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5 A construção de significados no contexto cultural: a perspectiva da Psicologia Cultural

5.1 O desenvolvimento humano mediado por signos

5.1.4 O desenvolvimento humano orientado para o futuro

Conforme mencionado, nós fazemos distinções e estas podem levar a tensões. Algumas destas podem ser consideradas pequenas tensões, como as dúvidas sobre qual vestido usar, o que irá comer, etc. Também existem as grandes tensões que podem capturar a pessoa ou uma estrutura social por séculos. Estas últimas podem ser transformadas em histórias míticas e serem transmitidas através das gerações de variadas formas verbais ou pictóricas (Valsiner, 2014).

O ponto central, para Valsiner (2014), é que as vidas humanas operam através da criação de opostos, acionando o crescimento de oposições de vários tipos e resolvendo-as de variadas maneiras. Oposições são partes de um mesmo inteiro, unidas em uma relação dinamicamente aberta a tensões entre elas que podem, sob certas circunstâncias, levar a novos inteiros.

Como já descrito, para Valsiner (2014), os seres humanos constroem suas subjetividades através de signos. Pessoas estão sempre criando, usando e abandonando signos. Não somente criam e usam novos significados para descrever o mundo no momento infinitesimamente pequeno que chamamos de aqui-e-agora, mas também para se preparar para o que pode vir a acontecer. Não vivemos em um momento presente estático, mas em constante movimento do presente e para o próximo momento no tempo irreversível. Formalmente, em uma zona de

fronteira, cada signo enuncia duas coisas simultaneamente: algo sobre o que é aqui-e-agora na relação da pessoa com o mundo, o “como é”, e algo que pode vir a se apresentar nesta relação, isto é, possibilidades que podem vir a se tornar reais, o “como se”. Este processo é caracterizado por tensão e direcionalidade. Sem tensão, a pessoa não pode se mover (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

No momento em que compreendemos o tempo irreversível nas nossas vidas, criamos a zona-limite entre o-que-já-existe e o-que-não-existe-ainda. Este último requer nossa imaginação sobre o que pode ser, juntamente com nossa construção pessoal do futuro imaginado, isto é, do-que-eu-quero-que-exista. É nesta articulação desses três “o que” que se encontra a capacidade de significação humana com a ajuda de signos. Este é o convite da Psicologia Cultural Semiótica (Valsiner, 2014).

Assim, o signo apresenta duas funções: 1) representa algo no aqui-e-agora; e 2) fornece direção para o futuro imediato. Com isto, o signo prepara a pessoa para novos encontros que possam acontecer no mundo, mas que não são garantidos que ocorram. O futuro nunca pode ser conhecido, mas somente estimado a partir de um quadro de possibilidades imaginadas. Neste sentido, a adaptação, orientada para o futuro, não pode ser completamente realizada. Somente soluções aproximadas são possíveis. O ser humano não pode evitar as incertezas da vida e, para lidar com esta tarefa insolúvel, precisará construir signos e hierarquizá-los. A emergência da semiose, por sua vez, abre novas possibilidades de adaptação (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

Neste quadro teórico, portanto, considera-se que o desenvolvimento é um sistema aberto no qual a novidade está sempre em processo de vir a ser. Deste modo, um signo representa o que é no aqui-e-agora (e, portanto, organiza o momento presente) e, ao mesmo tempo, cria um campo aberto do que poderia ser no futuro (Abbey, 2012; Surgan et al, 2018). Tal relação pode ser ilustrada como na figura abaixo:

Figura 2: A abertura do signo para possíveis significados futuros (Abbey, 2012; Surgan et al, 2018).

Um exemplo fornecido por Abbey (2012) é quando uma pessoa ouve um som à distância e considera que é uma sirene. Ao mesmo tempo em que utiliza um signo para ordenar sua experiência presente (sirene), aspecto representacional do signo, esta pessoa também cria o que poderia se tratar este signo: “a ajuda está chegando” ou “perigo à vista” (aspecto de apresentação do signo). Os significados podem ser múltiplos, mas sempre haverá aqueles relacionados a auxiliar a pessoa a se pré-adaptar ao próximo momento.

