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7 Os posicionamentos dos estudantes negros: o desenvolvimento psicológico no contexto

7.1 Tereza de Benguela: “eu percebi que o racismo me fazia ser menos do que eu sou

7.1.5 Recursos simbólicos e sociais

Na narrativa de Tereza, as vozes familiares aparecem como contexto marcante em sua trajetória. Ela considera que possui uma responsabilidade social, em especial com seus pais, uma vez que estes não tiveram acesso à educação superior e a diversas outras oportunidades. Ela afirmou que estes souberam educar suas filhas e as ensinaram que poderiam chegar onde quisessem, sendo por isso que ela começou a mudar, passando a buscar outras possibilidades para sua vida. Adicionalmente, Tereza destaca a mãe como figura de força e resistência que a inspira seguir em seu percurso acadêmico e que alimenta sua responsabilidade de corresponder à possibilidade de ascender socialmente:

(...) é pela redenção deles que eu tô perto de formar agora, bem feliz inclusive, por uma trajetória que estando longe deles, né, já que eles moram no interior, eu atualmente moro na Residência Estudantil... (...) porque o nosso objetivo é um só, nosso objetivo é fazer por nós e por eles... (...) eles nunca tiveram oportunidade de viajar e pra eles foi uma redenção, é... me ver na primeira viagem de avião, pra mim foi, também, muito feliz, assim, algo que é muito simples pra algumas pessoas tem uma... tem algo de significativo e simbólico muito grande pra outras

é uma mulher negra [a mãe] que não teve acesso a muita coisa. Doméstica durante mais de vinte anos, mas que soube criar muito bem, e tem a redenção de ver as suas filhas formadas, uma das estando no exterior, na segunda oportunidade de estar no exterior fazendo agora dupla diplomação (...) Uma outra estudando no particular mas um curso que ela tá se apropriando muito, e é uma mãe solteira, e que tá também mudando as estatísticas, então assim, a gente luta muito principalmente pela nossa família, né? Programas de responsabilidade social como nós, é muito por nossa família que não teve acesso a muita coisa. E apesar de não ser a primeira pessoa da família a entrar na instituição eu me sinto muito responsável como se fosse a primeira da família a entrar na instituição, porque a instituição é pública...

Destaca-se o signo “redenção” que surge na narrativa de Tereza. Para a participante, seu sucesso acadêmico é, sobretudo, uma redenção da mãe, diante de todas as dificuldades

enfrentadas para cuidar das filhas. Tereza sente que, ao alcançar patamares considerados mais elevados socialmente do que os que existiam até então em sua família, ela está redimindo a mãe, no sentido desta última ser recompensada por todo o esforço que empreendeu para que as filhas fossem mais longe do que ela mesma foi. Vê-se aqui uma posição do Eu que nasce a partir da responsividade que Tereza assume diante das figuras parentais. Não só neste trecho, mas também em outros momentos da narrativa de Tereza, é possível vislumbrar que ela resiste a diversas dificuldades na trajetória universitária tendo como referência vozes parentais. Especificamente no trecho acima, Tereza assume uma posição Eu-redentora que funciona para ela como uma posição de Eu promotora, uma vez que serve como guia na “via crucis” de sua jornada universitária. Estas vozes parentais podem ser consideradas recursos sociais, isto é, pessoas que a auxiliaram a enfrentar dificuldades existentes em sua trajetória.

Outro recurso social acessado por Tereza foi sua relação com uma professora que, justamente por ser uma mulher negra acima do peso, contrariando as estatísticas dos docentes do curso de Nutrição, foi muito marcante para ela. Afirmou que muita gente dava descrédito a esta professora por ser uma “nutricionista gorda”, mas que, de fato, ela era muito competente no que fazia. Sentiu-se acolhida pela docente e relata que foi significativo para ela ter uma professora negra:

porque eu conseguia me ver nela, sabe quando a gente olha pra um professor e a gente consegue se enxergar? E eu já tava começando a ter esse interesse pela docência aí eu digo, “Poxa, é possível.”, vendo ela eu dizia que era possível, então ela me marcou muito, muito mesmo.

