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Legislação relativa às organizações da sociedade civil no Brasil: insuficiências, ambiguidades e

comunitário e privado no devido lugar 9

3.3 Legislação relativa às organizações da sociedade civil no Brasil: insuficiências, ambiguidades e

imprecisões

A ordem legal brasileira não inclui o terceiro setor ou outro ter-mo similar coter-mo categoria jurídica. Sob a ampla gama de instrumen-tos legais referentes a organizações da sociedade civil, nota-se uma série de ambiguidades e imprecisões, indicativas de que o debate político ainda está longe de alcançar um patamar apropriado. Há uma insuficiente elaboração política associada à debilidade da legislação, orientada pelo pressuposto de que as entidades são privadas e cons-tituem uma espécie de linha auxiliar do poder público na prestação de certos serviços de interesse público. Um breve excurso histórico favorece a compreensão do sentido geral da legislação e das figuras jurídicas que enquadram as organizações sociais no Brasil.

Apesar de existirem organizações sociais voltadas à prestação de serviços de interesse público desde as primeiras décadas da Co-lonização, como hospitais filantrópicos, santas casas e escolas con-fessionais, a primeira lei voltada à regulação do funcionamento das organizações da sociedade civil é de 1893: a Lei 173/1893 teve por escopo regular “a organização das associações com fins religiosos, moraes, scientificos, artísticos, políticos ou de simples recreio”. A norma estabelece uma série de requisitos para o funcionamento das

organizações, mas não trata das prerrogativas nem da sua coopera-ção com o poder público.

Os sindicatos foram autorizados inicialmente pelo Decreto 979/1903 e Decreto-Lei 1.637/1907, e, após serem jogados na clan-destinidade, foram reconhecidos pela Constituição de 1934 e regula-mentados pelos Decretos-Lei 1.402/1939 e 5.452/1943 (Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT). A tutela do Estado marcou essa legisla-ção por várias décadas, quadro alterado apenas com a Constituilegisla-ção de 1988.

As cooperativas foram autorizadas pelo Decreto-Lei 1.637/1907 e regulamentadas mediante vários outros decretos. Em 1971, foi esta-belecida a Política Nacional de Cooperativismo pela Lei 5.764/1971, que rege o cooperativismo, em sentido amplo, no país. As coope-rativas sociais, uma parcela diminuta do mundo cooperativista, são reguladas pela Lei 9.867/1999.

O Código Civil de 1916 (nos artigos 13-16) estabeleceu a duali-dade entre pessoas jurídicas de direito público e de direito privado.

Por não pertencerem ao Estado, considerou de direito privado “as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública e as fundações” (art. 16), caracteri-zação que permanece até os dias atuais. Utilizou a expressão “intui-tos/fins não econômicos” (art. 42 e art. 1.439) para caracterizar as organizações da sociedade civil, uma terminologia inexata que tam-bém persiste até hoje.

Em 1935, foi criada a figura jurídica da utilidade pública. A Lei 91/1935 estabelece no seu art. 1º que podem ser declaradas de utilidade pública “as sociedades civis, as associações e as fundações constituidas no paiz com o fim exclusivo de servir desinteressadamen-te á collectividade”. Desde então um título próprio ao reconhecimen-to social e à concessão de alguns benefícios, como a isenção de cerreconhecimen-tos impostos, às instituições agraciadas. A figura da utilidade pública foi extinta pela Lei 13.019/2014.

Os partidos políticos existem desde o período monárquico, mas por mais de um século não tiveram reconhecimento constitucional e legal da sua importância como agências de organização da vontade

política dos cidadãos. A Constituição de 1946 foi a primeira a reco-nhecer que os partidos são imprescindíveis para a democracia, no entanto, não deixou de reafirmar a necessidade de controle, ficando vedada a organização, registro ou funcionamento de qualquer partido cujo programa ou ação contrarie o regime democrático (artigo 141).

Já a Constituição de 1988 enfatiza a importância dos partidos para a democracia, assegurando-lhes ampla autonomia, reafirmada em leis regulamentadoras da atividade partidária.

A filantropia – termo que vem sendo utilizado de longa data para caracterizar a ação beneficente e caritativa de entidades so-ciais voltadas ao interesse comum – recebeu reconhecimento legal na Lei 3.577/1959, que estabeleceu o Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos. Em 1993, a figura jurídica das entidades de fins filan-trópicos é reafirmada na Lei da Assistência Social (Lei 8.742/1993).

Essa categoria foi substituída posteriormente pela figura das entida-des beneficentes de assistência social, entida-destinatárias do respectivo certificado, o CEBAS, segundo normas da Lei 12.101/2009.

A Constituição Federal de 1988, além de assegurar a ampla li-berdade de associação dos cidadãos, veio a consagrar a cooperação entre o poder público e a sociedade como diretriz em todas as po-líticas sociais. A Carta Constitucional, embora não rejeite explicita-mente a dicotomia público/privado nem explicite a figura do terceiro setor, converge para o viés comunitarista em vista da influência do constitucionalismo comunitário (CITTADINO, 2009) No seu conjunto, não tende nem ao estatismo nem ao privatismo. A Constituição acolhe a concepção de um Estado forte, protetor dos cidadãos, economica-mente ativo e regulador do mercado. É enfática quanto à cooperação entre Estado e sociedade na garantia dos direitos sociais e reconhece a participação da sociedade na execução de todas as políticas so-ciais: saúde (artigo 197), assistência social (artigo 204), educação (artigos 205 e 213), cultura (artigo 216), desporto (artigo 217), meio ambiente (artigo 225) e comunicação social (artigo 223). Em nenhu-ma dessas políticas há previsão de atuação exclusiva do Estado; em todas, a diretriz é cooperar com a sociedade. Na ordem econômica, reconhece a propriedade privada, a livre concorrência e o livre exer-cício da atividade econômica (artigo 170), ao tempo que o Estado é considerado agente normativo e regulador da atividade econômica,

