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comunitário e privado no devido lugar 9

4.2 Repercussões políticas da tese do equilíbrio das esferas sociais

4.2.2 Políticas públicas

Política pública pode ser definida como um conjunto de deci-sões e ações de órgãos públicos e organizações da sociedade, dotadas de coerência intencional, que, sob coordenação estatal, destina-se a enfrentar um problema político. Toda política pública constitui uma tentativa de intervenção na realidade social, seja de controle ou de mudança, deflagrada com base na percepção pública de que uma si-tuação indesejada requer intervenção transformadora.

A concepção do equilíbrio e convergência das esferas sociais leva a uma abordagem inovadora acerca das políticas públicas, ou seja, das respostas dadas pelo sistema político às demandas sociais.

No Estado Democrático de Direito, essas respostas envolvem o pro-tagonismo do poder público, mas são desenvolvidas em consonância com setores do mercado e da sociedade civil, refletindo a correlação de forças predominantes (PARSONS, 2003).

Entre as orientações derivadas da concepção comunitarista acerca das políticas públicas, podem ser destacadas três, com espe-cial relevância para o contexto atual.

A primeira é a complementaridade das funções estatais, comu-nitárias e privadas no conjunto das políticas. Cabe aos poderes de Es-tado interpretar as demandas sociais, formular estratégias para aten-dê-las (escutando as comunidades e os entes privados), coordenar as ações e monitorar a aplicação dos recursos públicos. Todavia, não cabe ao Estado a execução direta de todas as políticas. Cada política deve ser executada de modo a melhor aproveitar as capacidades das diferentes esferas. Há políticas em que se justifica a execução direta do Estado, como nas questões de segurança nacional; noutras, é mais proveitoso o mix público/comunitário, como nas políticas sociais; e há políticas em que o mais pertinente é o mix público/privado, a exemplo das políticas de infraestrutura. As iniciativas comunitárias são próprias do vasto conjunto de ações sociais que em geral não

passam pela mediação estatal, e são responsáveis por inúmeros bens e serviços. Não existe regra única a respeito da partilha de serviços entre as diferentes esferas. Cada país tem características específi-cas, resultantes de uma trajetória histórica própria, que devem ser levadas em conta ao se definir a distribuição de responsabilidades entre entes estatais, comunitários e privados no desempenho de ser-viços de interesse público.

A segunda: a proteção social e a qualidade de vida dependem em parte das políticas públicas, em parte de vínculos comunitários e redes sociais informais. “Os laços comunitários e as redes sociais têm poderosos efeitos sobre a saúde, felicidade, sucesso educacional, su-cesso econômico, segurança pública, e (especialmente) bem-estar infantil”, assegura Putnam (2015, p. 207). No caso de riscos comuns a crianças e jovens, como o consumo de drogas e de álcool, mesmo po-líticas bem estruturadas são insuficientes. A família e a comunidade constituem air bags que minimizam as consequências negativas. Em caso de desemprego, as redes sociais são fundamentais para a sobre-vivência e a reinserção no mercado de trabalho. Enquanto a coesão social da vizinhança é um fator fundamental de proteção social, es-sencial para enfrentar problemas familiares e pessoais. E reside aí, segundo Putnam, uma das faces da desigualdade social: variadas pes-quisas nos Estados Unidos apontam que os cidadãos melhor situados economicamente e com maior nível de escolaridade têm redes sociais mais amplas e profundas, seja nos círculos próximos da família e da vizinhança, seja nos mais amplos da sociedade. As crianças pobres estão vivendo em ambientes cada vez mais hostis e com menos coe-são social, o que inclui a menor frequência a igrejas. Superar o fosso social requer tanto a melhora dos serviços públicos quanto o reforço dos vínculos comunitários e laços sociais.

