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2 Ser negro e as influências do racismo no desenvolvimento psicológico: a Psicologia e as

2.2 Raça: uma construção social

“Quem disse que roubar um povo de sua linguagem é menos violento que a guerra?” (Smith, s/d citado por Anzaldúa, 1987, p. 53) A cor da pele é determinada pela quantidade e tipo do pigmento melanina na derme, sendo sua variação controlada por quatro a cinco genes. Do ponto de vista ético, essas diferenças naturais ocasionadas por poucos genes específicos têm gerado, ao longo da história, distintas leituras sociais que, por sua vez, estão relacionadas com diversos eventos históricos como guerras, massacres, processos de apartheid e separação (Barros, 2014).

Discussões intensas sobre o conceito de raça estiveram presentes nos debates científicos e, atualmente, sobretudo a partir dos estudos em biogenética, há um consenso de que não existem raças humanas no sentido biológico do termo. A paleoarqueologia tem demonstrado que todos os homens e mulheres derivam de um ancestral único (um homem e uma mulher africanos). A noção de raça, assim, criada pela ciência, está sendo dissolvida por ela própria (Barros, 2014; Guimarães, 1999).

Entretanto, tal conceito subsiste devido à sua força sociológica, uma vez que continua agregando grupos sociais em torno de ideais de coesão e luta, afetando concretamente a vida de milhões de pessoas. O preconceito racial traduz-se como uma realidade sociológica efetiva atualmente, no qual a percepção da cor da pele é trazida ao primeiro plano para compor a singularização do indivíduo, isto é, constituir seus processos subjetivos.

Deste modo, a noção de consciência negra não diz respeito à autoconsciência de que se é negro enquanto unidade biológica. Este termo refere-se à concepção de que se é construído como negro pelos poderes institucionais, pelas formas de sociabilidade e pelas práticas culturais. Esta consciência envolve, irremediavelmente, a percepção de que se está sujeito a

desigualdades no plano social. Assim, consciência negra “é construir uma identidade negra em um mundo dentro do qual o racismo –outra construção – existe de modo explícito ou encoberto” (Barros, 2014, p. 221).

Raça, assim, é um conceito eminentemente social, quer dizer, não corresponde a nenhuma realidade natural. Denota uma forma de classificação social, geralmente baseada em uma atitude negativa frente a determinados grupos sociais e comumente confundida como sendo endodeterminada. É preciso considerar que o termo “raça” é um conceito relativamente recente. Antes de adquirir qualquer conotação biológica, tal termo estava relacionado a ideia de grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem comum. Posteriormente, tal termo foi relacionado a diferenças fenotípicas entre as pessoas a partir de pesquisas biológicas. Atualmente, porém, compreende-se que diferenças fenotípicas e também diferenças intelectuais, morais e culturais entre indivíduos e grupos humanos não podem ser diretamente atribuídas a razões biológicas, mas devem ser articuladas com construções socioculturais e condicionantes ambientais. Assim, fenótipos ganham sentido somente através das crenças e valores socioculturais (Guimarães, 1999).

Segundo Guimarães (1999), o conceito de etnicidade é mais amplo que o de “raça”. Etnicidade se constitui como um aspecto das relações sociais entre agentes que se consideram culturalmente distintos daqueles de outros grupos com os quais mantêm interação cultural regular. Alguns pesquisadores preferem falar somente de “etnias” por entender que a noção de “raça” está carregada de ideologia. Porém, tal conceituação diminui as possibilidades de distinções analíticas, constituindo-se mais como uma forma de contornar problemas de análise do que resolvê-los. Deste modo, “raça” não é um conceito que explique fenômenos ou fatos sociais de caráter institucional, mas um conceito que auxilia o pesquisador a compreender determinadas ações e práticas subjetivamente orientadas, isto é, contribui no entendimento do

sentido subjetivo que guia certas ações sociais. Assim, a despeito das críticas sobre a utilização da noção de raça, tal conceito tem uma realidade plena.

De forma semelhante, Silva (2017) aponta a ideia de “raça” como um signo cujo significado só faz sentido a partir da experiência do racismo. Assim, inicialmente “vazio”, é preenchido quando utilizado nas experiências atravessadas pela ideologia racista, tanto para a vítima quanto para o autor, afirmando, deste modo, seu caráter social e não biológico. Neste sentido, a “noção de raça tem (...) uma realidade social plena e o combate aos comportamentos negativos que enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade que só o ato de nomear o permite” (Silva, 2017, p. 78).

O racismo se constitui como uma forma específica de naturalizar a vida social, isto é, de explicar diferenças de ordem pessoal, cultural e social por meio do que é considerado natural. Isso ocorre, por exemplo, quando se compreende que alguém com determinada identidade racial ou regional deva agir de determinada forma ou ainda quando se considera que uma região é menos desenvolvida que outra por possuir um maior número de mestiços e negros em sua população. Estes exemplos denotam a ideia de uma natureza geral que justificaria os aspectos socioculturais ou individuais (Guimarães, 1999).