Quando seres humanos constroem significados, à medida em que se relacionam com o mundo, campos semióticos opostos são criados automaticamente a cada momento. Um signo criado imediatamente cria seu oposto – um contra-signo – e novos significados emergem da união entre estes opostos. Neste sentido, a oposição é basilar para o desenvolvimento. Esta relação entre presente e futuro pode ser descrita em termos de campos semióticos A/não-A (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

Cada menção a A (o que algo é naquele momento imediato) refere-se simultaneamente a um campo oposto, não-A (o que algo pode vir a ser no futuro). Assim, o campo não-A é composto por todas as possibilidades de transformação de A, isto é, tudo o que A não é no presente, mas pode vir a ser no futuro (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

Figura 3: Os campos semióticos A e não-A (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

A e não-A não são exclusivamente separados, mas um existe porque o outro existe. Se um deixasse de existir, o outro também deixaria. O campo não-A é vago e confuso porque uma pessoa nunca tem certeza sobre o que vai acontecer em seguida. Ambos são considerados campo semióticos e não entidades. O campo A é composto por todas as versões similares de A (a’, a’’, a’’’ e assim por diante). Esta similaridade pode ser de três tipos: 1) baseada na classificação taxonômica – o campo A inclui os sinônimos (exemplo: inclui o signo “carro” porque é similar a “automóvel”); 2) baseada nas relações funcionais – campo A inclui os signos que mantém uma relação funcional com ele (exemplo: “cavalo” e “cavaleiro”) e; 3) baseada no uso de qualificadores – campo A inclui variações qualitativas do signo (exemplo: uma pessoa que considera alguém “mesquinha”, pode incluir variações como “muito mesquinha”, “não tão mesquinha” e assim por diante). Já o campo não-A é caracterizado por indeterminação externa, isto é, emerge gradualmente junto com o campo A e inclui todas as versões de signos que não possuem similaridades com o campo A (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

Como pode ser visto através da relação entre A e não-A, para esta perspectiva teórica, nossos processos mentais não podem ser descritos em termos unipolares, mas somente em termos dialógicos. O campo A emerge no primeiro plano, mas em relação com um fundo, que é o campo não-A. Através deste sistema dual é que a transformação de significados acontece. O campo não-A é criado em paralelo com o campo A e é caracterizado por ser um campo ainda- não-diferenciado, isto é, um campo potencial de construção de significados. Assim, o campo

não-A está relacionado ao presente e ao futuro e a relação “como é”/”como se” pode ser elaborada em termos da dualidade A/não-A (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

A transformação de significados pode ocorrer de duas formas: 1) através do crescimento, isto é, quando o campo A se diferencia. Neste caso, o signo a’ ganha significado e coloca o signo não-a’ no fundo e 2) através de elaboração construtiva, quando o campo não- A se diferencia, tornando possível a mudança de A. Neste caso, uma nova estrutura emerge desta relação, o campo B. Assim, tanto a mudança quanto a permanência podem advir como resultado do processo de oposição entre A e não-A (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

Alguns significados criados podem ser mantidos em relações de harmonia ou de rivalidade. Significados contraditórios podem se manter fechados em si mesmos sem criar nenhum tipo de tensão. Estes processos são catalisados por dispositivos semióticos reguladores que podem ativar a transformação ou bloqueá-la. Um exemplo disto é quando uma pessoa evita se engajar no processo de construção de significado, dizendo “eu não quero pensar sobre isso” (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999).

A forma de um signo relacionado com a consideração de que a existência humana é orientada para o futuro e que continuamente estabelece signos abstratos que funcionam como guias para a construção de um futuro possível, são os signos promotores. Estes são profundamente internalizados e agem como orientadores pessoais baseados em valores. Cada significado existe em uma janela temporal que nós chamamos presente e funciona como um dispositivo de mediação semiótica que se estende do passado para um futuro possível. Neste sentido, os signos promotores possuem uma função de previsão: eles estabelecem significados possíveis para futuras experiências. Um signo se torna um signo promotor quando se direciona para futuras ações e quando é internalizado na forma de sentimentos. A continuidade do Self em desenvolvimento, assim, é constituída pelo produto da externalização de signos internalizados que começam a agir como promotores (Valsiner, 2012).

De forma resumida, cada posição oposta (A e não-A) opera em relação dinâmica uma com a outra, provendo os caminhos para o movimento. Assim, a posição inicial A (tese) evoca o campo não-A. Este campo, então, cria uma contraposição (antítese). O campo não-A alimenta A em um ciclo de sequências repetitivas. Quando tensões não-harmoniosas emergem, o sistema pode se mover em uma nova forma estrutural. Essa tensão desarmoniosa pode gerar um salto qualitativo: a síntese dialética (Valsiner, 2014).

Deste modo, a dualidade entre os opostos em qualquer complexo de significado é condição para qualquer processo de transformação e emergência da novidade. Todos os seres humanos estão imersos neste processo e, consequentemente, torna-se possível a análise de narrativas consideradas como construções de significados no tempo irreversível, objetivando não entendê-las, mas sim explicar processos psicológicos de construção de significados (Josephs, Valsiner & Surgan, 1999). Neste sentido, a construção semiótica do Self se desenrola através das alternativas elaboradas na relação A/não-A e pela incerteza do futuro (Valsiner, 2014).