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CAPÍTULO 4: O TRABALHO DOCENTE NA PRISÃO: FORMAÇÃO OU ADAPTAÇÃO?

4.5. Concepções sobre a educação e sobre o papel da escola na prisão

Percebe-se nas falas dos professores uma ambição por uma transformação do mundo social, mas sem um questionamento sobre os mecanismos e condicionamentos que os movem (BOURDIEU, 2001b). Consideram a escola como a possibilidade e a alternativa para a mudança de vida dos detentos após o cumprimento de sua pena, aspecto presente no discurso educacional, que entende a docência como uma nobre missão (PEREIRA, 2003; PENNA 2011). Como já apontado anteriormente, na prisão, esse aspecto missionário da docência se vê ressaltado, apresentando características específicas, como a ideia de “recuperação do criminoso”.

Para Tardif e Lessard (2005), essa visão normativa e moralizante do trabalho docente liga-se às raízes históricas do ethos religioso da profissão de ensinar. Nesta investigação, essa obrigação moral do professor relaciona-se a uma ideia de missão de ensinar. Pereira (2003) compreende que a ideia de ethos missionário da profissão tem relação com a busca pelo reconhecimento, ou seja, ela opera por meio de um mecanismo de recompensa simbólica, por meio de um efeito de compensação das ausências matérias e valorativas da profissão. Esse ethos missionário se manifestou nas entrevistas:

O professor é tudo, né? O professor é o transmissor, o professor muda tudo! (Maria). O professor é o responsável pela formação da sociedade. O professor é responsável pelo cidadão. Eu acho que você consegue moldar personalidades, você consegue mostrar certos caminhos, fazer com que o cara seja, que ele tenha reflexão, que ele saiba falar, que ele saiba se posicionar perante a sociedade (Leila).

Pereira e Grimm (2013), ao investigarem os modos pelos quais certos discursos enfatizam o potencial transformador da educação, identificam que o discurso da transformação social está enraizado no campo educacional, não havendo reflexões sobre a produção de tais discursos, que se ligam a construções sociais e históricas. Caracterizam esse discurso como mudancista e o identificam no campo educacional em diferentes períodos históricos, nas palavras dos autores:

[...] os discursos sobre a transformação social por meio da educação e da escola configuram um tipo de produção simbólica que tem sua origem relacionada a um “estilo de pensamento pedagógico” dos intelectuais da educação, estilo este [...], tendente a enfatizar o potencial transformador da educação em relação à estrutura social (PEREIRA; GRIMM, 2013, p. 808).

Os professores aderem a esse discurso, contudo, sem um questionamento sobre os mecanismos de exclusão social e escolar existentes ao longo da trajetória de vida dos presos. Isso se dá até mesmo em decorrência de fragilidades na formação dos professores:

Então, hoje, o governo abriu esse leque da escola dentro dos presídios, justamente para ele sair e ter um leque aberto para o mundo do trabalho... Então a gente faz esse trabalho, da nossa disciplina voltada para o mundo do trabalho, voltado para o dia a dia mesmo deles (Miguel).

De o cara sair, e mesmo que ele não tenha uma família, ele tenha um estudo para ele procurar um trabalho, para ele ingressar, voltar a ingressar no mundo do trabalho... Ele estando no mundo do trabalho, ele pode pegar uma pensão, ir morando, ir se virando, né? A educação prisional, ela faz isso... ela abre essa porta... Para quando o cara sair, ele ter essa oportunidade, né?! De ter um trabalho, de ter uma vida normal, né (Miguel).

É resgatar, né? Aquele indivíduo pra sociedade. Resgatar, ensinar, transmitir conhecimento... A escola, pra sociedade, é transformadora. Sempre falo: a escola pode mudar tudo (Maria).

Então assim, o que eu vejo de recompensador em ser professora é isso de você estar contribuindo para o conhecimento das pessoas. E lá dentro, como eu posso dizer... Eu sei que a gente não vai recuperar ninguém – eu não tenho esse poder – a pessoa que ela tem que confiar nela mesma e tentar se regenerar, mas assim, eu acredito que um pouquinho em cada dia, você vai plantando essa sementinha com palavras positivas, com palavras boas, de incentivo... Eu acredito que a gente vai colher uma coisa melhor no futuro, então também assim, por esse lado, de você estar trabalhando com o ser humano... Que nem eu falei, eles cometeram alguma coisa que eu não sei e também não me interessa saber, mas que eu acredito assim que muitos deles com o passar desse tempo que eles estão na escola, eles devem estar assim pensando no que eles fizeram e tentar se recuperar e não errar mais, para não voltar para lá (Leila) (grifos nossos).

