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3 Experiências universitárias de estudantes negros: velhos desafios e a construção de novos

4.2 Memórias coloniais no racismo cotidiano: a perspectiva de Grada

4.2.2 A objetificação da pessoa negra

A pessoa negra é colocada na posição de “Outro” através de certos processos como: a) infantilização – o negro é visto como dependente e não pode sobreviver sem seu senhor; b) primitivização – é visto como próximo a natureza; c) Incivilização – visto como o violento e ameaçador Outro, o criminoso; d) animalização – visto como um animal ou menos que um ser humano e d) erotização – visto como possuidor de um violento apetite sexual. Assim, quando uma pessoa negra estadunidense ou europeia é perguntada sobre seu local de nascimento; quando, uma pessoa negra, se vê somente em pôsteres de pessoas procuradas pela polícia ou que necessitam de ajuda; quando uma pessoa branca tenta passar na frente de uma pessoa negra que aguarda sua vez em uma fila; quando uma pessoa negra é silenciosamente monitorada pelos seguranças quando está dentro de uma loja ou outras situações similares, esta pessoa está sendo colocada no lugar de “Outro”, de objeto do sujeito branco (Kilomba, 2016).

Kilomba também pontua que estas situações não são pontuais ou eventos discretos, mas constituem o racismo cotidiano que revela um padrão contínuo de abuso que se repete incessantemente na biografia das pessoas negras nos diferentes contextos em que circulam: o ônibus, o supermercado, uma festa, a família, o local de trabalho, a universidade. Pessoas negras convivem diariamente com a possibilidade de serem “fisgadas” pelo olhar branco que as objetifica.

Buscando opor o lugar de “Outro” que o sujeito negro é colocado pelo olhar branco e objetivando inventar novas posições que a pessoa negra pode ocupar, a partir de seu próprio

olhar, Kilomba (2016) defende que oposição e reinvenção são dois processos complementares, uma vez que somente fazer oposição não é suficiente.

Sujeito e Objeto são dois conceitos que marcam posições distintas em um contínuo. Sujeito é aquele que tem o direito de definir sua própria realidade, estabelecendo sua identidade e sua história. Objeto, por sua vez, é aquele que é definido pelos outros e sua história e identidade é nomeada a partir da relação que estabelece com aqueles que são considerados sujeitos. Passar da condição de objeto para a condição de sujeito é um ato político. E, assim, não adianta somente resistir, é preciso também recriar-se, tornar-se um sujeito. Tornar-se um sujeito, portanto, na realidade das pessoas negras, é sair da posição de “Outro” do olhar branco. É nesse sentido que a autora, ao ouvir episódios de racismo vivenciados por mulheres negras, afirma a importância de colocar essas participantes falando em seu próprio nome, isto é, no lugar de sujeito e não de objeto do olhar do outro (Kilomba, 2016).

A partir das narrativas de suas participantes, a pesquisadora analisa como as Memórias da Plantação6 ressurgem e são vivenciadas pelas pessoas negras a cada situação em que enfrentam racismo. Ao serem confrontadas com o racismo, as pessoas negras sentem um choque violento que, de repente, os coloca novamente no cenário colonial. Através das Memórias da Plantação, elas são novamente “presas” no lugar do “Outro” exótico. Portanto, sem esperar, o passado coincide com o presente e o presente é experienciado como um passado angustiante. Quando alguém é chamado de “macaco”, por exemplo, uma cena colonial está sendo revivida. O branco torna-se o senhor e o negro, através da humilhação sofrida, torna-se seu escravo. Subitamente, o colonialismo é experienciado como real, é possível senti-lo. Ao re- experienciar o passado no presente, essa realidade se caracteriza como traumática para as pessoas negras, entretanto, tende a ser negligenciada. Africanos e pessoas da diáspora africana são forçadas a lidar não somente com seus traumas individuais, mas também com o trauma

6 Plantation Memories, no original.

coletivo e histórico do colonialismo, que é revivido e atualizado constantemente através do racismo cotidiano (Kilomba, 2016).

Constata-se o sofrimento vivenciado pelas pessoas negras e a necessidade da Psicologia se debruçar sobre isto. O passado colonial não foi esquecido e reverbera ainda no presente, de maneira que uma Psicologia brasileira que desconsidera a realidade do racismo, fundante desta nação, jamais conseguirá responder adequadamente e eticamente as demandas complexas de seu contexto.

O sujeito branco, através da lógica dual que caracteriza o pensamento ocidental, direciona para si o que é considerado bom e benevolente, sendo estes elementos experienciados como pertencentes ao seu Self e projeta para fora, o que é considerado mal e malevolente, sendo estes elementos, portanto, experienciados como externos, logo, pertencentes ao Outro. A pessoa negra, assim, se torna o receptáculo das projeções que o sujeito branco tem medo em si mesmo (Kilomba, 2016).

