras, a neurofisiologia não

define as relações comportamentais.

O comportamento é um processo, e não uma “coisa”. É definido e classificado de acordo com as relações entre eventos ambientais e eventos-ação do organismo e não pelas estruturas e funções fisiológicas correlatas. Qualquer tentativa de definição do comportamento que inclua eventos neurofisiológicos é problemática porque impõe restrições ao conceito. Nas palavras de Skinner (1931/1961c):

The physiological study of the reflex supplements and restricts our definition. It begins by identifying and describing certain of the events which intervene typically between stimulus and response, and it then arbitrarily restricts the use of the word reflex to correlations which employ that kind of event (pp. 335-336).

Lembremo-nos da cadeia causal proposta por Skinner (1986a, 1989a) descrita na seção 1.1: eventos ambientais (1) geram modificações fisiológicas (2) que, por sua vez, ocasionam a ação do organismo (3) que, por fim, modificam o ambiente (4). A análise do comportamento lida com os eventos 1, 3 e 4. As neurociências tratam do evento 2. Agora, suponha-se que o neurofisiologista delimite as modificações fisiológicas correlatas a uma dada relação

77 comportamental em que eventos ambientais pertencentes à mesma classe funcional (evento 1) geram modificações fisiológicas semelhantes (evento 2) que, por sua vez, são responsáveis pela emissão de respostas do organismo também pertencentes à mesma classe (evento 3) por ocasionarem as mesmas consequências ambientais (evento 4). O risco apontado por Skinner é o de restringir a relação comportamental à condição de que ela seja acompanhada pelos mesmos eventos neurofisiológicos.

Num sentido mais geral, o conceito de “reflexo” ou de “comportamento” seria, então, restrito às situações associadas a certas modificações fisiológicas específicas. O problema é que são as relações estabelecidas entre eventos comportamentais – eventos ambientais e eventos-ação – que definem as relações comportamentais e não os eventos neurofisiológicos que, por ventura, acompanham tais relações. Não se trata de negar a importância dos eventos neurofisiológicos – sem eles, não há comportamento – mas de assumir que a definição das relações comportamentais seria independente deles. Essa posição se justifica por dois motivos: eventos neurofisiológicos não são condições que estabelecem a ocasião para a emissão do tacto “comportamento”, isto é, esses eventos não fazem parte da definição do fenômeno; e, em segundo lugar, qualquer tentativa de definição das relações comportamentais que faça referência a eventos neurofisiológicos corre o risco de restringir arbitrariamente tais relações: elas ocorreriam se, e somente se, fossem acompanhadas pelos eventos neurofisiológicos em questão. Na definição do comportamento, o que importa é a relação, e não os eventos neurofisiológicos que a acompanham. O posicionamento de Skinner (1979) pode ser visto como:

[…] an attack on the misuse of physiology. The reflex arc was an anatomical structure, and early research was largely a matter or locating pathways by cutting away parts of the organism. Sherrington had done more than that by looking at relations between times of occurrence and magnitudes of stimulus and response, but he had called them the properties of the synapse, the point of contact between nerve cells. I argued that he had never seen a synapse in action and that the properties

78 could be defined operationally by referring to behavior and environment without mentioning the nervous system (p. 68).

Um ataque ao emprego incorreto da fisiologia. O reflexo é um conceito que diz respeito a relações comportamentais. Não se trata de uma propriedade anatomofisiológica do organismo – não é uma “coisa”, mas uma relação. Para Skinner, a “sinapse” de Sherrington não passava de um construto ad hoc para explicar relações entre estímulos e respostas, já que o pesquisador não tinha acesso aos eventos neurais reais24. Portanto, qualquer tentativa de definir ou restringir o comportamento tendo em vista propriedades neurofisiológicas é criticada pela perspectiva behaviorista radical. Não é a estrutura anatômica e nem as funções fisiológicas que definiriam o comportamento.

