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CAPÍTULO 1: O TRABALHO DO PROFESSOR NA PRISÃO: CONTENÇÃO X FORMAÇÃO

1.2. Trabalho docente: valores do magistério e precarização da docência

1.2.2. Valores práticos do magistério

O conjunto de normas e valores estabelecido no campo educacional é certamente marcado pelas ideias de missão religiosa e vocação. Tardif e Lessard (2005) consideram que as visões normativas e moralizantes da docência estão ligadas às suas raízes históricas no ethos religioso da profissão de ensinar, em que sua orientação tinha por base uma ética do dever com caráter fortemente religioso. É importante evidenciar que a história da docência se liga ao processo das relações produzidas pelos professores no espaço social, que vai tecendo e constituindo o campo. Nesse movimento, interessa entender o que caracteriza o trabalho de professor.

Contreras (2002), ao discutir a autonomia de professores, discorre sobre os significados e tradições que constituem a profissionalização dos docentes e sobre as dimensões específicas de seu trabalho.

O campo discursivo que legitimou a posse do conhecimento específico no âmbito educacional tem relação com o controle sobre a atuação dos professores e a institucionalização da formação. Esse fato provocou uma posição de subordinação dos professores aos discursos presentes no campo. Para Contreras (2002, p. 63),

[...] a formação docente não surge como um processo e controle interno estabelecido pelo próprio grupo, mas como um controle estabelecido pelo Estado. Como consequência desse processo, surgiu e cresceu, como ocupação específica, a relativa à formulação da educação e à formação dos professores [...] O resultado é que os professores ocupam uma posição subordinada na comunidade discursiva da educação (CONTRERAS, 2002, p. 63).

O autor aponta três dimensões da profissionalidade, que são importantes por exercerem efeito na prática educativa e constituírem características da ação e da visão de mundo dos professores. São elas: a obrigação moral, o compromisso com a comunidade e a competência profissional.

A obrigação moral do professor está atrelada ao contexto do ensino com o pressuposto de um compromisso no sentido moral a quem realiza. Além disso, liga-se a uma perspectiva emocional da prática educativa.

Já o compromisso com a comunidade refere-se ao compartilhamento das práticas profissionais - a docência não se constitui em um ato isolado, ela abrange a relação com a comunidade em que o professor vai realizar sua prática profissional. De acordo com Contreras

(2002, p. 79), “a educação não é um problema da vida privada dos professores, mas uma ocupação socialmente encomendada e responsabilizada publicamente”.

Por fim, a competência profissional corresponde a habilidades, princípios e consciência dos sentidos e dos resultados das práticas pedagógicas, não sendo simplesmente um domínio sobre as técnicas e recursos didáticos. Os três aspectos da profissionalidade docente são importantes para compreender como os professores estruturam seus modos de agir e vão constituindo as aprendizagens sobre o que é ser professor.

Roldão (2007) discorre sobre a natureza da função específica do professor, que está ligada principalmente ao conhecimento profissional docente. A história dos professores em sua constituição como grupo profissional desenvolveu-se num processo complexo de profissionalização, que está ligado à institucionalização da escola e à afirmação de um conhecimento profissional específico. Trata-se de uma construção histórico-social marcada por lutas e disputas.

Nas sociedades atuais, a função de ensinar pode ser caracterizada por meio da figura da dupla transitividade e pelo lugar de mediação (ROLDÃO, 2007). O ensino configura-se como a especificidade de fazer aprender alguma coisa a alguém - o que chamamos de currículo -, e o ato de ensinar somente se concretiza nesta segunda transitividade corporizada no destinatário da ação. Isso, por um lado, gera contradições e tensões, e por outro é a centralidade do conhecimento profissional.

Para Roldão (2007), o saber profissional docente deve ser construído no começo da formação inicial, sendo de extrema importância a discussão da ação profissional docente, que se liga permanentemente à questão da formação. Diante disso, o professor deve saber ensinar, a partir de um processo de mediação, com um sólido saber científico e também com um domínio técnico e didático, em que é necessário um processo contínuo e permanente de questionamento intelectual de sua ação e prática. Nesse sentido, é importante questionar a formação recebida para atuar na prisão, o que se fará no capítulo 4.