Tereza complementa afirmando que esta professora a apresentou outros caminhos, inclusive na pesquisa, ajudando-a a esclarecer ideias. Recorria a ela sempre que lia algo que a interessava e conheceu sua futura orientadora de TCC a partir do intermédio desta professora.

Atualmente, Tereza está estudando sobre Educação Alimentar e Nutricional no contexto de mulheres negras da periferia de Salvador. Sofreu muito com a morte da docente mencionada.

Na interação com essa docente, Tereza constrói a possibilidade de se tornar uma professora, conseguindo projetar-se no futuro. Existiu uma relação de confiança entre ambas que suscitou respostas como posições no Self de Tereza. Foi um espelhamento a partir de uma relação geradora de posição promotora: eu-professora-no-futuro. Com isto, um campo “como se” abre-se para Tereza, onde a possibilidade de ser professora emerge na configuração do seu Self. Tereza evidencia que a representatividade no corpo docente pode ser fundamental para o desenvolvimento dos estudantes negros durante seus cursos de graduação, uma vez que podem se reconhecer como futuros profissionais, por verem outras pessoas que conseguiram êxito, apesar do racismo existente. Especificamente no caso dela, a representatividade teve uma função em sua dinâmica autodialógica, levando a desenvolvimentos de posições promotoras.

Outro contexto significativo na narrativa de Tereza é aquele relacionado aos amigos e relações interpessoais de forma geral, que também se configuraram como recursos sociais. Tereza se considera uma pessoa bastante sociável, tendo feito muitos amigos durante seu percurso acadêmico. Gosta de estar no espaço da universidade, conversando sobre questões de caráter social ou desempenhando alguma atividade. Se sente pertencente e confortável no ambiente da universidade em que estuda, devido as relações de amizade que construiu com outros semelhantes. Especificamente, participa de um coletivo de estudantes negros e, desde que ingressou nele, sua postura sobre as relações raciais se transformou, se tornando capaz de compreender problemas de caráter social, atravessados pelas questões raciais. Contou que antes não percebia esses elementos, mas, com o ingresso no coletivo mencionado, “tudo se tornou mais nítido”. Tereza desenvolveu uma posição Eu-estudante-racializada a partir, principalmente, do contato com coletivo de estudantes negros e das discussões intelectuais ocorridas neste. O grupo social, deste modo, promoveu a emergência no Self de uma posição

que se tornou fundamental para ela, direcionando-a para uma racialização do Self e para a construção de uma nova experiência identitátia racial.

Apesar disso, Tereza ressente-se por ter confiado em algumas pessoas. Sentiu-se frustrada com alguns colegas que considera individualistas, sendo difícil para ela se relacionar ou saber como falar com eles. Exemplificou com uma situação vivida na qual um colega branco enviou para ela uma imagem de um policial negro apontando uma arma com o dizer: “Policiais

não odeiam negros. Se o bandido é negro, quer que eu faça o quê? Piche ele de branco?”. Ao

receber essa imagem, Tereza contou que ficou em estado de choque e que se sentiu traída pelo colega, passando a entender que “branco quando... não faz besteira no início, faz no final, em

algum momento vai fazer alguma besteira”. Tereza decidiu, então, rebater ao que considerou

um ataque racista e, para isso, publicizou um print da mensagem enviada, buscando constrangê- lo. Publicou o ocorrido no Facebook e outros colegas começaram a ficar incomodados com o estudante em questão: “foi um revertério nessa instituição, eu quase coloquei o meu

departamento abaixo”.