Além do discurso missionário, a ideologia meritocrática está presente, como na escola fora da prisão, e os professores se apegam a esse discurso para explicar o sentido de sua atuação como docentes. Na escola fora da prisão o discurso do mérito e do esforço também estão presentes. Segundo Chalort (2013), a prática dos professores está pautada em discurso ideológico que oculta a estrutura social de desigualdades econômicas, sociais, políticas e culturais. Na prisão, a ideia da meritocracia aparece ainda mais forte, culpando e responsabilizando os presos pelo seu fracasso.

Pérez Gómez (2000) evidencia que a escola tenciona um processo contraditório ao promover a socialização das próximas gerações, ou seja, a escola como qualquer instituição social é marcada pelas contradições e interesses em uma sociedade desigual: “a escola legitima a ordem existente e se converte em válvula de escape das contradições e desajustes sociais” (PÉREZ GÓMEZ, 2000, p. 16).

Durante a realização das entrevistas notou-se que os sujeitos de pesquisa buscaram dar um sentido para lecionar na prisão, operando uma criação no sentido da narrativa (BOURDIEU, 2011). Mas nas entrevistas, quando interrogados sobre o motivo relacionado à escolha por lecionar na prisão, a escolha correspondeu às condições objetivas de vida dos sujeitos:

Olha na verdade, foi uma opção por falta mesmo de mercado. Não teve assim, uma curiosidade... Não teve assim um motivo em especial, né?! Foi mais por trabalho mesmo... A opção de trabalho... Eu já tinha feito um trabalho dentro do presídio, por parte de religião. [...] Então, como eu já tinha entrado dentro do presídio e eu sabia como era o ambiente lá, desses trabalhos que foi feito da igreja católica do dia das mães, dia dos pais, dia das crianças e eu não via assim nada... Nada assim de horror, que nem o pessoal pensa do presídio. Aí, eu acabei aceitando essa condição de trabalho (Miguel).

Eu estava sem lecionar no Estado, porque eu me afastei em 2013, eu até achei que eu era categoria F, mas quando puxaram no sistema, fiquei sabendo que eu me afastei

do Estado bem no ano da mudança... Bobiou, dançou, né?! Eu ainda tentei recorrer, quando eu voltei em 2013, mas não teve como, fiquei como O mesmo. [...] Foi onde teve a inscrição para o presídio, parece que foi tudo coisa de Deus, aí teve a inscrição para o presídio, eu fiz e peguei aula (Maria).

Foi porque eu estava desempregado. Aí eu abracei porque trabalhar você trabalha, independentemente de qualquer profissão. [...] O crescimento profissional foi um dos casos que me fez trabalhar lá (Rubens) (grifos nossos).

Então, na verdade, eu não tinha a intenção de lecionar na prisão. Não tinha nem pensado nessa hipótese, o que aconteceu, no começo do ano passado, quando eu fui para a atribuição as aulas que tinham até chegar na minha vez eram aulas assim: substituição, licença saúde, 15 dias, 20 dias. [...] Na verdade, eu queria as outras aulas, mas não tinha mais, mas deu tudo certo, pelo menos eu peguei uma sala (Leila).

O processo de atribuição e a escolha das aulas é tão violento que os professores sabem perfeitamente que ficaram com o que sobrou para eles. Mas, ao atuarem na prisão, se esforçam para atribuir sentido ao que fazem, acionando o ethos missionário e aderindo à ideologia do mérito, presentes no campo educacional.

Os agentes se movem no espaço social em decorrência de suas posições, e da distribuição dos capitais que estão em jogo no campo. No caso desta investigação, os professores foram lecionar na prisão por estarem submetidos a uma posição de desvantagem no campo educacional, são professores contratados e sem pontuação para lecionar na escola da rua. Contudo, valorizam a docência na prisão e atribuem valor ao seu trabalho.