No caso deste trabalho, importa refletir sobre como os professores que lecionam nas unidades prisionais significam sua ação e de que forma entendem a sua prática pedagógica, tendo em vista o contexto do seu trabalho inserido na lógica das diferenças entre os campos educacional e prisional.

Além de se compreender o trabalho docente e sua constituição histórica, é relevante refletir sobre o discurso educativo, que por certo compõe os valores presentes no magistério. Em seu estudo, Charlot (2013) desenvolve a ideia de que a pedagogia oculta ideologicamente a realidade econômica, social e política que envolve a educação; por consequência, o discurso

pedagógico disfarça as desigualdades sociais dadas pela origem de classe dos alunos, por meio de argumentos ligados a desigualdades naturais e culturais entre os indivíduos. Para o autor, o funcionamento ideológico da pedagogia fundamenta-se em um triplo processo:

[...]- Redução das realidade econômicas, sociais e políticas ligadas à educação a um problema de cultura individual;

- Análise dos fenômenos sociais em termos de aptidões individuais;

- Afirmação de um postulado, implícito ou explícito, mas sempre fundamental, reduzindo o social ao individual (CHARLOT, 2013, p. 89).

O discurso ideológico presente na pedagogia revela atitudes e práticas educativas correspondentes à classe social dominante. A análise de Charlot (2013) permite compreender como a escola está submetida aos interesses econômicos e sociais da classe dominante, desempenhando assim uma função ideológica. Na sociedade capitalista, em que a lógica se liga à dominação e à exploração, “a escola é, portanto, particularmente apropriada para uma educação ideológica da criança, isto é, uma educação que, ao mesmo tempo, dissimula e justifica a educação de classe” (CHARLOT, 2013, p. 280).

Além disso, para Charlot (2013), a escola não é a fonte de alienação social, mas está submetida a ela uma vez que tal alienação deriva das condições de vida social e econômica da estrutura da sociedade. As reflexões desse autor são importantes para se investigar os valores que permeiam as práticas dos professores, posto serem impregnadas pelo discurso ideológico relacionado às práticas educativas escolares. É importante identificar como essas ideias estão presentes na compreensão que os professores que atuam no contexto prisional possuem sobre suas práticas.

Contreras (2002), ao tratar da ideia do professor como profissional reflexivo, também ajuda nessa discussão, porque traz indícios das contradições presentes no discurso educacional. O autor aponta a importância de se compreender o contexto de atuação dos professores, pois os valores que estão em jogo podem representar tanto a emancipação como a dominação,

[...] a dúvida é se os processos reflexivos, por suas próprias qualidades, se dirigem à consciência e realização dos ideais de emancipação, igualdade ou justiça, ou se, da mesma maneira, ao não se definirem em relação ao compromisso com determinados valores, poderiam estar a serviço da justificativa de outras normas e princípios vigentes em nossa sociedade, como a meritocracia, o individualismo, a tecnocracia e o controle social (CONTRERAS, 2002, p. 149).

Não se pode constituir possibilidades de reflexão crítica na prática escolar sem considerar a maneira pela qual os professores compreendem sua função na instituição escolar. Os professores incorporam as práticas da instituição - que possui histórias, rotinas e pretensões já estabelecidas -; ou seja, quando eles se incorporam a uma instituição escolar, eles aprendem a se relacionar com os valores e as práticas que a escola legitima (CONTRERAS, 2002).

Para o autor, por um lado o processo de reflexão crítica pode conceder ao professor uma possibilidade de mudança em sua prática pedagógica, questionando criticamente o seu trabalho e suas concepções de sociedade, escola e ensino. Por outro, cada vez mais são atribuídas novas funções aos professores, aumentando o sentimento de responsabilização e culpabilização, aliado à precarização do trabalho, o que dificilmente irá gerar um processo de reflexão dos valores e práticas presentes na escola. O trabalho docente é permeado pela ambiguidade entre a adaptação e a autonomia.

Portanto, define-se uma relação de contradição entre o espírito crítico e a autonomia do professor e as limitações em sua prática profissional, marcadas pela adaptação em uma sociedade excludente, desigual, com alta concentração de renda e miséria - uma lógica totalmente desumanizadora, fundamentada no individualismo, no lucro e na competição. Tais estruturas de valores contribuem para perpetuar uma concepção de mundo cuja base é uma sociedade mercantil.

