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4. A Responsabilidade civil pela devolução de crianças adotadas ou em processo

4.2. A Responsabilidade civil dos adotantes e candidatos à adoção pela

4.2.2. Da culpa

Como anteriormente reiterado, para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário provar que o autor tenha agido com culpa: no concernente à nossa problemática, que o(s) adotante(s) que devolveram o seu filho adotivo, tenham agido culposamente266.

Cabe, no seguimento do exposto, relembrar que, em causa, poderá estar um facto ilícito intencional ou meramente culposo, isto é, tanto o dano causado de forma dolosa como negligente poderão desencadear a obrigação de indemnizar. Na primeira hipótese o facto ilícito é intencionalmente, direta ou indiretamente, causado; já na segunda o agente prevê a possibilidade da sua produção mas, por puro desleixo, leviandade, precipitação, não crê na sua verificação267.

Acha-se, na determinação deste pressuposto, imperioso deslindar, que decisões de devolução poderão ser consideradas “injustificadas”, “culposas”.

Lançando novamente mão da investigação realizada por SYLVIE MARINHO, de 69 casos concretos de disrupção no período pré-adotivo, 58 se deveram a decisão dos candidatos à adoção em cessar a integração adotiva. De entre das razões por estes identificadas para a devolução encontram-se o comportamento da criança (exigente, externalizador, disruptivo); a incapacidade em lidar com o comportamento da criança; dificuldades de vinculação entre pai/mãe e criança e vice versa; lacunas na informação e história da criança; decorrente instabilidade dos pais e do irmão (biológico ou adotivo); conflitos entre irmãos; incapacidade da criança fazer o luto da família biológica; expetativas de uma criança mais fácil, entre outros268. Ainda a título de exemplo, leia-se o recentemente publicado Relatório Anual de Atividades do Conselho Nacional para a Adoção, referente ao ano de 2017, no qual constam como algumas das razões apontadas para a interrupção do processo de Adoção, a dificuldade dos candidatos em

BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves Miranda, Família e Responsabilidade Civil: uma relação

possível? Brevíssimo apontamento, in Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 10, nº

20, 2013, p. 75 e 76.

266 Segundo o art. 342.º, n.º 1 do C.C., caberá ao lesado, enquanto credor do direito à indemnização, provar a culpa do lesante: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

267 VARELA, Antunes, Das Obrigações em geral, op. cit., p. 571; 268 MARINHO, Sylvie, op. cit., p. 348 e 349;

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“lidar com os desafios e exigências do processo”, denotando “falta de conhecimento ou um desfasamento entre as suas expectativas, os seus recursos internos e o real perfil das crianças. Muito excecionalmente, este facto chegou a gerar castigos desproporcionados ou reações de violência”. Noutros casos verificou-se “a indisponibilidade dos candidatos para o projeto de adoção por estarem, por exemplo, demasiado centrados nas suas próprias necessidades mais do que nas da criança, ou formularem outros projetos incompatíveis, nomeadamente de natureza profissional ou pessoal, com a fase do processo que estavam a vivenciar” e ainda, a alteração da dinâmica familiar resultante da integração da criança (ou crianças, no caso das fratrias) no agregado, sendo visíveis através das “divergências manifestadas entre o casal (no caso de candidaturas conjuntas), “ou da residência de outros elementos, como os filhos biológicos”. No que toca à criança, as principais razões apontadas para a esta rutura prenderam-se com “o perfil exigente das mesmas, em situações ocasionadas pela interação entre irmãos e/ou família de origem e, também, na inexistência de reciprocidade na relação com os candidatos”269.

Embora se imponha a indispensabilidade de se analisar casuisticamente cada decisão de devolução, olhando superficialmente para os motivos elencados, dificilmente conseguiremos concebê-los como, aceitavelmente justificativos, até pelo nítido paralelismo que com as exigências da filiação natural se verifica. Pelos procedimentos de avaliação, preparação e seleção que passaram, pela sensibilização e consciencilização que continuamente foram alvo, pelo compromisso assumido decorrente do desejo de ter um filho, devem os candidatos, assim como os pais adotivos, empreender todos os esforços possíveis para sarar as feridas abertas pelo passado naquela criança, para promover e atenuar o luto da sua família biológica, assim como tornar viável a sua integração no ritmo e dinâmicas daquele novo núcleo familiar, tendo em conta todos os sujeitos que dele fazem parte e todos os outros que, embora constituindo a família alargada ou outras relações vincadamente sociais, com ele interagem, afetiva ou socialmente. Assim sendo, tanto quanto à convivência familiar pós-adotiva como quanto à decorrente do período de pré-adoção, não deverá ser admitida a invocação de motivações fúteis (e, por conseguinte, verdadeiramente culposas) em justificação da

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decisão de devolução. Deverá marcar-se a inadmissibilidade de assunção de “meias” responsabilidades – ou se assume proporcionar, efetivamente, a uma criança uma saudável e feliz família ou, então, não se assume tal responsabilidade, de todo, podendo iminentemente estar em causa um desvirtuamento de todo o processo adotivo, transformando-o num processo aleatório, de meras tentativas, num processo desumano270.

Assumimos que a determinação da existência ou não de culpa do lesante – do candidato ou pai adotivo que devolve o adota(n)do - se assemelha a uma prova diabólica na medida em que estes facilmente poderão camuflar, contornar a prova da sua culpabilidade dificultada pela natureza afetiva, emocional, personalística dos interesses em causa. No entanto, assume-se a responsabilização civil como um meio necessário e urgente para a reparação do mal causado à criança ou jovem adota(n)dos que sofrem assim um novo abandono, uma nova institucionalização, como se de uma coisa se tratassem, impedindo-se assim o seu desenvolvimento, o livre desenvolvimento da sua personalidade, cruelmente condicionado por estes “encontros e desencontros”271, vinculações e desvinculações, sonhos e desilusões.

270 No entanto, quanto à devolução de criança em processo de adoção, parece-nos que a culpa poderá ser excluída pela verificação de uma alteração das circunstâncias que inviabilizem a manutenção do processo, como a morte de um dos candidatos, quando conjunta, ou a inesperada alteração das possibilidades económicas do(s) candidato(s) que o(s) impeça totalmente de satisfazer adequadamente as necessidades do adotando, entre outras causas possivelmente justificativas à luz do superior interesse da criança consideradas. Veja-se, a título exemplificativo, no relatório supra mencionado, que, como causas da interrupção do processo de adoção se verificaram “problemas de saúde física ou psicológica, a idade ou situações de desemprego”, assumindo-se como fatores que influenciaram a impossibilidade do estabelecimento de uma relação securizante com as crianças, em respeito ao seu superior interesse destas. Cfr. Relatório Anual de Atividades 2007, op. cit., p. 20;

271 Inspirando-nos nas palavras de PAULO GUERRA, “Porque a Adoção é uma história de encontros e demasiados desencontros, na história daqueles que vão tardando em ter a sua família que os acolha”, Cfr, GUERRA, Paulo, A adoção – o segundo nascimento do ser humano, op. cit., p. 239;

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