exercendo funções de fiscalização, incentivo e planejamento (artigo 174). A exploração direta de atividade econômica pelo Estado está li-mitada aos imperativos da segurança nacional e do interesse coletivo (artigo 173), o que fundamenta o monopólio da União em certas áreas (artigo 174) (SCHMIDT; ARAUJO, 2012, p. 337). A Constituição de 1988 utili-za a expressão sem fins lucrativos ao referir-se a instituições e enti-dades da sociedade civil, em vez da expressão “fins não econômicos”, utilizada do Código Civil de 1916 e reafirmada no Código de 2002.

Importante salientar que, no artigo 213, a Constituição reconheceu que recursos públicos podem “ser dirigidos às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas”, conferindo base jurídica à categoria do comunitário.

A Reforma Administrativa de 1995 originou duas figuras pró-prias do terceiro setor: as organizações sociais (Lei 9.637/1998) e as organizações da sociedade civil de interesse público, as OSCIPs (Lei 9.170/1999). A primeira caracteriza-se pelo intuito de repassar à sociedade civil serviços antes executados por agências públicas; a segunda, visa viabilizar a cooperação de organizações não governa-mentais com o poder público. A Lei das OSCIPs foi denominada por certo tempo de marco regulatório do terceiro setor, mas logo foi re-conhecida a sua limitada abrangência.

Em 1998, foi regulamentado o Serviço de Radiodifusão Comuni-tária, mediante a Lei 9.612-1998, com a criação da figura das emis-soras comunitárias, sob responsabilidade de fundações e associações comunitárias sem fins lucrativos.

O Código Civil de 2002 reiterou a divisão entre pessoas jurídicas de direito público e de direito privado (artigos 40-44) e a sua carac-terização pela expressão de “fins não econômicos” (artigos 53 e 61);

e consagrou as figuras das associações e fundações (cap. II e III) como as formas legais próprias das entidades do terceiro setor.

Instituição comunitária de educação superior tornou-se figura jurídica mediante a Lei 12.881/2013. A partir daí, em lugar da bi-polaridade instituições públicas e instituições privadas (estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996), configura-se a tripartição instituições públicas, instituições comunitárias e institui-ções privadas (particulares) no campo da educação superior.

Em 2014, foi sancionada a Lei 13.019/2014, com adequações feitas no ano seguinte pela Lei 13.204/2015, considerada atualmen-te o marco regulatório das organizações da sociedade civil. Uma de suas inovações é a introdução de uma nova figura jurídica: organiza-ção da sociedade civil, que abrange as entidades sem fins lucrativos, certas cooperativas e organizações religiosas que desenvolvem pro-jetos sociais. Embora meritória do ponto de vista de seu objetivo de estabelecer requisitos para a cooperação entre o Estado e os entes da sociedade, a lei não preenche condições suficientes para ser um marco legal do terceiro setor pelos limites de sua abrangência: não faz referência à figura das instituições comunitárias de educação su-perior nem aos sindicatos, aos partidos, a parcela das cooperativas, entre outras organizações sociais.

Para viabilizar o financiamento público das atividades dessas organizações, a legislação compreende um amplo leque de modali-dades, sendo as principais, conforme Silva, Jaccoud e Beghin (2005):

subvenções sociais (Lei 4.320/64, Lei 10.524/02; Decreto 93.872/86), auxílios (Lei 4.320/64, Lei 10.524/02; Decreto 93.872/86), contri-buições (Lei 4.320/64, Lei 10.524/02; Decreto 93.872/86), convênios (Lei no 8.666/93; Instrução Normativa STN 01/1997), termos de par-ceria (Lei 9.790/99; Decreto 3.100/99; Lei 13.881/2013), imunidade de impostos (Constituição Federal, art. 150, VI, c; CTN, art. 14), imu-nidade de contribuições sociais (Constituição Federal, art. 195, III, § 7º; Lei 8.742/93), isenção (CTN, art. 175 a 179), incentivos fiscais ao doador (Lei 8.313/91; Lei 9.249/95, art. 13; Lei 8.069/90, art. 260), voluntariado (Lei 9.608/98), além do termo de colaboração e de fo-mento (Lei 13.019/2014).

Resumindo, as figuras jurídicas no Brasil relativas às entidades da sociedade civil são: utilidade pública, entidade beneficente de as-sistência social, associação, fundação, organização social, organiza-ção da sociedade civil de interesse público, instituiorganiza-ção comunitária de educação superior, organização da sociedade civil, emissora comuni-tária, sindicato, cooperativa e partido político. A especificidade desse conjunto reside nos seus fins não econômicos ou sem fins lucrativos.

Esse arcabouço legal é um registro dos avanços e impasses que cercam a busca de cooperação entre as diferentes esferas sociais no

Brasil e é uma base valiosa para o propósito de avançar rumo a um marco legal do terceiro setor, que supere a dicotomia/público pri-vado e estabeleça bases mais consistentes à cooperação dos entes próprios do Estado, da comunidade e do mercado.

3.4 Quantificando os setores público, privado e