• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1: A declaração de independência da análise do comportamento

1.1 Objeto de análise

A análise do comportamento seria independente das neurociências porque seus objetos

de estudo seriam distintos (Skinner, 1938/1966b, pp. 423-424; 1959/1961e, p. 253; 1969c, p. 60; 1986a, p. 716; 1989a, p. 56; 1989e, p. 18; 1990a, p. 1208). Skinner (1938/1966b) apresenta esse argumento ao lidar com o problema dos correlatos neurais do comportamento:

The very notion of a 'neurological correlate' implies what I am here contending - that there are two independent subject matters (behavior and the nervous system) […]. I am asserting, then, not only that a science of behavior is independent of neurology but that it must be established as a separate discipline whether or not a rapprochement with neurology is ever attempted (pp. 423-424, itálico adicionado).11

Ou seja, o próprio vocabulário utilizado para descrever os fenômenos estudados acusa a diferença de objeto de estudo. Os neurocientistas estudam processos neurais que possuem algum tipo de correlação (i.e., são correlatos) com algum processo comportamental. Em poucas palavras, quem estuda o correlato de algo não estuda necessariamente o “algo” propriamente dito.

Em outra passagem, o autor (1986a) reafirma a distinção de objeto de estudo ao discutir sobre a cadeia causal entre ambiente, eventos neurofisiológicos e as ações do organismo:

Behavior and physiology are not two ways of approaching the same subject. In a given episode the environment acts upon the organism, something happens inside, the organism then acts upon the environment, and certain consequences follow. The first, third, and fourth of these events is the field of a science of behavior, which undertakes to discover how they are related to each other. What happens inside is another part of the story (p. 716, itálico adicionado).

11 Optou-se por manter as citações em sua língua original (i.e., inglês) para que o leitor tenha acesso direto às

fontes sobre as quais o presente trabalho se fundamenta. Considerando-se que a tradução de um texto também envolve em grande medida a sua interpretação, então o texto traduzido resultante já pode conter elementos da intepretação pessoal do tradutor. A apresentação da fonte direta é uma medida que visa diminuir (mas não eliminar), no texto apresentado ao leitor, a influência da interpretação do autor acerca das obras analisadas.

44 O ambiente (1) é definido por Skinner (1953/1965) como “…any event in the universe capable of affecting the organism” (p. 257). Essa afetação consiste em gerar alguma modificação fisiológica (2). O organismo modificado, por sua vez, age (3) sobre o ambiente que, enfim, é modificado (4) por essas ações. A Figura 1.1 serve de ilustração desta cadeia causal proposta por Skinner:

Figura 1.1. A cadeia causal de Skinner.

De acordo com a passagem de Skinner, a análise do comportamento lida com as relações funcionais entre os eventos 1, 3 e 4 que, por definição, constituem a contingência tríplice (cf. Skinner, 1969e), unidade relacional básica de análise do comportamento operante. Na Figura 1.1 são os eventos circunscritos por retângulos. O evento 2, isto é, as modificações fisiológicas ocasionadas pelo ambiente seriam o objeto de estudo das neurociências. Na

Figura 1.1 é o evento circunscrito pela figura oval. Ideia semelhante é apresentada em outra passagem de Skinner (1989a):

When human behavior is analyzed in its own right as a function of environmental variables, however, rather than as the expression of feelings and states of mind, the nervous system is seen to play a different role. Behavioral scientists observe three things: the action of the environment on an organism, the action of the organism on the environment, and changes which then follow. There are gaps in that account which only neurologists will eventually fill with their different instruments and techniques. Brain processes are not another 'aspect’ of behavior; they are another part of what an organism does (p. 56, itálico adicionado).

Essa passagem incita diversas questões. Inicia-se com a tese externalista do behaviorismo radical, segundo a qual o comportamento seria controlado por variáveis ambientais, ao invés de ser um mero sintoma de eventos internos, tais como sentimentos,

45 estados mentais e, mais importante, estados fisiológicos12. Nas palavras de Skinner (1959/1961e): “In an acceptable explanatory scheme the ultimate causes of behavior must be found outside the organism” (p. 253). Em outro texto o autor (1988) nota que esta é apenas uma hipótese: “It is certainly only a hypothesis, ‘testable only in principle’, to say that ‘all behavior, whether controlled by internal or external stimuli, is determined by external contingencies’”(p. 380). Dado que, para o behaviorismo radical, o comportamento não é o efeito cuja causa devemos buscar em eventos internos, o papel das neurociências se torna outro: estudar as modificações fisiológicas resultantes e integrantes da interação do organismo com o ambiente, ou seja, o evento 2 apresentado anteriormente. Justamente por não tratar do evento 2, a análise do comportamento possui lacunas13, e estas serão preenchidas pelas neurociências.

Em adendo, conforme veremos a seguir, Skinner afirma que processos neurais não são aspectos do comportamento, mas constituem outro tipo de atividade do organismo. Esse ponto é importante e nos remete à própria definição de comportamento. Skinner (1938/1966b) o define como sendo “…only part of the total activity of an organism”, especificamente, “behavior is what an organism is doing. [...] is that part of the functioning of an organism which is engaged in acting upon or having commerce with the outside world” (p. 6). Nesta definição, encontramos indícios da divisão skinneriana dos eventos que compõem a cadeia causal entre eventos ambientais, eventos neurofisiológicos e ações do organismo. Na perspectiva behaviorista radical, o comportamento é definido como sendo a própria relação entre eventos ambientais (antecedentes e consequentes) e as ações do organismo (Skinner, 1931/11961c, 1938/1966b; cf. Zilio, 2010). Na definição relacional de comportamento encontramos os eventos 1, 3 e 4 da cadeia causal descrita por Skinner (1986a, 1989a). No entanto, o evento 2 está ausente, fato que justifica a conclusão de que as “...peculiar properties

12 Discutiremos a questão da agência e da causalidade interna no capítulo 2. 13 Sobre as quais falaremos no capítulo 4.

46 which make behavior a unitary and unique subject matter follow from this definition” (Skinner, 1938/1966b, p. 6).

