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CAPÍTULO 2: EDUCAÇÃO ESCOLAR NAS PRISÕES NO ESTADO DE SÃO PAULO

2.1. Escola da prisão: reabilitação X formação

A prisão tem por função a contenção e a punição dos sujeitos. A lógica no cárcere prevê procedimentos para segurança, punição e controle totalitário dos detentos, tendo por objetivo a sua reabilitação para o retorno à vida em sociedade, embora, como se viu, acabe por adaptá-lo à vida no cárcere.

Já a escola tem por suposto a formação, que inclui o desenvolvimento de mediação crítica com o conhecimento, oferecendo ao aluno a possibilidade de entender e utilizar o conhecimento social e histórico como ferramenta de análise e compreensão dos mecanismos de poder e das lógicas dominantes presentes na sociedade (PÉREZ GÓMEZ, 2000).

Sobre essa contradição, importam as considerações realizadas por Penna (2003) sobre as ambiguidades existentes entre a escola e a prisão:

[...] tanto a escola quanto a prisão têm por suposto a formação do homem para o convívio social. Em sua função declarada, a escola deve formar o homem como indivíduo moral, ético, bem como prepará-lo para a vida em sociedade, socializando-o nsocializando-os valsocializando-ores, csocializando-onhecimentsocializando-os e prsocializando-ocedimentsocializando-os csocializando-onsideradsocializando-os culturalmente relevantes; e o presídio deve deter os transgressores das normas e regras socialmente instituídas, protegendo a sociedade da violência e reformando esses homens para que possam voltar ao convívio social (PENNA, 2003, p. 42).

A partir do exposto, pode-se afirmar que, ao se analisar a escola no interior das prisões, depara-se com duas lógicas antagônicas: por um lado a prisão, um ambiente hostil e de opressão, e por outro, um esforço para a formação dos agentes. Nesta pesquisa, é importante investigar as tensões e as contradições que emergem no microcampo da pesquisa, qual seja, da escola prisional, que envolve lógicas e finalidades distintas. Para tanto, torna-se importante compreender a função que a escola tem desempenhado no interior do cárcere.

Portugues (2001) dedica-se a pesquisar a educação nas prisões no estado de São Paulo, investigando as possibilidades e contradições da constituição da educação sob o aspecto da operação penitenciária. Ele destaca ser necessário compreender que existem programas de reabilitação penal, mas que estão totalmente inseridos na dinâmica do cárcere, em que a contenção e a disciplina transfiguram-se em aspectos centrais na prisão. Para o autor, ao se pensar sobre programa de educação de adultos presos deve-se questionar tanto a sua contradição intrínseca, como as dificuldades ligadas aos fatores das lógicas da reabilitação penal e do ambiente carcerário. Certamente a educação vai ser perpassada pela lógica penitenciária:

[...] considerar as características próprias desta realidade não significa, em absoluto, imiscuir-se o programa de educação às suas prerrogativas e procedimentos, sob o risco de lhe atribuir uma validade intrínseca a este sistema social, tão somente; uma educação desenvolvida não nas prisões, mas para as prisões (PORTUGUES, 2001, p. 145).

Nesse sentido, destaca-se a pesquisa realizada por Penna (2003), cujo objetivo principal foi investigar o significado da ação docente desenvolvida por sujeitos que se encontravam na condição de detentos. Em seu estudo, a autora verifica que as relações estabelecidas na escola da prisão correspondem ao ambiente em que estão inseridas, ou seja, carregam as marcas do cárcere: “no ambiente prisional a opressão ocorre às claras, sem a necessidade de ser escamoteada” (PENNA, 2003, p. 37). Na pesquisa, evidenciou-se que os monitores presos se encontravam enveredados nas relações de poder da prisão; mais ainda, a docência foi apontada como uma estratégia de sobrevivência dentro da instituição, evidenciando a submissão da educação à lógica carcerária.

