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Do dano – o dano existencial, em especial

4. A Responsabilidade civil pela devolução de crianças adotadas ou em processo

4.2. A Responsabilidade civil dos adotantes e candidatos à adoção pela

4.2.3. Do dano – o dano existencial, em especial

Quanto ao dano, enquanto pressuposto necessário da responsabilidade civil aquiliana, a doutrina divide-o tradicionalmente, em dano patrimonial e dano não patrimonial272.

O dano, é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar, quer sejam de natureza material, espiritual ou moral273. MENEZES CORDEIRO ensina que, um dano é patrimonial, quando a situação vantajosa prejudicada tenha natureza económica pois, se no inverso, esta se assumir de natureza moral, assumir-se-á o dano como moral ou não patrimonial274.

Estando em causa, com a devolução, a violação de bens de personalidade cuja natureza é assumidamente imaterial, os danos causados assumir-se-ão, predominantemente275, como danos não patrimoniais cuja possibilidade de ressarcibilidade, atualmente, se apresenta como uma questão, entre nós, já ultrapassada276: o Código de 1966 (de Vaz Serra) estabelece no seu artigo 496.º do C.C. uma porta aberta à indemnização de danos não patrimoniais que, “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”277. Subjacente a esta norma, acha-se a necessidade de atenuar, compensar (embora não de forma perfeita) patrimonialmente o dano não

272 Já a doutrina brasileira deu preferência a designações, menos rigorosas: danos “materiais” e danos “morais”; Cfr. LUNA, Thais de Fátima Gomes de Meneses, op. cit., p. 94;

273 VARELA, Antunes, Das obrigações em geral, op. cit., p. 598;

274 CORDEIRO, Menezes, Tratado de Direito Civil VIII, op. cit., p. 513.; Também MENEZES LEITÃO explicita que a distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais não tem a ver com a natureza do bem afetado, “mas antes com o tipo de utilidades que esse bem proporcionava e que se vieram a frustrar com a lesão”. Cfr. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, vol. I, Da constituição das obrigações, 15ª edição, Almedina, 2018, p. 333

275 Veja-se nesse sentido o que CARNEIRO DA FRADA ensina quanto à possibilidade de as lesões no património do lesado configurarem danos existenciais, Cfr. FRADA, Manuel A. Carneiro da, Nos 40 anos

do Código Civil Português – Tutela da personalidade e dano existencial, in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial, Almedina, 2008 , p. 57 a 60;

276 Como MENEZES LEITÃO denota, em sentido contrário à atribuição de indemnização por danos não patrimoniais, argumentava-se que estes danos, dada a sua natureza, não eram suscetíveis de reparação, não sendo possível compensar o sofrimento ou desgosto sofridos por alguém, caso contrário consumar- se-ia uma situação de “comercialização do sentimento” e de enriquecimento da vítima, uma vez que o seu património não fora de alguma forma afetado; e ainda, porque a fixação quantitativa da indemnização, devida à insusceptibilidade de avaliação pecuniária destes danos, seria realizada de forma completamente arbitrária; LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, op. cit., p. 534; 277 Quanto à orientação deste preceito, criticado por MENEZES CORDEIRO pela sua imprecisão, vide, CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil VIII, op. cit., p. 515 e 516;

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patrimonial sofrido afastando-se a questão da imoralidade, uma vez que “imoral é fazer comércio dos bens de ordem espiritual, não o pretender o ressarcimento dos danos que lhes sejam causados”278.

Originário do pensamento doutrinário e jurisprudencial italiano, a análise do dano existencial assume-se nevrálgica para a compreensão do dano pela devolução causado, enquanto expressão de uma crescente e assumida tutela da personalidade, convocadora de uma dimensão individual da vida - o que a faz “feliz e conseguida”, englobando até os aspetos da vida mais “comezinhos”, mas que se demonstram de uma enorme importância na vida de cada sujeito em concreto279. Assim, se poderá compreender a diversidade de lesões que este se propõe reparar280.

PAOLO CENDON explica o dano existencial como “una categoria inédita”, “come tertium genus all’interno della responsabilità civile, quale insieme ben distincto cioè sia dal tronco del danno patrimoniale, sia da quello del danno morale” 281.