Ainda à luz da definição relacional de comportamento, há outra crítica de Skinner (1980) às neurociências: estas seriam incapazes de capturar o significado do comportamento. Trata-se de uma crítica associada ao argumento da independência segundo o qual a análise do comportamento estabeleceria a agenda de pesquisa das neurociências, ou seja, diria aos neurocientistas o que procurar (seção 1.3). A situação hipotética descrita por Skinner (1980) é esclarecedora:

I run into an old friend and bring him home with me. I have a few errands to do and so, after taking him into the living-room, I say, "There is beer in the refrigerator." Then I leave. Have I: 1. Communicated information? 2. Imparted knowledge? 3. Told a fact? For purposes of practical discourse there is no harm in saying “Yes,” but for either describing what actually happened or specifying an assignment for physiology, something else is needed. Nothing physical has changed places. There is no stuff called information, knowledge, or fact that can be observed in transit or found in place by the physiologist. My friend has not ‘grasped a meaning.’ The effect of my verbal response (similar to past effects which are in part accountable for its strength) is to increase the probability that my friend will go to the refrigerator if a beer is reinforcing in his present state. Whether he goes or not depends upon many things. If we have had a beer or two on the way home, a process of deprivation may need to set in. I can speed it up by offering him potato chips or salted nuts. Salt brings about a redistribution of water in parts of the body leading eventually to urination and increasing the probability of the ingestion of fluids. My friend has “learned the meaning” of my response when upon hearing

24 Trataremos da crítica ao sistema nervoso conceitual na seção 2.2. Na seção 3.2, por sua vez, discutiremos

79 similar responses, he has gone to the refrigerator and found beer (pp. 213-214, itálico adicionado).

Para o behaviorismo radical, o significado do comportamento não deve ser encontrado nas características intrínsecas dos estímulos, das respostas e dos eventos neurofisiológicos que compõem uma relação comportamental. O significado estaria nas próprias contingências que controlam o comportamento (Abib, 1994; Moore, 2008; Skinner, 1945, 1957, 1974; Zilio, 2010). Assim afirma Skinner (1957): “[…] meaning is not a property of behavior as such but of the conditions under which behavior occurs” (pp. 13-14). Ora, estudar tais condições é o objetivo da análise do comportamento (Skinner, 1953/1965, 1966c). Pode-se dizer que, de certo modo, a análise do comportamento seria a ciência do significado; e por ser tal ciência, cabe a ela informar às neurociências a função dos mecanismos neurofisiológicos – dar sentido aos seus dados à luz das relações comportamentais.

O significado da frase “Há cerveja no refrigerador” não está nas propriedades físicas do estímulo sonoro que a compõe, tampouco está nas modificações fisiológicas do ouvinte, resultantes de seu aparato auditivo. O neurofisiologista encarregado de estudar o sistema auditivo não estuda o significado da sentença. Este estaria nas contingências estabelecidas pela comunidade verbal. O ouvinte “entende” o que o falante diz por conta de sua história de interação com o ambiente, verbal e não verbal, formado por cervejas, refrigeradores, palavras faladas e escritas, e as inúmeras possibilidades de relações entre esses eventos. Em síntese, o significado do comportamento está na própria relação que o define, e não nas propriedades físicas dos eventos que o constitui.

Dessa forma, quando neurocientistas afirmam estudar, por exemplo, os mecanismos neurofisiológicos do condicionamento de “medo” (e.g., Dityatev & Bolshakov, 2005; Kim & Jung, 2006; Maren, 2001, 2003), só é possível fazê-lo por conta de relações comportamentais específicas que dão sentido, mesmo que arbitrário, aos mecanismos estudados. Nesse caso,

80 tais relações normalmente envolvem condicionamento respondente e pareamento entre estímulos neutros e estímulos aversivos. Seria inconcebível sustentar, por exemplo, que a amígdala tem função central no estabelecimento do “medo” em organismos (cf. Dityatev & Bolshakov, 2005) sem termos antes relações comportamentais arbitrariamente tomadas como exemplos de situações que envolvem “medo”.

Nesta seção apresentamos três críticas de Skinner às neurociências; todas relacionadas à definição relacional do comportamento: (1) as relações comportamentais não são definidas pelos eventos neurofisiológicos que as acompanham; (2) qualquer tentativa de definir relações comportamentais a partir de eventos neurofisiológicos acaba por restringir a definição para os casos em que somente ocorreriam tais modificações; e (3) não é possível capturar o significado do comportamento a partir de dados neurofisiológicos. Pelo contrário, é a análise do comportamento, a ciência do significado, que dá sentido aos mecanismos neurofisiológicos.