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5 A construção de significados no contexto cultural: a perspectiva da Psicologia Cultural

5.1 O desenvolvimento humano mediado por signos

5.1.1 Concepção de cultura

A Psicologia, na perspectiva de Valsiner (2014), tem falhado em capturar a subjetividade da experiência humana singular. De forma geral, esta ciência tem transformado sentimentos e pensamentos individuais em dados que deveriam refletir objetivamente as características psicológicas dos seres humanos. Contestando essa forma de produção de conhecimento em Psicologia, o autor propõe uma prática científica que formule conhecimentos gerais a partir das experiências subjetivas particulares. O psiquismo, nesta perspectiva, é profundamente construtivo. Uma experiência não pode ser repetida, pois, sempre haverá um novo aspecto que será adicionado. Consequentemente, muitas formas de pensar e sentir são criadas. O que é observado aqui e agora é orientado para o futuro. O futuro ainda não existe, mas está em processo de emergir e a Psicologia precisa explicar estes momentos de passagem (Valsiner, 2014).

Nesse contexto, a Psicologia Cultural emerge da interseção entre dois campos da Psicologia, a Psicologia do Desenvolvimento e a Psicologia Social, com outras áreas do conhecimento como Antropologia, História, Sociologia, Sociolinguística e Ciências da

Educação. Orienta-se para o estudo das funções psicológicas superiores relacionadas ao uso da vontade e da intenção construtiva de significado e inclui também as normas sociais, a forma como organizam o psiquismo. Para esta vertente teórica, tanto seres humanos reais quanto personagens fictícios são considerados formas equivalentes e valiosas de dados (Valsiner, 2014).

A cultura, na perspectiva de Valsiner (2012), não se refere apenas a um grupo de pessoas que partilham características similares. Destarte, se deve levar em consideração o aspecto de mediação semiótica da cultura, isto é, ela integra o sistema psicológico individual e o universo social de seus membros. A personalidade humana é um sistema integrado de mediadores semióticos em diversos níveis. É no contexto cultural que ocorre a construção de significados que, por sua vez, possibilitam o desenvolvimento. A cultura é entendida como parte inerente das funções psicológicas humanas, isto é, a experiência humana é considerada uma realidade subjetiva culturalmente organizada e sempre recriada de maneira pessoal. Deste modo, o autor considera como cada pessoa integra cultura em sua vida psicológica, isto é, como cada ser humano guia sua subjetividade através da mediação dos artefatos culturais. A linguagem é considerada, assim, uma ferramenta semiótica no sistema intrapsicológico da pessoa, orientando os modos pelos quais ela sente e pensa.

Deste modo, a cultura, na perspectiva deste autor, é efêmera no sentido de que está em todo lugar, mas não podemos apontá-la. Nós podemos falar sobre ela, mas não sabemos exatamente o que é. O autor afirma que o termo ‘cultura’ está carregado de significações ideológicas. Pode ser usado para enfatizar as diferenças do outro como irreconciliáveis com nossas características próprias ou, mais comumente, para mascarar processos sociais em que a sociedade atribui características diferentes das pessoas ao fato de pertencerem a diferentes culturas. Mecanismos de controle social eram utilizados de forma semelhante por aqueles que

objetivavam controlar os nativos visando manter a ordem nas colônias. Essas práticas não são explicações sobre as pessoas e apelam para o senso comum (Valsiner, 2014).

Na perspectiva da Psicologia Cultural Semiótica, a cultura está entre as mentes ativas e seus ambientes. Dessa relação, emergem diferentes produtos da mente: significados, ferramentas, símbolos. O foco, assim, reside na cultura como um processo de relação dinâmico que é tanto sincrônico quando diacrônico. Nesse entendimento, cultura é um processo, não uma entidade. Ela não tem agência, quer dizer, são os seres humanos que agem, logo, seu poder está nas ações das pessoas. Cultura não causa algo; são os seres humanos que agem, através da cultura, de forma orientada para seus objetivos e, com isso, reorganizam seus mundos. São as pessoas que criam e destroem culturas (Valsiner, 2014).

A partir disto, o autor salienta como o fenômeno de interesse da Psicologia é complexo e deveria ser estudado em sua complexidade e não através de elementos constituintes. Ele afirma que a Psicologia, desde o século XIX, tem utilizado instrumentos de pesquisa que eliminam a complexidade das relações entre o todo e suas partes e, com isso, o dado se perde. O autor ressalta ainda que pouco conhecimento novo tem sido criado com esse tipo de ferramenta metodológica (Valsiner, 2014).

O autor cita as dimensões que Parsons atribui a esta: cultura seria transmitida, aprendida e compartilhada. Valsiner propõe substituições para estas características mencionadas por denotarem uma posição estática: a) no lugar de transmitida: cultura é co-construida, isto é, é reconstruída em novas formas entre gerações e também entre grupos de pessoas da mesma idade através de processos bi-direcionais comunicativos; b) no lugar de aprendida: cultura é internalizada e externalizada, isto é, pessoas devem ativamente decompor mensagens que são comunicadas para elas através de signos, em novos padrões intrapsíquicos e, depois, trazer novamente esses padrões para uma esfera acessível a outras pessoas e; c) no lugar de compartilhada: cultura é coordenada, quer dizer, diferentes agentes (pessoas, instituições

sociais) regulam a experiência mutuamente. O foco principal da Psicologia Cultural Semiótica é, deste modo, coordenar os domínios pessoal (subjetivo) e social (coletivo) da experiência humana. O foco recai, portanto, na psique (o ativo construtor do mundo social e de si próprio). A cultura é entendida, nesta perspectiva, como um processo de relação entre o Sujeito e o Objeto do desenvolvimento humano e é parte do sistema psicológico geral de uma pessoa, pertencendo aos níveis superiores do fenômeno psicológico (Valsiner, 2014).

