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A Adoção assume-se dos mais nobres e antigos institutos de alcance internacional. Fruto de um contínuo processo evolutivo no decurso do qual, às práticas adotivas, se associavam as mais diversas motivações, a Adoção visa atualmente, a proteção do superior interesse das crianças e jovens carecidos de um meio familiar saudável, ensejando conceder-lhes uma nova família capaz de suprir as necessidades à menoridade inerentes e de preencher as exigências que, pela sua natureza, esta acarreta. Dependente de uma situação de rutura total dos vínculos biológicos pelos laços de sangue estabelecidos, a Adoção almejará a integração da criança numa família que, não obstante a inexistência de consanguinidade, seja alicerçada no afeto.

Apesar de o nosso ordenamento jurídico não dispor de uma vasta tradição adotiva, potenciada pelo facto de se ter alheado deste instituto durante largos períodos de tempo, a Adoção assume-se como das matérias mais sujeitas a alterações legislativas nas últimas décadas, noticiadora de uma crescente e manifesta consciencialização social para a proteção da infância assim como de uma modernização do modelo familiar.

A Lei 143/2015, de 8 de setembro, manifestou-se na nossa ordem jurídica como corpo normativo inovador e revitalizador do instituto Adotivo, dignificando-o através da abolição da sua (antiga) modalidade restrita, e reforçando-o com a criação do novo RJPA no qual o legislador procedeu à urgente necessidade de clarificação, densificação, e consolidação do processo de adoção. De necessária referência será também a imposição do legislador quanto à definição de todos os programas, procedimentos e critérios orientadores das várias fases do processo e da intervenção das equipas técnicas – de como é exemplo o RPA - visando o sucesso do processo adotivo.

De importância nevrálgica para o sucesso do processo adotivo assim como da própria relação paterno-filial pela adoção estabelecida, serão os procedimentos de preparação da criança e dos candidatos para os desafios e exigências da Adoção, assim como a aferição da real motivação dos candidatos que deverá prender-se com o desejo de ter um filho, sob pena de não se coadunar com princípio do superior da criança que supremamente norteia todo o instituto.

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No entanto, apesar da nobre causa que a Adoção dignamente abraça, todos os anos somos assombrados por Relatórios de várias entidades que noticiam o insucesso do processo de adoção - mais concretamente, do período de transição e do período de pré- adoção - tanto como da relação adotiva judicialmente constituída.

Dos dados nacionais fornecidos pelas várias investigações realizadas quanto ao fenómeno disruptivo da Adoção, diversas foram as causas assumidas pelos candidatos, assim como pelos técnicos, como determinantes para o insucesso do processo.

A expressão devolução por nós no desenvolvimento desta dissertação utilizada, poderá não ser juridicamente vista com bons olhos, mas espelha uma realidade que os termos “disrupção” ou “dissolução”, em concreto, não definem, embora a englobem: a decisão dos adotantes ou dos candidatos à adoção (aquando do decurso do período pré- adotivo), decorrente de uma vontade a estes intrínseca, de devolver a criança adotada ou adotanda ao sistema de acolhimento.

Aos candidatos à adoção e, de forma naturalmente mais acentuada, aos adotantes - ou melhor - aos pais adotivos, caberá a recondução de todos os esforços necessários à integração da criança assim como a uma mútua vinculação afetiva, ou seja, o que é especificamente esperado por quem decide construir uma família de cunho adotivo

A devolução no decurso do período de pré-adoção assume-se possível, dado o seu caráter experimental, em vista ao apuramento da viabilidade da constituição da relação adotiva. Quando de forma injustificada (também futilmente justificada, entenda-se) – os candidatos à adoção devolvem a criança à instituição, muito provavelmente o adotando que se integrara e vinculara àquela nova família sofrerá danos, que pela sua natureza se assumem de complexa e difícil reparação. Estará em causa, portanto, uma situação de confiança pelos candidatos consolidada – da qual sobreveio um sentimento de pertença, de construção de um determinado projeto de vida familiar – mas, pelos mesmos, através da decisão de devolução, defraudada, consumando-se uma situação clara de abuso de direito, de venire contra factum proprium, especificamente.