A terceira orientação é a ênfase nas políticas públicas comunitárias. Em sentido amplo, as políticas comunitárias compreen-dem todas aquelas em que há participação ativa das comunidades na formulação, execução e/ou controle das políticas públicas. São exemplos: o policiamento comunitário, os tribunais comunitários, as técnicas alternativas de resolução de conflitos, o desenho urba-nístico voltado a favorecer a vida das comunidades residenciais, a abertura de instituições públicas (escolas, bibliotecas, correios,

hos-pitais) ao uso das comunidades, a preservação de espaços relevantes para a vida comunitária (praças, passeios e locais públicos), entre outros (ETZIONI, 1999; 2000). Em sentido mais estrito, as políticas co-munitárias são aquelas que atendem certos requisitos específicos: (i) os beneficiários são vistos não simplesmente como indivíduos, mas como membros de uma comunidade; (ii) as políticas orientam-se por valores comunitários como solidariedade, participação e coerência;

(iii) são desenvolvidas com a participação de grupos ou organizações sociais; e (iv) estão voltadas às necessidades de grupos oprimidos ou marginalizados (BUTCHER, 1993). A compreensão sobre a relevância das políticas comunitárias é particularmente relevante nas políticas sociais (saúde, previdência, assistência social, educação, habitação, saneamento) face à oposição entre os defensores da prestação ex-clusiva dos serviços por agências estatais e aqueles que defendem a sua privatização. Na linha do entendimento de Michael Walzer (2003), as políticas sociais dizem respeito à provisão comunitária, ou seja, ao atendimento de bens gerais que não devem ficar ao sabor do livre intercâmbio e do mercado. “O que fazemos ao declarar que este ou aquele bem é um bem necessário é bloquear ou reprimir seu livre intercâmbio” (WALZER, 2003, p. 119). As organizações comunitárias, pela sua própria razão de ser – o atendimento de necessidades coletivas – são parceiras de primeira hora do poder público no desenvolvimento das políticas sociais.

A quarta e última é a legitimidade social das políticas, espe-cialmente nos casos de situações conflituosas. É a adesão dos cida-dãos, mais que a simples força coativa legal e estatal, que leva à eficácia ou à ineficácia de medidas que requerem mudança de com-portamento, como por exemplo o respeito à igualdade de gênero e ao meio ambiente, o consumo de cigarros e de álcool, entre outras. A lei só produz efeitos quando está assentada em valores assumidos pelos indivíduos (ETZIONI, 2007). Por outro lado, diante dos excessos indivi-dualistas, os comunitaristas têm assumido a defesa de medidas como o limite de velocidade de veículos, o uso obrigatório de cintos de segurança em veículos automotores e de capacetes pelos motociclis-tas, a revista pessoal em aeroportos, a proibição de doações vultosas de empresas em campanhas eleitorais, etc. As restrições à liberdade pessoal, nesses casos, se justifica em nome do bem de todos,

inclusi-ve dos próprios indivíduos envolvidos (ETZIONI, 1999).

O paradigma comunitarista proporciona uma abordagem ino-vadora sobre a inter-relação entre Estado, comunidade e mercado.

Ao invés da desgastada dualidade Estado/mercado, afinado com a clássica dicotomia público/privado, a tese do equilíbrio entre as es-feras estatal, comunal e privada possibilita uma compreensão mais apurada da complexidade organizacional própria dos dias atuais, e das possibilidades de ações complementares e sinérgicas entre as di-ferentes organizações.

A análise do significado político da sociedade civil e do terceiro setor é particularmente beneficiada quando se considera o paradigma comunitarista. É uma concepção que reconhece a especificidade das organizações do terceiro setor, classificando-as como uma categoria distinta do público e do privado. Realça a importância dessas organi-zações na oferta dos serviços públicos, bem como o papel insubstituí-vel das redes comunitárias na proteção social. Além disso, destaca a relevância da esfera comunal como o espaço de criação e recriação dos valores e normas sociais.

Ao postular o fortalecimento das comunidades, o comunitaris-mo não desconhece o protagoniscomunitaris-mo da ação estatal, sendo condi-zente com o enfoque de um Estado forte, regulador e prestador de serviços; entretanto, ao mesmo tempo que reconhece as virtudes do mercado no campo econômico, defende uma regulação moderada.

Estatismo e privatismo são vistos como excessos; o comunitarismo joga suas fichas no equilíbrio: a boa política é aquela que viabiliza a ação sinérgica e complementar das três esferas.

Fonte: http://planetariodorio.com.br.

Aristóteles (384-322 a.C.), um dos mais destacados filósofos gregos, notabilizou-se pela ideia do ser humano como ser so-cial e político. A união entre os homens é natural, porque o homem não é um ser completo por si próprio, é um ser que

necessita de coisas e de outras pessoas para alcançar a sua plenitude. A natureza social do homem se manifesta na lin-guagem, no logos. É em sociedade que o homem pode realizar

a sua potência mais elevada – a vida política (politikón).