Ensina CARNEIRO DA FRADA que, alicerçando-se, no nosso ordenamento jurídico, na tutela geral dispensada pelo art. 70.º do nosso C.C., o dano existencial não almeja propriamente proteger a “liberdade de realização futura ou hipotética do sujeito”, mas “compreender adequadamente o constrangimento e a perda de qualidade da sua existência presente (…). O que integra o dano existencial é a ablação da liberdade de «continuar o passado feliz e tranquilo»”282.

MASCARENHAS DE ATAÍDE considera o dano existencial como “frustração de um determinado projeto de vida” estando em causa “danos que prejudicam em termos tendencialmente permanentes, o curso normal de vida do ofendido”. O autor, na mesma linha de PAOLO CENDON considera que, o dano existencial comporta um “não mais poder fazer”, ou um “dever agir de outra forma”, relativo ao “exterior” ao tempo e ao espaço do lesado; diferenciando-se nitidamente do dano moral que essencialmente

278 VARELA, Antunes, Direito das Obrigações, op. cit., p. 604;

279 Cfr. FRADA, Manuel A. Carneiro da, Nos 40 anos do Código Civil Português (…), op. cit., p. 50; 280 Cfr. ATAÍDE, Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas, Poder paternal (…), op. cit., p. 370; FRADA, Manuel A. Carneiro da, Nos 40 anos do Código Civil Português (…), op. cit., p. 51 a 53;

281 Segundo o autor, este dano encontra-se compreendido em duas dimensões: dano existencial biológico, no qual se inserem as hipóteses de ofensa à saúde; e dano existencial não biológico, quando estão em causa bens que não a integridade psicofísica. Cfr. CENDON, Paolo, Trattato Breve dei Nuovi

Danni. Il risarcimento del danno esistenziale: aspetti civili, penali, medico legali, processual, a cura di Paolo

Cendon, vol. 1, CEDAM (Casa Editrici Dott. Antonio Milani) 2001, p. 2 e 3;

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acarreta um “sentir”, assumindo-se de natureza “interior”, à esfera da emotividade283284.

Também a jurisprudência portuguesa tem considerado e acolhido esta nova tipologia, sendo disso exemplo o recente Acórdão do STJ, no qual se considerou que: “para fixar a indemnização do «dano existencial» resultante de um acidente de viação, o julgador terá, portanto, de ponderar, consoante o caso concreto, circunstâncias variadas, que podem ir das restrições que o sujeito tem de suportar na qualidade da sua vida em virtude das lesões biológicas, à criação ou indução de dependências que afetam o exercício da sua liberdade pessoal, aos prejuízos nas suas aptidões familiares ou afectivas ou às necessidades especiais das pessoas débeis, como os idosos ou as crianças”285. E, ainda, o Acórdão – ainda da suprema instância – de 25-02-2014, no qual, devido à celebração de um negócio com má fé, o comprador, dolosamente não informado do estado real da Sociedade da qual se tornara acionista - envolta em problemas de índole judicial, fiscal e financeiros - acaba por sofrer danos para além dos patrimoniais (avultados). Considerando o dano existencial como “como aquele que afecta toda a vida relacional da pessoa lesada com a sua família e a esfera íntima da pessoa”, a pessoa lesada em causa, sofreu um dano quanto ao seu projeto de vida (agravado pelo facto de ter estabelecido residência em Portugal aquando da celebração do negócio), sendo afetada a sua tranquilidade e alegria de viver, vivendo “angustiado com as dívidas e com dificuldades de gestão de problemas fiscais, jurídicos e financeiros que não foram criados por ele e com os quais não estava a contar, com a agravante de ser forçado a estabelecer residência num país estrangeiro, onde o seu enraizamento sócio-cultural nunca será idêntico àquele de que beneficiava no seu país de origem”286.