Estando ausente de sua própria definição e, por isso, não consistindo em um aspecto do comportamento, os processos neurofisiológicos constituem objeto de estudo distinto. Há aqui, portanto, a justificativa para a independência da análise do comportamento. Todavia, dessa forma não estaria Skinner ignorando parte do que deve ser explicado? O autor (1989e) previu tal crítica:

That position is sometimes characterized as treating a person as a black box and ignoring the contents. Behavior analysts would study the invention and uses of clocks without asking how clocks are built. But nothing is being ignored. […] There are two unavoidable gaps in any behavioral account: one between the stimulating action of the environment and the response of the organism, and one between consequences and the resulting change in behavior. Only brain science can fill those gaps. In doing so it completes the account; it does not give a different account of the same thing (p. 18).

A análise do comportamento supostamente seria uma psicologia da caixa-preta por ignorar o que ocorre dentro do organismo quando este se comporta (i.e., o evento 2 anteriormente citado). Mas até que ponto essa seria uma crítica justa? Afinal, não há ciência completa. Poderíamos dizer que as neurociências não são newtonianas ou quânticas porque ignoram – i.e., não estudam – as leis da Física que tornam os eventos neurais possíveis? Seria injusto fazê-lo. As ciências estão divididas – arbitrariamente, é verdade – em áreas de interesse, e exigir de uma área o estudo que convencionalmente pertence à outra não parece ser uma crítica válida, pois coloca toda a divisão das ciências em risco. Se a crítica é válida para a análise do comportamento, deve também ser válida para outras ciências.

Portanto, para Skinner (1989e) nada está sendo ignorado. Afinal, a análise do comportamento se propõe a estudar, como o próprio nome indica, o comportamento. E sendo este definido como a relação entre as ações do organismo e o ambiente (i.e., eventos 1, 3 e 4), não há nada deixado de fora. Mas a análise do comportamento é incompleta e suas lacunas

47 constituem objeto de estudo das neurociências. Ao fornecerem dados acerca das modificações fisiológicas correlatas às relações comportamentais, as neurociências não estão dando uma explicação alternativa do comportamento, pois seu foco não é a relação entre os eventos 1, 3 e 4. Ela completaria a explicação comportamental ao adicionar o elo ausente – o evento 2. E, conforme veremos adiante, isso não é pouca coisa.

Finalmente, o argumento de que a análise do comportamento e as neurociências possuiriam objetos de estudo distintos também está presente na tese de que a primeira seria a ciência da variação e seleção:

Two established sciences, each with a clearly defined subject matter, have a bearing on human behavior. One is the physiology of the body-cum-brain - a matter of organs, tissues, and cells, and the electrical and chemical changes that occur within them. The other is a group of three sciences concerned with the variation and selection that determine the condition of that body-cum-brain at any moment: the natural selection of the behavior of species (ethology), the operant conditioning of the behavior of the individual (behavior analysis), and the evolution of the social environments that prime operant behavior and greatly expand its range (a part of anthropology). The three could be said to be related in this way: Physiology studies the product of which the sciences of variation and selection study the production (Skinner, 1990a, p. 1208, itálico adicionado).

A etologia, a análise do comportamento e parte da antropologia estudariam, respectivamente, os processos filogenéticos, ontogenéticos e culturais de variação e seleção responsáveis pela origem e manutenção do comportamento, ao passo que as neurociências estudariam as modificações fisiológicas ocasionadas por e integrantes de tais processos.

Visto que, segundo Skinner, a análise do comportamento e as neurociências possuiriam objetos de estudo distintos, nada mais lógico supor que ambas possuam também diferenças em seus objetivos e técnicas (1931/1961c, p. 336; 1956/1961g, p. 214; 1957/1961d, p. 116; 1959/1961e, p. 253; 1983a, p. 367; 1985, p. 297; 1986a, p. 716; 1987, p. 782; 1988, p. 53; 1989a, p. 56; 1989e, p. 18; 1989f, p. 11). Em linhas gerais, o objetivo da análise do comportamento seria justamente estudar as relações funcionais entre as ações do organismo e o ambiente (Skinner, 1953/1965; 1966c); seria estudar os processos

48 ontogenéticos de variação e seleção do comportamento (Skinner, 1981, 1990a, 1993). Por outro lado, o objetivo das neurociências seria estudar os mecanismos neurofisiológicos que tornam o comportamento possível (Skinner, 1963a, 1983b). Nas palavras de Skinner (1990a): “The body works as it does because of the laws of physics and chemistry; it does what it does because of its exposure to contingencies of variation and selection. Physiology tells us how the body works; the sciences of variation and selection tell us why it is a body that works that way” (p. 1208)14.

A tese de que a análise do comportamento e as neurociências possuem objetos de estudo distintos é o ponto de partida para outros argumentos de Skinner que justificam o seu declaração de independência. Tal distinção também serve de fundamento para os limites, apontados por Skinner, das explicações neurocientíficas do comportamento; limites que, conforme veremos, também foram utilizados pelo autor como justificativa para a consolidação de uma ciência do comportamento independente.