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Comunidade é um conceito presente em todas as grandes re-ligiões mundiais, como o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o budismo, e em todos os grandes sistemas de pensamento. A tradição milenar assegura ao termo presença no vocabulário de todas as prin-cipais línguas: Koinonía (grego), Communitas (latim), Kehilla [kehi-llah] (hebraico), Umma ou Ummah (árabe), Sangha (sânscrito), Shèqū (chinês), Samudāya (híndi), Komyuniti (japonês), Soobshchestvo (rus-so), Community (inglês), Communauté (francês), Gemeinschaft e Ge-meinde (alemão), Comunidad (espanhol), Comunità (italiano), entre outras.

No pensamento social do Ocidente, a comunidade tem sido tema permanente, explícita ou implicitamente. Para Robert Nisbet, a história da filosofia social é fundamentalmente a história das ideias e dos ideais humanos quanto à comunidade e à anti-comunidade. O au-tor emprega o termo comunidade no seu sentido mais antigo e cons-tante: “relações entre indivíduos que são marcadas por um alto grau de intimidade pessoal, de coesão social ou compromisso moral, e de continuidade no tempo” (NISBET, 1982, p. 13). Considerando a família como protótipo da comunidade, Nisbet sistematiza o pensamento dos filósofos sociais ocidentais quanto às principais formas: comunidade militar, política, religiosa, revolucionária, ecológica e pluralista.

Elemento central da cristandade medieval, mas recusada por grande parte do pensamento iluminista moderno, a comunidade é

redescoberta no pensamento social europeu ao longo do século XIX e assume relevância crescente ao longo do século XX, mantida nos dias atuais. Após a 2ª Guerra Mundial, lembra Will Kymlicka (2003), o ideal de comunidade foi posto de lado pelos intelectuais, uma consequên-cia da ressignificação autoritária do ideal comunitário pelos ideólogos nazistas e nacionalistas, além da pouca atenção que lhe foi dada pela vertente predominante do pensamento liberal. Nas últimas décadas, todavia, houve um renascimento desse ideal tanto na academia como no ambiente social e político. Seu sucesso é tamanho que Axel Honne-th (2003, p. 291) chega a temer “que se lhe associe uma quantidade de intenções e de expectativas políticas tão grande que ele perca toda significação claramente definida”.

A polissemia é uma das características que acompanha a tra-jetória do conceito, presente em tradições políticas variadas: socia-lismo, anarquismo e movimentos operários à esquerda, nazismo à direita, reformismo social e terceira via ao centro, todas assinalam seu compromisso com o ideal comunitário.

No Brasil, a terminologia também está marcada por uma pro-fusa utilização, particularmente no âmbito da educação. Há pelos menos seis distintas referências históricas de educação comunitária no país: as escolas e universidades confessionais, desde a década de 1550; as escolas comunitárias de imigrantes, a partir dos anos 1820; a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, iniciada na década de 1930; o Desenvolvimento de Comunidade, desde a década de 1940; as escolas comunitárias (re)criadas por mobilização popular, a partir dos anos 1970; e as universidades comunitárias regionais, criadas pelas comunidades do Sul a partir dos anos 1940 (SCHMIDT, 2010 e 2009).

A polissemia e a perda de um significado preciso não incidem sobre a sua ampla utilização nos dias atuais. Ao contrário, comuni-dade sempre transmite a sensação de algo bom, positivo (BAUMAN, 2003, p. 7). O adjetivo comunitário é utilizado como uma espécie de salvaguarda das intenções públicas e coletivas de um sem número de iniciativas e movimentos, tanto no âmbito da sociedade civil (ex:

ação, conselho, escola, horta, biblioteca, centro, orquestra e jornal comunitários), do Estado (polícia, justiça, agentes de saúde e radio-difusão comunitárias) e da academia (universidade,

constitucionalis-mo, saúde, psicologia, terapia e comunicação comunitárias).

Terão todos esses usos atuais respaldo no pensamento comuni-tarista? Quais são os seus principais autores e os temas e concepções que aproximam os comunitaristas? O texto apresenta inicialmente uma retrospectiva das principais tradições intelectuais que tratam de comunidade e, após, uma síntese de grandes temas e concepções próprias do comunitarismo. O delineamento das grandes linhas que caracterizam o ideário comunitário pretende contribuir na reflexão sobre modelos democráticos alternativos ao estatismo e ao privatis-mo.