283 Cfr. CENDON, Paolo, op. cit., p. 12; ATAÍDE, Rui Paulo Coutinho Mascarenhas de, op. cit., p. 370; 284 Quanto ao dano biológico, PAOLO CENDON considera-o um hemisfério do dano existêncial. Como o autor vinca “Il danno biológico, nell’impostazione che più si raccomanda, altro non è se non un danno esistenziale, (…). Nel caso del danno biológico vi è un evento correspondente alla lesione della salute di qualcuno (física, psichica); nell’altro caso – danno esistenziale non-biologico – ci si trova di fronte all’agressione di posizioni d’altro genere (onore, libertà di movimento, ambiente, privacy, normalità familiare, etc).”Cfr. CENDON, Paolo, op. cit., p. 10;

285 Cfr. Acórdão do STJ, de 8 de janeiro de 2019, Processo 4378/16.6T8VCT.G1.S1, relatora CATARINA

SERRA, disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0d6952bf3d15b72f8025837c005c455 e?OpenDocument&Highlight=0,dano,existencial, consultado a 07/05/2019;

286 Cfr. Acórdão do STJ, de 25 de fevereiro de 2014, Processo 287/10.0 TBMIR. S1, relatora MARIA

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No que à problemática da devolução concerne – enquanto decisão ditada por uma vontade intrínseca dos candidatos à adoção ou dos adotantes - a criança adota(n)da ou adotada que retorna ao sistema institucional, para além dos danos morais que presumivelmente será vítima, sofrerá ainda um dano existencial na medida em que este comporta uma dimensão de afirmação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, ocupando-se também de situações de criação ou exploração de debilidades em sujeitos vulneráveis287, combatendo – de entre outros factos – a propiciação de disfunções de crescimento em criança e jovens288. Neste sentido, reconhecemos a devolução como uma situação potenciadora de disfunções de crescimento na criança ou jovem adota(n)dos. A devolução posterior à integração e vinculação efetivas (não necessariamente legal) da criança ou jovem àquele núcleo familiar, acarretará, como anteriormente referimos, para além da negação a uma família - em sentido institucional e afetivo - a privação de tudo aquilo que a criança ou jovem construíra e abraçara como seu nesse entretanto: novas relações humanas e vinculações afetivas (como são exemplo as amizades travadas na nova escola, com os membros da família alargada, com os vizinhos, etc.), novos hábitos, novas rotinas, novos bens materiais, e todos os anseios que em si guardara. A estas tenebrosas consequências, deveremos ainda adicionar a possível incapacidade da criança em ter como novo projeto de vida a Adoção ou qualquer outra medida de integração familiar: seja pelo fator idade, seja pelo fator emocional que a impeça de confiar em novas relações afetivas.

Em suma, a criança ou jovem que, depois de afetivamente vinculados aos candidatos/adotantes e integrados na sua dinâmica familiar, são por estes devolvidos,

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5ed9a82a69e6b5d380257c91003a22 85?OpenDocument&Highlight=0,dano,existencial, consultado a 07/05/2019;

287 Como são exemplo as considerações por ANTONIO FRATERNALI tecidas quanto ao “L’abbandono di soggetti deboli: minori e anziani, cuja temática engloba “il diritto del minore al sviluppo armonico ed equilibrato della propria personalità”. Nesse sentido, “si configura per il minori un vero e próprio diritto all’educazione inteso com possibilità per il minore di apprendere la capacità e la conoscenza proprie di ogni citadino, per essere poi progressivamente inserito nella comunità sociale. (…) Il minore, per la maturazione della sua personalità, ancora fragile, non interamente formata, há bisogno di un ambiente idóneo, sereno, che gli assicuri adeguati stimoli affettivi, assistenziale e pedagogici”. Cfr. FRATERNALE, Antonio, L’ abandono di soggetti deboli: minori e anziani, in Trattato Breve dei Nuovi Danni – Il

risarcimento del danno esistenziale: aspetti civili, penali, medico legali, processuali, vol. II, a cura di PAOLO

CENDON, CEDAM (Casa Editrici Dott. Antonio Milani), 2001, p. 964 e 965;

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viram-se impedidos de continuar o seu passado feliz e tranquilo, de prosseguirem o seu projeto de vida, devendo por isso, ser compensados, para além dos danos de ordem moral (emocional, entendamos) que tenham lugar, quer se assumam não patrimoniais (enquanto compensação do sofrimento e angústia causados), quer patrimoniais. Pensemos, quanto a estes últimos, nos custos do acompanhamento psicológico que a criança ou jovem devolvidos consequentemente necessitarão, o conforto material que lhes foi retirado e, a oportunidade de uma aprendizagem formal de qualidade que as habilite para um futuro profissional digno289.