Alguns professores começaram a afirmar que ela estava se vitimizando, porém, ela encontrou apoio de outros e, em especial, dos seus amigos do coletivo negro, que a auxiliaram na construção de uma discussão que problematizasse o lugar do negro na sociedade brasileira. O departamento começou a discutir sobre militarismo e como ele atinge a vida de pessoas negras. Professores simpáticos à causa estavam preocupados que um estudante de Nutrição tenha adotado tal postura considerada racista. O estudante em questão acabou desistindo do curso:

(...) a Universidade não pode ser espaço pra opressão, pra racismo, e pra pessoas racistas, então eu fiquei bem feliz com a desistência dele. E que isso já aponta pra uma reação, é... do sujeito negro entender que ele pode falar sobre isso, que ele pode denunciar sobre

isso, que ele pode constranger, eu estou falando do constrangimento pedagógico, então não só constranger pra gerar uma discussão e isso... é... criar outros vários problemas, mas constranger pra a pessoa entender que o que ela fez tá errado, sabe? Então o constrangimento, principalmente quando ele é divulgado em redes que as pessoas acessam, é problemático de um lado, mas é pedagógico de outro, então eu imagino, eu espero, pelo menos, que ele não reproduza aquilo mais em nenhum outro lugar. Eu espero que os professores que comungaram com o que ele fez não reproduzam mais aquilo em outro lugar. Então essa... (...) foi uma das pessoas que eu queria não ter conhecido...Foi essa a realidade. Botei ele pra fora da Universidade. Adoro.

Dessa experiência, Tereza conta que se tornou mais desconfiada com as pessoas (especialmente, brancas), pois, o considerava seu amigo até que ele lhe enviou a mencionada mensagem. Afirmou que passou a ficar mais atenta a partir disto, percebendo que havia outras pessoas que pensavam como ele, mas não revelavam.

Deste modo, as relações de amizade que compartilhavam lugares sociais comuns aos de Tereza se constituíram como recurso social para ela, contribuindo não só com o seu permanecer na universidade, mas também com a sua descoberta e reconhecimento de uma experiência identitária racial fortalecida. Experiências negativas vivenciadas com colegas brancos foram interpretadas por ela à luz desta nova perspectiva racializada e decolonial, tendo o apoio dos amigos do coletivo negro para isso. Este acontecimento, assim, também está relacionado com a emergência da posição Eu-estudante-racializada, uma vez que é a partir desta perspectiva que Tereza percebe como racismo a fala do colega e lida com isto.

Outro fator apontado por Tereza que a auxiliou a superar essas dificuldades são as políticas sociais:

é uma Tereza fruto de políticas sociais, como eu disse, então desde lá, Bolsa Escola, época Vale Gás, tudo aquilo minha mãe fez parte. Depois se integrou no Bolsa Família e ela fez parte, entrei no Menor Aprendiz, fiz parte, sou estudante cotista, fiz parte, Residência Estudantil, fiz parte. E continuo, né, sendo fruto dessas políticas, então, eu sou um caso que não entrou nas estatísticas da gravidez na adolescência, não sou uma estatística que entrou nos óbitos, né, por causas externas como a violência, eu sou o fruto das estatísticas que categorizam as... as mulheres negras como uma capacidade intelectual de produzir muita coisa, e aí essa Tereza de hoje é fruto de muita experiência, é... de muita luta, de resistência, que entendeu a necessidade da organização como um limiar importante pra crescer na vida. E aí a Tereza de hoje também tem muito medo de como é es... como serão a vida de outras Terezas, de outras mulheres negras sem as políticas sociais...(...) é um momento político delicado onde as vantagens não tão com pessoas da mesma condição que eu, então eu tenho muito medo de que outras pessoas não acessem o que eu acessei porque não tiveram a oportunidade de estar aqui.

Especificamente sobre a residência universitária, afirmou que esta foi importante, pois propiciou que ela não precisasse trabalhar para se manter no curso. Considera que a universidade exige dedicação em tempo integral, o que torna trabalhar uma impossibilidade, além dos gastos que teria com deslocamento se tivesse outro vínculo. As dificuldades financeiras foram mencionadas por ela como um elemento de difícil superação para sua

permanência. Para lidar com isso, buscou bolsas de Iniciação Científica e de Extensão o que ajudou.

Deste modo, as políticas sociais constituíram recursos simbólicos para Tereza, tendo demonstrado em sua trajetória, a importância e necessidade destas se o objetivo das instituições universitárias e da Política Nacional de Educação for realmente a inclusão social.