Silva Júnior (2017) define o racismo como

uma realidade multifacetada de fatores históricos, econômicos, geopolíticos, sociais, institucionais, culturais e subjetivos, que se manifestam por depreciação do outro, inferiorização do outro e exclusão dos bens materiais e simbólicos capazes de lhe garantir uma existência digna (p. 162).

Cabe destacar que cada tipo de racismo só pode ser compreendido a partir de sua própria história, considerando as especificidades de cada contexto. No caso brasileiro, o racismo, marcado pela ideia de fenótipo (e não de genótipo como acontece em outros contextos) foi, até pouco tempo atrás, considerado um tabu devido à noção de democracia racial. Esta noção,

segundo Munanga (1999; 2006), se traduz numa crença de que a mistura racial gerou um povo que está acima de tudo, acima de práticas racistas, sem barreiras e sem preconceitos. Guimarães (1999) complementa afirmando que tal ideia transformou o assunto do racismo em tabu, de forma que falar sobre isto poderia não ser considerado algo bem-quisto socialmente (chamar alguém de “negro”, por exemplo, poderia ser considerado ofensivo, o que desencadeou inúmeras palavras para distinguir pessoas de cor de pele escura). Configurado muitas vezes como fonte de orgulho nacional, o mito da democracia racial serviria como prova contundente do status de povo civilizado. Pode-se refletir, entretanto, que constitui esforço ideológico que obscurece o verdadeiro racismo nacional.

Para Munanga (2017), o racismo à brasileira se diferencia daquele presente em outros locais, porque nunca foi institucionalizado em formato de lei como ocorreu no regime nazista, nas leis Jim Crow nos Estados Unidos ou no apartheid na África do Sul. Sem desconsiderar o fato de que não há racismo melhor nem pior, nesses países o racismo foi explícito e oficializado. No Brasil, o racismo se configura de maneira implícita e este fato gera a percepção de que ele não existe no país. Quando se comparam aos alemães, norte-americanos ou sul-africanos, o brasileiro compreende que não é racista, pois, nunca houve legislação semelhante em seu país. Tal cenário, segundo o autor, reforça o mito mencionado, fazendo acreditar que as relações são harmoniosas no Brasil e que só existe desigualdade econômica, mas não no que tange à cor da pele. Com isso, difunde-se a ideia que o Brasil é um país mestiço e que essa mestiçagem constitui, portanto, a “raça brasileira” (Munanga, 2017). Conforme o autor,

O racismo à brasileira, como os demais racismos que se desenvolveram em outros países, tem sua história diferente da dos outros e suas peculiaridades. Entre estas, podemos enfatizar notadamente o significado e a importância atribuídos à miscigenação ou mestiçagem no debate ideológico-político que balizou o processo de construção da identidade nacional e das identidades particulares. Nesse debate de ideias, a

miscigenação, um simples fenômeno biológico, recebeu uma missão política da maior importância, pois dela dependeria o processo de homogeneização biológica da qual dependeria a construção da identidade nacional brasileira. Foi nesse contexto que foi cunhada a ideologia do branqueamento, peça fundamental da ideologia racial brasileira, pois acreditava-se que, graças ao intensivo processo de miscigenação, nasceria uma nova raça brasileira, mais clara, mais arianizada, ou melhor, mais branca fenotipicamente, embora mestiça genotipicamente. Assim desapareceriam índios, negros e os próprios mestiços, cuja presença prejudicaria o destino do Brasil como povo e nação (Munanga, 2002, p. 10).

Outra característica do racismo brasileiro é o silêncio, isto é, o não-dito. Além das consequências materiais e físicas que provoca, o racismo também aliena a consciência tanto das vítimas, quanto da sociedade em geral. Este fator, associado com a noção de mestiçagem, desmobiliza as vítimas e diminui sua coesão. Compreendendo-se como mestiços, muitos irão aderir a ideologia do branqueamento e não irão assumir sua negritude. Deste modo, a figura do(a) mestiço(a) será utilizada para invisibilizar os problemas sociais e servir de justificativa para combater as políticas reparadoras que beneficiam aqueles que se reconhecem como negros (Munanga, 2017). O autor define o racismo brasileiro como “difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações, porém, eficiente em seus objetivos” (p. 41).

Para Gonçalves Filho (2017), o racismo, fenômeno histórico e social, traduz-se como uma luta de grupo contra grupo. Isto quer dizer que, quando um negro é humilhado, este ataque não é destinado somente àquela pessoa em questão, mas a todo um grupo social: “um ataque a ‘um negro’ é sempre um ataque ‘aos negros’” (p.148) e representa os interesses do grupo que atacou. Percebe-se que, quando se pensa em relações raciais, há uma “despersonalização” do sujeito negro, no sentido de que ele perde sua identidade pessoal, única e singular, tornando-se representante de todo um grupo (ou de toda uma “raça”). O mesmo não acontece com as pessoas

brancas, sendo cada indivíduo representante apenas de si mesmo. Dito de outro modo, não se considera que o negro possui uma subjetividade.