Os seres humanos estão sempre entre seu atual estado de desenvolvimento e o estado futuro esperado. Emprestando o esquema de Mead e ampliando-o, Valsiner (2014) explica que o I (o Self interno, inacessível aos outros) e o ME (o Self acessível às outras pessoas) se relacionam através de um salto interno, por meio da cultura (processos de mediação semiótica). Para exemplificar o que seriam as posições I e ME, podemos pensar na posição I: “Eu-filho- amado” e ME: “Minha-mãe-que-me-ama”. Da mesma forma, ocorre entre o ME e o mundo externo. Logo, cultura é uma construção de signos e participa de processos que ocorrem simultaneamente nos campos intra-psicológico e inter-psicológico.

Significações construídas no salto intra-subjetivo (isto é, entre o I e o ME) guiam a ação externa. Em alguns momentos, pode ocorrer o contrário. Os signos configuram a relação entre estes campos, sendo esta dialógica em várias formas de mútua coordenação. Com o tempo, essas relações dialógicas fazem surgir novas formas estruturais. A cultura é dinamicamente heterogênea, isto é, os saltos interno (entre o I e o ME) e externo (entre o ME e o mundo externo) raramente serão isomórficos. A psique humana, assim, é dual: existe, pelo menos, duas partes relacionadas reciprocamente. É dessa dualidade natural que o fenômeno psicológico pode derivar: é na divergência entre as partes do mesmo todo que se torna possível explicar as transições (Valsiner, 2014).

A heterogênea natureza do contexto de vida humana envolve áreas mais claras (linguagem e códigos semióticos em geral) e áreas liminares entre esses códigos onde uma

variedade de formas transicionais constantemente emergem. É precisamente nessas áreas, no “entre”, que vão sendo criadas tensões onde o desenvolvimento acontece. A maior parte dos fenômenos psicológicos relevantes acontece nessa área de fronteira, isto é, eles tomam lugar nas zonas-limite entre a pessoa ativa e o mundo (Valsiner, 2014).

Estas bordas organizam a semiosfera. A semiosfera é estruturada e estrutura divisões, bordas, zonas e outros dispositivos de separação. A semiosfera não é igual ao ambiente. Este último é o sistema de suporte da semiosfera. Esta, por sua vez, é resultado dos esforços humanos por produzir significações. Pessoas compreendem os ambientes que possuem significados, isto é, transformam o ambiente para que se torne significativo (Valsiner, 2014).

A pessoa, através de suas ações, relaciona diferentes partes da semiosfera. Com isso, constrói sua cultura pessoal. Esta é única para cada indivíduo e é a base para a conduta humana. Seres humanos criam aberturas entre as bordas da semiosfera e, com isso, geram novas estruturas que irão guiar suas ações (Valsiner, 2014).

Assim, cultura não é uma coisa ou algo que possa ser pego ou que alguém tenha, mas é um processo ativo de mediação de vidas humanas através de signos tanto intra quanto interpsicologicamente. Não existe cultura sem um agente. Cultura é somente uma palavra, um conceito. São as pessoas que tem poder para agir. Pessoas agem através da cultura. A questão central para a Psicologia Cultural, assim, é dar um lugar à cultura nas atividades diárias de pessoas ativas. Estas pessoas são produtoras de significações e estas mediam suas relações com o mundo. Seres humanos não ficam satisfeitos em ter uma experiência ruim: eles precisam refletir sobre essa experiência (Valsiner, 2014).

Nessa perspectiva, Valsiner (2012) distingue três formas de entender a relação entre pessoa e cultura: 1) pessoa pertence à cultura – garante uma relativa similaridade de todas as pessoas que pertenceriam a uma cultura determinada; 2) cultura pertence à pessoa – as ferramentas culturais são trazidas para os mundos pessoais dos indivíduos, nos quais atuam

transformando subjetividades e; 3) cultura pertence à relação da pessoa com o ambiente – pessoa e ambiente são considerados inclusivamente separados e, assim, cultura é considerada um processo de internalização/externalização, no qual pessoa e mundo se constituem mutuamente. Desse modo, nesta última forma de relação, a cultura é compreendida como algo que ultrapassa a ideia de entidade, referindo-se a processos posicionados.

A psicologia transcultural, que se constitui como um ramo da psicologia tradicional de comparações entre grupos, utiliza o primeiro modelo supracitado (pessoa pertence à cultura). Para esta abordagem, a cultura adquire duas propriedades fundamentais: homogeneidade qualitativa – considera-se que qualquer membro da cultura partilha com qualquer outro membro o mesmo conjunto de características culturais e estabilidade temporal – este conjunto de características culturais é o mesmo ao longo do tempo. Para gerar conhecimento, a psicologia transcultural utiliza a estratégia tradicional de comparação entre grupos. Assim, duas culturas são comparadas com base em dados psicológicos de seus membros, a partir de amostras que representem uma população e estes, por conseguinte, são generalizados. Para Valsiner (2012), não é possível produzir proposições absolutas sobre sociedades através de comparações relativas (Valsiner, 2012).

A ideia de comunhão se relaciona com a homogeneização do mundo social (o que traduz-se como condição importante para as instituições que buscam controle social). Porém, o desenvolvimento da vida atual é construído por um processo oposto de heterogeneização, isto é, pelas diferenças qualitativas observadas entre os indivíduos. Todos os processos sociais, biológicos e psicológicos são orientados pela heterogeneização. A homogeneização, ao contrário, leva ao fim do desenvolvimento. A partir da ótica da heterogeneização, não faz sentido a noção de cultura como um objeto que é dado para alguém. Para o autor, cultura é compreendida como a ferramenta de constante inovação das formas humanas de viver (Valsiner, 2012).