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7 Os posicionamentos dos estudantes negros: o desenvolvimento psicológico no contexto

7.1 Tereza de Benguela: “eu percebi que o racismo me fazia ser menos do que eu sou

7.1.3 Pertencimento

Apesar de o contexto colocá-la neste lugar de não-pertencimento, Tereza resiste a este signo, buscando criar novos signos promotores que a direcionem para a posição oposta, isto é, para uma posição de pertencimento ao contexto universitário. Deste modo, sua posição “Eu- pertencente-a-universidade” vai se delineando a partir de suas experiências e passando a conviver com o signo “não-pertencimento”, que não deixa de existir, uma vez que o contexto segue trazendo-o à tona. Tereza demonstra, em sua trajetória, que o estudante negro, mesmo quando desenvolve uma perspectiva de Self racializada precisa conviver com as mensagens racistas do meio que não cessam de chegar. Deste modo, pela necessidade de dialogar com o contexto racista que não reconhece as práticas discriminatórias (especialmente no Brasil), i o Self de Tereza passa pelo constante diálogo com o signo do não-pertencimento.

No curso pré-vestibular que começou a fazer para ingressar na universidade, Tereza entrou em contato pela primeira vez com a discussão sobre a lógica das questões de raça e de gênero no que tange ao acesso à universidade, mas ainda não estava completamente consciente deste debate. Esse cenário é transformado, porém, quando acessa a Educação Superior. Parte do sucesso da sua adaptação ao contexto universitário decorre da participação nessas discussões, em eventos extracurriculares, com um coletivo negro que passa a integrar e de sua maior consciência sobre as implicações do racismo na sua vida e na das pessoas negras de forma geral. Ela afirmou sobre sua trajetória:

ela perpassa por várias coisas, das relações interpessoais, as dificuldades financeiras, das dificuldades de adaptação, e com... que com tudo isso eu consigo me ressignificar como sujeito negro, eu consigo me perceber como uma mulher negra, me portar como uma mulher negra, e ir em busca de tudo o que é meu por direito. Então eu percebo que é uma dívida histórica, mas que com essas... de forma afrontosa quanto mais a gente vai ocupando... é... a gente vai reduzindo,

tentando, na realidade, reduzir esse estado comum, essa desigualdade que a gente vivencia de forma assustadora todos os dias. É... Então realmente acho que é uma, é... baseada na resistência, minha trajetória é baseada na resistência mesmo, o resistir e ocupar pra tentar chegar num outro patamar de vida visando salvar os meus e salvar a mim, né? A nós e os nossos. Eu percebo essa trajetória dessa maneira.

Eu acho que é [a trajetória dela] revolucionária, viu? (risos) Porque contraria as estatísticas, sabe? Ah, e fico feliz por ter mais pessoas, mais pessoas parecidas comigo, com realidades parecidas, outras com mai... com maior dificuldades, outras com as mesmas dificuldades, mas que é... é muito massa porque contraria [...] o estado comum que costumam enxergar a gente, né, o local comum que costumam nos ver e já... nos categorizar. Então eu percebo como uma trajetória bem bonita, assim, acho que eu vou fazer uma biografia minha...(risos)

No trecho acima, percebe-se que Tereza ressignificou sua trajetória a partir de experiências que ultrapassavam o currículo formal de seu curso de graduação, assumindo ao final de seu percurso, uma posição de pertencimento, apesar das mensagens opostas que recebe constantemente do contexto. A assunção desta posição traduz a emergência de um Self racializado, que aprende a se afirmar, a resistir e a questionar.

Momento 2

Tereza também ressaltou as relações que construiu durante esse período na universidade como fator fundamental para seu aprendizado e permanência. Considera-se feliz por ter amigos negros e por pertencer a uma instituição que consegue reunir pessoas diferentes, apesar de não

dar conta de todas as demandas. Sente-se motivada a acordar e ir para a universidade todos os dias por estar num espaço que acredita ser plural. Encontrando-se ao final de sua trajetória (último ano do curso), sente-se realizada pelo que alcançou e afirmou sobre sua formatura:

A Tereza de hoje vai reproduzir bem garotinha, (risos) no dia da formatura aquele juramento [que fez quando era criança]: ‘Prometo diante de Deus e diante das pessoas presentes seguir a minha carreira de estudante, um livro será o meu companheiro constante, e com ajuda de Papai do Céu eu serei uma boa aluna, sempre respeitando meus professores e colegas’. É essa Tereza que eu quero mostrar. É isso.

O trecho acima também denota a posição Eu-pertencente-à-universidade, construída por Tereza, a partir do acesso a um conhecimento afro-centrado e a outras pessoas semelhantes que compartilhavam essa mesma perspectiva. Além disso, também é possível vislumbrar outra posição que emerge: Eu-boa-aluna. Para Tereza, ser uma boa aluna parece estar relacionado a estar sempre acompanhada de um livro e a sempre respeitar os professores e colegas, isto é, a um aspecto intelectual e a outro aspecto comportamental e ético. Estudantes negros, de forma geral, tendem a não ser considerados nesse lugar de intelectualidade, assim como, pessoas negras são associadas a comportamentos primitivos e não civilizados, conforme já mencionado neste estudo. Ao afirmar em sua formatura que ela será uma boa aluna (isto é, que ela cumpriu seu juramento infantil, tendo sido uma boa aluna na sua trajetória educacional, incluindo na Educação Superior), ela está se colocando em uma posição de sucesso. Ela foi uma boa aluna, apesar das expectativas sociais contrárias e conseguiu se formar. Diante de todas as asserções possíveis para descrever sua condição de estudante exitosa (compromisso com multinacionais, morada em outro país, representação em espaços públicos, assunção de cargos estratégicos empresariais etc), a participante limitou-se a resgatar uma lembrança infantil que apenas nega

as expectativas sociais comumente lançadas sobre ela. Sua conquista, portanto, não está dissociada de uma experiência que é, dentre outras coisas, racial. Deste modo, busca-se discutir aqui como as experiências de estudantes negros na universidade são atravessadas, ainda que nem sempre de forma evidente ou direta, por uma perspectiva racializada, conformando parte de sua constituição subjetiva. O Self neste caso, portanto, funciona dialogicamente, mas pautado por uma dimensão que é racial. Destaca-se, ainda, que esta posição Eu-boa-aluna é mais um fator que evidencia sua noção de pertencimento à universidade e que pode ser considerada um signo promotor, uma vez que persiste em toda sua trajetória acadêmica, mesmo com todos os desafios e tensões provocados pelo racismo estrutural. O juramento realizado na infância será lido na sua formatura, indicando que, ser uma boa aluna, contrariando as expectativas sociais, foi importante em seu percurso.