Baseando-se na teoria de Foucault, Resende (2002) investiga os aspectos educativos envolvidos nas práticas e relações prisionais, identificando facetas do poder disciplinar agindo em todos os mecanismos e controlando permanentemente as ações dos indivíduos. As técnicas disciplinares são demarcadas pelas relações de poder e incidem sobre o comportamento dos presos e sobre as relações ali estabelecidas. Diante disso, o autor compreende que os processos

educativos ocorridos na prisão ligam-se à fabricação dos indivíduos por meio de técnicas disciplinares, de modo que as histórias de vida dos detentos revelam o que ele denomina de assujeitamento.

Ao refletir sobre o processo educativo no ambiente prisional, há que se considerar as especificidades e os limites estabelecidos pela instituição total (GOFFMAN, 2015), porém deve-se atentar também para as possibilidades existentes na escola da prisão. Para Ireland (2011), a educação em prisões, como em qualquer ambiente educativo, deve promover os interesses e as necessidades dos seus alunos. O autor considera fundamental englobar tal problemática em uma questão mais ampla, associada ao entendimento de que a educação nas prisões se insere na modalidade da EJA, defendendo a perspectiva da aprendizagem ao longo da vida.

Verificam-se nos estudos de Penna (2003), Graciano e Schilling (2008) e Onofre (2011) facetas da contribuição da educação nas prisões para o enfrentamento da lógica do encarceramento. Entende-se a educação como um processo importante no desenvolvimento humano, seja como um espaço de aprendizagem da leitura ou escrita, de melhoria das condições de vida dos detentos, ou como possibilidade de interação social, embora marcada pelo ambiente carcerário.

Onofre (2007), em seu estudo, ao discutir até que ponto a educação escolar é um fator de contribuição para reabilitação do preso, revela a contradição quanto à educação escolar nas prisões e busca discutir os fatores contributivos que as atividades educativas propiciam ao sujeito privado de liberdade. Na percepção dos alunos, a escola é vista como algo positivo, um espaço onde as tensões da instituição são menores. Para Lourenço (2007, p. 65), “a escola é vista pelos prisioneiros como um local diferenciado dos outros locais de circulação no interior dos presídios, e muitos se esforçam por encontrar nela novas possibilidades de existência”.

Graciano e Schilling (2008) apontam a escola – na perspectiva da resistência e da autonomia – como alternativa de independência no que se refere à escrita de cartas para as famílias. Nesse sentido, Onofre (2011) discorre sobre a importante função que a escola tem na reinserção social, podendo significar um espaço de produção de conhecimento, estabelecimento de vínculos e relações pessoais.

Bueno e Penna (2016), ao analisarem as relações entre as condições de vida nas prisões e a prática docente de monitores presos no estado de São Paulo, ressaltam a escola como um ambiente de possibilidades, porém permeado pela dificuldade das relações de poder estabelecidas no cárcere.

Penna (2003) também revela como a escola da prisão configura-se como um valor e possibilidade de resistência no cárcere. Em seu estudo sobre a docência exercida por monitores presos, o espaço escolar destaca-se como um ambiente diferenciado na instituição prisional,

[...] o que se verifica é que as relações de poder estabelecidas na prisão se apresentam na escola, que, no entanto, em função de especificidades intrínsecas ao que historicamente se constitui o fazer escolar e no que se espera ver concretizado por meio dessa atividade, acaba por se configurar em um espaço diferenciado na prisão (PENNA, 2003, p. 115).

Os estudos sobre a escola da prisão evidenciam as ambiguidades entre a formação e a opressão que constituem a escola nesse contexto. Certamente as ações realizadas na escola estão inseridas na lógica disciplinar carcerária, o que acarreta consequências para o trabalho do professor. Além disso, destacam-se pesquisas que evidenciam o valor atribuído pelos detentos à instituição escolar na prisão, e ainda investigações que apontam questões relativas à especificidade da escola no ambiente prisional, que necessitam ser consideradas.

