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fraternidade e felicidade na cultura comunitária pós-moderna

6.3 Temas centrais do pensamento de Etzioni

6.3.2 Concepção antropológica

Etzioni não possui obras estritamente voltadas à antropologia, mas em variados escritos desenvolve noções relativas ao tema, espe-cialmente sobre as necessidades básicas e a natureza humana.

As necessidades básicas do ser humano. Etzioni considera que a política e as estruturas sociais devem ser responsivas às necessidades básicas do ser humano. A pirâmide de Abraham Maslow lhe parece uma formulação importante das necessidades humanas, mas não su-ficiente. Maslow estabelece cinco níveis de necessidades, cada qual sendo condição para o nível seguinte: 1. fisiológicas; 2. segurança (abrigo, sustento financeiro); 3. amor (afeto, pertencimento); 4. es-tima (reconhecimento das capacidades pessoais); 5. autorrealização (tornar-se o que o indivíduo pode ser). Etzioni (1980) apresenta uma hierarquia de necessidades parcialmente modificada e ampliada: 1.

fisiológicas; 2. afeto, amor; 3. reconhecimento, aprovação; 4. senti-do de contexto, de orientação, de coerência ou totalidade; 5. satis-fação repetida; 6. sentido de estabilidade quanto às expectativas; e 7. adequação dos papéis às diferentes personalidades.

Há dois aspectos fundamentais a salientar. A primeira é a crítica de Etzioni à apropriação individualista da ideia de “autorrealização”

(que está no topo das necessidades) nas sociedades de consumo, di-ferentemente da concepção comunitária, que insiste na associação entre realização pessoal e vivência comunitária. A segunda é a pre-missa de que as necessidades básicas do ser humano não podem ser manipuladas no longo prazo, embora possam ser por algum tempo, mediante formas “não-naturais” (próprias da mídia, de lideranças carismáticas, do fundamentalismo religioso e de outras). No longo

prazo, a sociedade não pode ser boa nem mesmo estável sem respon-der às necessidades dos seus membros. O oposto de responsividade é alienação, um fenômeno agudo em sociedades complexas, repro-duzida em instituições e organizações que se valem de coerção ou incentivos econômicos para alcançar seus objetivos. A responsividade descarta o uso reiterado de formas verticais (downward) de decisão política, próprias das modalidades elitistas de governo; e requer que as necessidades básicas sejam atendidas mediante formas de decisão baseadas na combinação entre a autoridade e a participação dos ci-dadãos nas decisões políticas (ETZIONI, 2005).

Natureza humana. A concepção comunitarista está a meio ca-minho entre a visão otimista dos individualistas e a visão sombria dos social-conservadores: é uma concepção dinâmica, cuja premissa central é a natureza social do ser humano. “O homem não é senão um ser social: o que ele é depende do seu ser social e o que ele faz de seu ser social é irrevogavelmente ligado ao que ele faz de si mesmo”

(ETZIONI, 1980, p. 2). Os achados científicos trazem inúmeras evidências em favor da tese comunitária que atestam que, para existir o eu, deve haver o nós. Como Taylor, Etzioni opõe-se às teses atomistas, que conduzem ao individualismo e ao ativismo individual inconse-quente, e elabora uma concepção que vincula a parte (o indivíduo) ao todo (a sociedade e suas estruturas). O homem é um ser de relação, ontologicamente condicionado pela existência com os outros. Sob as diferenças entre as pessoas, o autor vislumbra uma natureza humana universal.

Como eu o vejo, a natureza humana é universal;

nós somos – homens e mulheres, negros, marrons, amarelos, brancos e assim por diante – todos ba-sicamente os mesmos sob as camadas e culturas adotadas e impostas sobre nós. Eu vejo uma gran-de quantidagran-de gran-de evidência gran-de que as pessoas gran-de diferentes eras, sociedades e condições mostram as mesmas inclinações básicas. [...] Há um forte acúmulo de evidência de que as pessoas têm uma profunda necessidade de vínculos sociais (ou liga-ções) e uma imperiosa necessidade de orientação normativa (ou moral) (ETZIONI, 1996, p. 33).

Não há virtudes inatas que nos conduzam sem esforço ao bem, nem vícios inatos que nos condenem ao mal. A magnitude da virtude humana depende de três condições: (i) a internalização dos valores;

(ii) a evolução das formações sociais; e (iii) a redução da contradi-ção inevitável entre plena ordem e plena autonomia. A socializacontradi-ção exerce um papel fundamental ao longo da vida: “a pessoa comuni-tária é, pois, alguém que está continuamente em conflito entre os chamamentos da natureza (moldados pela cultura da sociedade) e a voz moral, uma pessoa ‘condenada’ a lutar entre um eu inferior e um eu superior” (ETZIONI, 1999, p. 203-4). O reforço dos compromissos morais ao longo da vida é indispensável para assegurar que a virtude prevaleça na conduta pessoal (ETZIONI, 2004).

Essa concepção antropológica implica a desnecessidade de he-róis abnegados para viabilizar a comunidade. Viver em comunidade não pressupõe a crença na necessidade de um ser humano heroico, altruísta e disposto a sacrificar-se em nome do coletivo. A vida em comunidade assenta-se na condição social dos humanos, naturalmen-te seres de relação, vocacionados ao convívio social, necessitados de relações afetivas próprias da vida comunitária e, ao mesmo tempo, de autonomia individual. Os seres humanos, de modo geral, estão habilitados à vida em comunidades que combinam o bem comum com a autonomia individual.

Os programas comunitários e as políticas públicas não devem basear-se em chamamentos heroicos. As boas sociedades limitam o estímulo a programas morais heroicos – aqueles apoiados em exigên-cias acima das características naturais dos seres humanos - e optam por programas adequados aos limites e potencialidades humanas.

A concepção antropológica equivocada do paradigma liberal neoclássico é um tema reiteradamente abordado por Etzioni. Tal pa-radigma apoia-se em premissas falsas, como as de que os seres hu-manos são movidos fundamentalmente pelo prazer, bem como são capazes de conduzir-se amplamente pela razão. Contra a suposição neoclássica de que as pessoas buscam maximizar a própria utilidade (prazer, felicidade, consumo), o paradigma sociopolítico (ou comuni-tário) afirma que as pessoas têm duas fontes de valoração: prazer e moralidade. E, ao invés da suposição neoclássica de que as pessoas

tomam decisões fundamentalmente racionais, o pressuposto comu-nitarista é o de que as pessoas selecionam os meios à base de seus valores e emoções.

Os seres humanos jamais são puramente racionais. A raciona-lidade é limitada pelo componente emocional, sempre presente, e todas as decisões são sub-racionais. A ciência é um guia insuficiente para a ação humana, pois a análise científica procede por fragmenta-ção dos fenômenos que estuda, enquanto a afragmenta-ção requer relacionar-se com uma gama de elementos que envolvem o fenômeno. Por isso, nós, os humanos, enfrentamos o mundo complexo e mutante de um modo distinto da simples aplicação de um conjunto de variáveis escializadas. E grande parte das decisões individuais é influenciada pe-las coletividades sociais, que são (ou podem ser) mais racionais que seus membros individualmente e que têm maior peso nas mudanças de tomada de decisões individuais que as características individuais.

Isso significa que a análise socioeconômica da deliberação da e de-cisão não deve começar pelos indivíduos e, sim, pelas coletividades sociais às quais esses indivíduos pertencem (ETZIONI, 2007, p. 243 e ss.).