Já a devolução de criança ou jovem adotados assume-se como violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade – direito fundamental, verdadeiro direito subjetivo pela absolutidade marcado - enquanto expressão da proteção da dignidade

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daquela pessoa humana, que se assume “única, individual e individuada, irrepetível e infungível”300.

Partindo da premissa de que a criança é dotada de uma natural fragilidade – dado se assumirem como personalidades em processo de formação – será aos pais que, em primeira linha, de forma automática, incumbirá o exercício das responsabilidades parentais, suprindo as suas específicas necessidades e propiciando o seu desenvolvimento integral. A devolução consistirá, portanto, num golpe abrupto a esse processo de desenvolvimento, de formação da personalidade: a criança vir-se-á novamente privada de um meio familiar que lhe permita desenvolver-se de uma forma saudável e harmoniosa, vir-se-á destituída de tudo o que, naquele entretanto, tenha assumido como seu – desde os afetos, às relações, aos bens materiais – e de todos os pequenos sonhos que projetara para o seu futuro.

Se a devolução no decurso do processo de adoção não provoca quaisquer efeitos jurídicos de relevância, a devolução pós decretamento da adoção, ou seja, a devolução de um filho adotivo, comporta um claro contorno prático (ou mesmo uma violação indireta) aos princípios da irrevogabilidade da relação adotiva e da irrenunciabilidade das responsabilidades parentais. Mais uma vez, à luz do superior interesse da criança, o seu retorno ao sistema de acolhimento será aceite pelas entidades institucionais competentes na medida em que, apesar de a relação paterno-filial pela adoção tecida se assumir irrevogável, a manutenção da criança no seio daquela família que, claramente não a considera parte dela – pelo desinteresse e pela nova experiência de abandono provocada – poderá comportar danos exponencialmente mais gravosos. Consequentemente, serão os pais adotivos totalmente inibidos de exercer as responsabilidades parentais mantendo a criança os seus direitos alimentícios e sucessórios.

No entanto, rejeitando a subtração dos ilícitos cometidos no âmbito das relações paterno-filiais à tutela da responsabilidade civil, verificamos a possibilidade de a devolução de criança adotada, assim como da criança adotanda (embora neste último

300 Recorrendo novamente às palavras de PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Cfr. VASCONCELOS, Pedro Manuel de M. Pais de, Direito de Personalidade, op. cit., p. 55;

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caso não se tenha judicialmente estabelecido qualquer relação) preencher todos os requisitos à responsabilidade extracontratual inerentes.

Dada a frustração do projeto de vida da criança que retorna ao sistema de acolhimento, consideramos que, tendo em conta a natureza dos danos sofridos, o dano existencial - descendente do pensamento jurídico italiano - se assume como tipologia de danos não patrimoniais, in casu, chave. Partindo da frustração da qualidade que à existência imediatamente anterior à devolução subjazia, o dano existencial espelha um “não mais poder fazer”, não mais poder seguir o curso normal da sua vida, ditando uma degradação do padrão de vida da criança na essencial e frágil fase de formação da sua personalidade. O trauma por um segundo abandono causado, as consequências nefastas na autoestima e sociabilidade da criança, a subtração de uma existência feliz, são danos que o Direito assumidamente deve repugnar e, consequentemente pleitear pela reparação.

Inserida no atual fenómeno de reforço da proteção da infância, mais concretamente, das crianças desprovidas de um meio familiar salutar, a responsabilização civil dos candidatos à adoção e dos pais adotivos que, pela devolução, lhes tenham ilícita e culposamente, causado danos, deverá ser encarada como uma medida urgente e necessária, de garantia do superior seu interesse, de combate à sua coisificação, sob pena de desvirtuamento de todo o instituto adotivo que, nobremente protege aquilo que de melhor o Mundo possui: as crianças.

Finalizando com o mais belo relato que, com esta investigação, nos deparamos: “Como com o Manuel, de cinco anos, que perguntou aos pais que o adotaram com poucos meses, depois de dar conta da gravidez do irmão: «Eu também andei na tua barriga?...». Depois de alguns momentos de hesitação, a mãe respondeu-lhe: «Não, tu andaste no coração… da mãe e do pai»”301.

Que o alicerce da Adoção seja sempre e incondicionalmente, o amor.

301 SÁ, Eduardo, A fertilização do sonho, in Abandono e Adoção, coordenação de Eduardo Sá, 3ª edição, Almedina, p. 43;

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