Sobre tais especificidades, Julião (2007), ao estudar as políticas públicas educacionais ofertadas nas prisões brasileiras, revela a singularidade da ação educativa para jovens e adultos privados de liberdade. Ele defende ser necessário o desenvolvimento de propostas educacionais específicas, que envolvam questões de rotatividade dos presos e formação adequada para os professores, compreendendo as particularidades da EJA nas prisões. Considera ainda ser fundamental “uma proposta política e pedagógica que leve em consideração as particularidades, especificidades e características dos sujeitos apenados” (JULIÃO, 2016, p. 33).

Nesse sentido, Silva e Moreira (2011) apontam a necessidade da construção coletiva de um Projeto Político Pedagógico que possibilite a ressignificação da vida no cárcere, atribuindo novos sentidos para as relações estabelecidas na prisão.

Considerando aspectos relacionados às peculiaridades da educação escolar nas prisões – como o fato de ela estar condicionada a dispositivos disciplinares próprios e a condições estabelecidas para a ação educativa, permeadas pelas formas de organização de tempos e espaços dessa instituição –, estudos indicam a necessidade de uma formação para os professores que contemplem esses pontos bem como o uso de propostas pedagógicas que abranjam tais questões (HORA E GOMES, 2007). As especificidades relacionadas à educação escolar no contexto prisional afetam o trabalho do professor.

Frente às marcas e singularidades da escola no sistema prisional, importa discutir como se dá o trabalho docente nesse ambiente. Tal é foco desta pesquisa. O estudo de Penna (2003) ajuda a refletir sobre o exercício da docência na escola da prisão. Realizado com monitores

presos que, assim como seus alunos, encontram-se privados de liberdade, ele evidenciou traços de valores do magistério assumidos pelos monitores, mesmo sem terem passado por formação inicial para atuar como professores, revelando a permanência de disposições que dizem respeito ao campo educacional:

[...] a profissão é exercida por meio da adesão a um conjunto de valores, que tem como pano de fundo a crença na escola e no papel por ela desempenhado na sociedade, pressupondo a assunção de um determinado modo de agir, relacionado ao seu desempenho, e que diz respeito ao que é ser professor, como esse profissional deve se portar e sobre o papel social da escola que lhes cabe viabilizar na sala de aula. O exercício da profissão exige uma determinada postura, que para os monitores apresenta-se como fundamental para o exercício da docência (PENNA, 2003, p. 81).

No entanto, a necessidade de formação para o trabalho docente faz-se presente. Em seu estudo, Dias (2010) investigou a contribuição pedagógica para a formação dos detentos por meio da realização de rodas de leitura que, de seu ponto de vista, auxiliam a reinserção social dos sujeitos privados de liberdade. A autora aponta que a falta de formação específica para os professores ministrarem aulas na prisão configura-se como uma dificuldade para promoção da autonomia de seus alunos e um obstáculo para realizar propostas pedagógicas diferentes, que tenham ligação com a realidade por eles vivenciada.

Portugues (2001) destaca que “uma política pública para educação nas prisões demanda um processo contínuo de formação e capacitação dos educadores, a fim de proporcionar condições que permitam a consolidação de uma educação autêntica” (PORTUGUES, 2001, p. 201).

Ao não se considerar a especificidade da educação nas prisões no que se refere à formação do professor e ao currículo ensinado, torna-se ainda mais difícil o enfrentamento da lógica disciplinar penitenciária. Alvisi (2015), ao buscar compreender a configuração do currículo de uma escola prisional, evidencia que, mesmo com avanços no campo normativo, na prática a educação dentro das prisões ainda não se consolidou. A pesquisa demostra que a escola investigada não proporciona um modelo de ensino que agregue fator de acesso aos bens culturais, e sim reforça a ideia da escola a partir de um ideal utilitarista, apenas como certificação e remição de pena pelo estudo. Segundo a pesquisa, para que

[...] a educação prisional não seja apenas a responsabilidade burocrática da Secretaria Estadual de Educação [...]. O que nos dizem é que a reprodução de um modelo educativo da “rua” não atende seus anseios na possibilidade de um papel para a escola dentro do cárcere que promova situações com sentido a esses jovens e adultos que, por diferentes motivos, interromperam suas trajetórias escolares muito cedo (ALVISI, 2015, p. 178).