Ainda sobre o discurso educacional, Pereira e Andrade (2006) trazem contribuições ao discutirem sobre o tema da formação humana. Destacam que é possível encontrar duas modalidades básicas de pensamento educacional: a ótica da filosofia da consciência (ou do sujeito) e o senso comum erudito. Na primeira modalidade revela-se uma formação humana para a constituição de sujeitos autônomos, livres, criativos e conscientes - uma generalização abstrata da formação humana. Já a segunda modalidade compreende a “formação integral do educando, educação para emancipação, humanização, formação de sujeitos competentes e participativos, educação para autonomia do ser, plenitude educacional e ética” (PEREIRA; ANDRADE, 2006, p. 207).

Para os autores, as duas modalidades apresentam-se como um arbitrário oculto da formação humana, como se fosse possível um postulado de formação idêntica válida a todos os homens, “um ideal comum de homem a ser alcançado” (PEREIRA; ANDRADE, 2006, p. 211). Ao atuarem na escola, os docentes pautam, a partir de valores presentes entre eles, no campo educacional, a formação humana, muitas vezes abstraindo as condições objetivas de seus alunos.

Tais valores por certo se apresentam em suas práticas, por isso faz-se necessário compreender as práticas e valores dos professores. Nesse sentido, é instigante a pesquisa realizada por Penna (2011) com professoras dos anos iniciais. Nela, busca-se compreender a posição social do professor no espaço das relações sociais e as disposições para ações que estruturam suas práticas pedagógicas. A autora identifica que a dimensão principal do trabalho realizado pelas professoras relaciona-se à disciplinarização e à moralização das crianças, o que para elas já estava posto como um valor. Fica evidente a compreensão da função docente, pelos professores, como sendo o cumprimento de uma missão (PENNA, 2012).

Penna (2011) considera o exercício da docência a partir de especificidades que sinalizam certas formas de ser e agir. Nas palavras da autora, “o exercício da docência implica especificidades relacionadas a seu fazer, que contribuem para configurar os agentes que dela se ocupam bem como o que deles se espera socialmente” (PENNA, 2011, p. 34).

Tais discursos educacionais e também o processo de institucionalização do magistério discutido anteriormente sedimentam valores práticos relacionados ao exercício docente. Sobre essa questão, Pereira (2003), em seu estudo, visou compreender os valores e julgamentos dos professores produzidos em duas associações da categoria profissional durante a década de 1980 em São Paulo. Ele verificou como a categoria de professores está submetida a questões ambíguas, tanto em suas dificuldades materiais e simbólicas, como por ser formada por funcionários do Estado. Por um lado, aponta que essa categoria é dominada por um processo de pauperização e baixos salários. E por outro, fazer parte do corpo de funcionários do Estado representa um valor simbólico: “a categoria do magistério oficial parece destinada à ‘miséria de posição’, isto é, à experiência de vivenciar uma posição obscura e inferior de um universo prestigioso e privilegiado” (PEREIRA, 2003, p. 32).

Para Pereira (2003), o magistério se constitui a partir de quatro eixos: o etos missionário da profissão; o ethos do trabalho; a ansiedade por reconhecimento e as propriedades materiais do magistério.

O ethos missionário da profissão corresponde a um conjunto de valores que dão o sentido vocacional da profissão - renúncias, desprendimentos e esforços. Já o ethos do trabalho relaciona-se tanto às disposições do professor como às capacitações especificamente pedagógicas da categoria, ou seja, o habitus do professorado, “um ofício, dotado de técnicas e referências técnicas, e um conjunto de valores, isto é, de crenças” (PEREIRA, 2003, p. 83).

O ethos missionário da profissão e o ethos do trabalho estabelecem a ansiedade por reconhecimento, que se caracteriza por um efeito de compensação das dificuldades materiais e simbólicas pelo professorado. Para Pereira (2003, p. 83), “esse recurso termina, pelas vias de

um efeito de introjeção, por dotar o professorado de um enobrecimento fictício, embora socialmente bem fundado”, o que representa a ambiguidade no magistério, produzindo elementos concomitantes de valorização e desvalorização.

As propriedades materiais do magistério referem-se aos sentimentos de insegurança e desproteção que permeiam a vida dos funcionários públicos de baixos cargos - nesse caso, os professores.