Deste modo, a pessoa negra se torna não somente Outro, mas o Outro caracterizado pela personificação de aspectos reprimidos do Self branco. Tornam-se a representação mental do que o sujeito branco não quer ser. O Outro não é outro por si mesmo, mas se torna Outro através de um processo de negação do sujeito branco. Logo, não é com a pessoa negra que estamos lidando, mas com as fantasias dos sujeitos brancos sobre o que é ser negro. Fantasias que não representam as pessoas negras, mas o imaginário branco (Kilomba, 2016).

Neste cenário, o negro é forçado a desenvolver um relacionamento consigo mesmo através do olhar alienante do branco. Sempre posto como Outro, nunca como um Self, o negro também passa a ver-se deste modo. Enquanto o branco se pergunta: “o que eu vejo?”, o negro se pergunta: “O que eles veem?”. Alguém só pode ser colocado no lugar de Outro quando sua subjetividade é negada, passando a ser visto, então, de forma essencializada, como um mero representante de uma raça. Isto implica na compreensão de que o desenvolvimento de pessoas

negras não está atrelado somente a eventos familiares, por exemplo, como boa parte das teorias psicológicas ocidentais afirmam, mas também a um contato traumático com uma violência irracional que as coloca como o Outro, o diferente, o incompatível, o estranho, o incomum (Kilomba, 2016).

Por tal motivo, o suicídio pode acontecer como uma tentativa de se tornar um sujeito. Quando a pessoa decide não mais viver sobre as condições impostas pelo olhar branco, quando não mais suporta ser reduzida a posição de objeto, pode cometer um ato suicida como uma forma de buscar a sua subjetividade constantemente negada. Nesse sentido, o suicídio pode ter uma função subversiva contra a opressão racial. No passado, muitas mulheres escravizadas terminaram suas vidas e a de seus filhos para que não vivessem sob tais condições precárias e, isto, não agradava ao senhor branco que perdia a sua propriedade (Kilomba, 2016). Esta é mais uma situação que precisa ser compreendida pelos profissionais de saúde mental, considerando os atravessamentos da ideologia racista existente.

Percebe-se aqui que estudar o desenvolvimento de pessoas negras sem considerar como a realidade do racismo atravessa seus processos pessoais se traduz como inadequado ou descontextualizado. Pesquisas que não consideram esse fator estão reproduzindo o Self branco e o Outro negro, ainda que sem consciência disso. Devido ao racismo, pessoas negras experienciam a realidade de forma diferente das pessoas brancas. Quando o cenário colonial é revivido no presente, a violência experienciada pelas pessoas negras não o é por pessoas brancas. Isto implica considerar que as pesquisas que intentam colocar o negro no lugar de sujeito e não de objeto, precisam levar em conta este fator.

O cenário acadêmico é um espaço predominantemente branco, onde tem sido negado às pessoas negras o privilégio de falar. Kilomba denuncia que estudiosos brancos têm construído formalmente o negro como o Outro inferior, uma vez que é com este olhar de sujeito branco que realizam suas pesquisas pretensamente neutras. Nestas, em sua maioria, o negro não é

colocado no lugar de sujeito. Os temas, paradigmas, epistemologias e metodologias trabalhados refletem interesses políticos específicos de uma sociedade branca (Kilomba, 2016).

Cabe destacar que o negro não pode falar devido às estruturas de opressão que não permitem com que suas vozes sejam ouvidas e não porque aceita o lugar do Outro passivamente. De fato, as pessoas negras têm falado, mas devido ao racismo, suas vozes são continuamente desqualificadas ou deslegitimadas, especialmente no âmbito científico.

A autora relata sobre as constantes críticas que recebe por fazer um trabalho político, mas não de caráter científico e denuncia que tal afirmação trata-se de uma violenta ordem colonial ainda presente que determina quem pode falar. Em suas palavras, a mensagem que é colocada para os pesquisadores negros leva a percepção de que: “Eles (brancos) têm fatos, nós (negros) temos opiniões. Eles têm conhecimento, nós temos experiências” (p. 26). Com isso, ela conclui que a ciência não é um estudo apolítico da verdade, mas a reprodução de relações raciais de poder que define quem fala a verdade e quem deve acreditar nelas. Assim, se torna necessário elaborar questões que desafiem a autoridade colonial presente no discurso hegemônico. É através do estudo sobre a marginalidade em que o negro é colocado que se podem criar novas formas de emancipação para um novo sujeito.