Tais aspectos trazem consequências para as práticas pedagógicas realizadas pelos professores. Em relação à discussão acerca do trabalho docente e as práticas pedagógicas na prisão, a revisão bibliográfica feita por Penna (2013) informa sobre a importância de estudos empíricos que envolvam a temática e elucida a necessidade de formação dos docentes, considerando questões da EJA conjuntamente às especificidades da prisão.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para educação nas prisões (BRASIL, 2010) chamam atenção para a necessidade de processos formativos para os educadores, atentando-se para a necessidade de atentando-se compreender tal educação como modalidade da EJA.

Sobre as especificidades da EJA, Ribeiro (1999), ao discutir a formação de professores, destaca a necessidade da constituição da educação de jovens e adultos como campo pedagógico que se integre a uma problemática mais ampla, a partir da construção da identidade dessa modalidade educativa e da formação específica para os docentes.

Para Ribeiro (1999), na EJA é necessário abranger, na formação inicial e continuada dos professores, a dimensão política dessa ação, articulando uma formação integral e plena, em que se dirija a ação pedagógica para o tempo presente, compreendendo o contexto social em que os jovens e os adultos estão inseridos e em que se signifique o sentido da educação escolar, fortalecendo a criticidade do processo educativo. Isso constitui um elemento essencial para se refletir sobre a formação dos professores que atuam nas escolas das prisões. Os professores que atuam nas prisões no estado de São Paulo não passam por uma formação específica, como se verá adiante.

Diante de tal complexidade presente na ação educativa escolar nas prisões, entende-se que ao entende-se debater o trabalho do professor, entende-seus limites e possibilidades, são instigantes as reflexões de Charlot (2008), para quem o professor é um trabalhador da contradição. O autor apresenta essa noção baseando-se nos paradoxos ligados às questões econômicas, sociais e culturais enfrentadas pelo professor na sociedade contemporânea. Para o autor, tendo em vista que em uma sociedade cujo projeto refere-se ao ‘desenvolvimento’, passando por rápidas e profundas transformações nas diferentes esferas sociais, o professor não tem uma definição clara de qual é a sua função social.

Charlot (2008, p. 18) afirma que é possível “superar a dificuldade analisando as contradições que o professor contemporâneo deve enfrentar. Elas decorrem do choque entre as práticas do professor atual e as injunções dirigidas ao futuro professor ideal”. Além disso, o professor sofre com os efeitos de uma contradição radical do capitalismo contemporâneo.

Por um lado, a sociedade exige trabalhadores cada vez mais reflexivos, criativos, responsáveis, autônomos, informados e críticos. Mas por outro, ela gera uma concorrência generalizada.

Diante disso, a formação dos alunos é cada vez mais pautada na nota e não no saber. Charlot (2008, p. 21) revela que “de forma mais ampla, o professor trabalha emaranhado em tensões e contradições arraigadas nas contradições econômicas, sociais e culturais da sociedade contemporânea”.

Se na escola ‘fora das grades’ o professor já enfrenta as contradições do campo educacional, na escola ‘dentro das grades’ elas se agravam. Se na escola o professor está diante das contradições do campo educacional - além das questões sociais, culturais e econômicas -, dentro da prisão isso é agravado por um ambiente extremamente repressor e hostil. As contradições são afloradas e potencializadas na escola da prisão, inseridas na dinâmica carcerária, na qual prevalecem as questões de segurança e vigilância.

O professor que atua em escolas nas prisões está submetido a essa ideia da contradição e às lógicas de funcionamento desse microcampo, que consiste na educação escolar nos estabelecimentos penais. O conceito formulado por Charlot (2008), do professor como um trabalhador da contradição, é fundamental para o entendimento das contradições que o professor contemporâneo deve enfrentar. E no caso desta pesquisa, as contradições do professor que leciona nas unidades prisionais.