O trabalho docente define-se no âmbito das atividades tipicamente escolares, tratando de estabelecer os saberes pedagógicos produzidos pelos sistemas de ensino públicos e obrigatórios. A ideia do que é ser professor e dos conhecimentos específicos da função vai constituindo e delineado o campo de atuação dos professores, sua maneira de ser, agir e realizar suas práticas.

Nesta pesquisa, importa considerar como os professores que lecionam na prisão estruturam e agem no ambiente penitenciário a partir de valores presentes no campo educacional, mas em confluência com os valores do campo prisional. O trabalho docente encontra-se na tensão entre a formação e a alienação dos professores. Assim, o discurso que permeia o campo educacional diz respeito à formação crítica do sujeito, contudo, a ação e a prática ligam-se a uma sociedade contraditória.

Para debater essa contradição, são instigantes as formulações estabelecidas por Apple e Teitelbaun (1991) ao relacionarem as transformações ocorridas no controle do ensino e do currículo vinculadas a questões mais profundas de mudanças no controle da cultura, da política e da economia. Para os autores, a escola é afetada por crises que permeiam a sociedade de forma mais ampla:

[...] o controle do ensino está-se movendo tanto para dentro quanto para fora. O controle externo do conteúdo e dos processos de sala de aula movem-se cada vez mais diretamente para dentro do edifício escolar, atravessa os corredores e chega às salas de aula. Neste processo, o controle sobre o ensino e o currículo que o professorado têm ganho tão lenta e duramente move-se para fora. É retirado daquelas pessoas que estão dentro das salas de aula e atribuídos uma vez mais a corpos legislativos e administrativos, corpos cada vez mais dispostos a orientar a escola de acordo com as necessidades gerencias e industriais (APPLE; TEITELBAUN, 1991, p. 70).

Para Apple e King (1989), todo sistema educativo necessita ser caracterizado não apenas na questão relativa ao ensino, mas em termos políticos e econômicos, compreendendo a questão ideológica que perpassa a instituição escolar. Soma-se a tal fato a existência de uma distribuição desigual de capital tanto econômico como cultural na sociedade. As escolas são instituições que

representam as tradições coletivas e as intenções humanas, ou seja, são produtos da ideologia social e econômica, e o professor está submetido a essas contradições.

Com relação a uma discussão recente sobre o trabalho do professor brasileiro, Lelis (2012) aponta que os principais problemas enfrentados pelo magistério se referem: à intensificação e complexificação do trabalho docente; à diversificação das funções do professor e ao crescente esgotamento profissional; e às dificuldades de atualização profissional. Além disso, os diversos papéis que a escola tem assumido submetem o professor a exigências que estão além de sua formação e podem acarretar um sentimento de perda de identidade profissional (LELIS, 2012). Por isso, é relevante atentar para as condições objetivas de trabalho na escola prisional, fator que contribui para a forma como o professor compreende e executa seu trabalho.

Ao se investigar aspectos do trabalho docente em escolas situadas nas prisões na rede estadual de São Paulo e ao buscar compreender os valores e disposições relacionadas à prática do professor na prisão, é relevante compreender o magistério a partir do contexto social e das políticas que dizem respeito a essa função, posto evidenciarem facetas de precarização e desvalorização do magistério, afetando as formas como os professores realizam seu trabalho. O exercício docente se encontra submetido a questões mais amplas, ligadas às políticas públicas e ao lugar social que o professor ocupa nas sociedades contemporâneas.

Gatti (2012) aponta que o valor atribuído a determinado setor do trabalho vincula-se diretamente as suas condições de exercício, que produzem atribuições sociais de reconhecimento valorativo. Dessa forma, “não são os discursos que criam o valor social, mas sim, as situações” (GATTI, 2012, p. 91). O valor social e político atribuído à docência é relevante, pois marca as condições de seu exercício. Compreende-se aqui que as condições objetivas de trabalho dos professores estão atreladas a questões mais amplas, vinculadas à nova ordem do capitalismo. As ações, os discursos e as concepções do sistema educativo estão ligadas a aspectos como a globalização, que atingiram as esferas políticas, sociais e educacionais.

No subitem a seguir, o contexto de reformas educacionais neoliberais que atingem o magistério será brevemente apresentado a fim de se explicitar os processos de precarização da docência relevantes na construção do objeto de estudo desta pesquisa.