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Conclusão: do saber como competência individual ao saber socialmente construído

À margem do sentido dominante que cultiva as práticas discursivas oficiais, vêm-se afirmando algumas perspectivas alternativas de saber que apontam para modelos de uma nova inteligibilidade das práticas, tanto das práticas didácticas, como das práticas sociais, assumindo o pressuposto de que essa inteligibilidade repousa sobre a compreensão das suas condições de produção interactiva (como, por exemplo, está suposto nas teorias de aprendizagem que sustentam o contrato didáctico (Colomb, in Houssaye, 1994), ou nas teorias do projecto educativo como suporte organizacional da escola.

Em qualquer dos casos, assume-se que o saber é um constructo (e não um objecto puramente transmissível) e, como tal, não pode prescindir da participação dos aprendentes, sendo que essa participação, supondo iniciativa própria, supõe, igualmente, a sua construção por parte de quem ensina, donde procede que a acção educativa deve compatibilizar o significante com o significado para se tornar significativa. A relação pedagógica é, então, primordialmente uma relação comu- nicacional, onde o domínio dos enunciados e a sua hipótese de apropriação como conhecimentos, está condicionado por um registo intencional de disposições para a acção que, em si própria, tem de ser partilhada para que o conhecimento vei- culado pelos enunciados discursivos possa ser transformado em conhecimento próprio (Charlot, 1997).

Esta indissociabilidade entre conhecimento e acção, que durante longo tempo permaneceu invisível e, portanto, inquestionável, pela longa estabilidade reprodu- tiva das práticas que a própria estratificação social impunha, explica hoje a surda conflitualidade latente na vida profissional dos professores, onde os problemas profissionais, que são essencialmente problemas de relação são vividos, fantas- maticamente, como um défice “culposo” de conhecimentos, como uma falha de preparação e capacitação, fantasmatização que foi sendo assumida como consti- tutiva da própria imagem actual do professor enquanto profissional, alguém que histórica e culturalmente está impedido de falhar sob pena de se negar em toda a sua dimensão (Correia e Matos, 2001).

É o que está exemplarmente expresso neste trecho duma entrevista, registada já há algum tempo:

– Digo muitas vezes não sei, mas a escola que temos não permite que digamos «não tenho a certeza, não sei, ajuda-me».

Esse sentimento defensivo agrava-se perante o confronto que se trava en- tre a definição do exercício profissional que privilegia a relação e a definição que privilegia o ensino. De facto, à medida que se aceleram os conflitos sociais por força da internacionalização crescente dos interesses político-económicos, intensificam-se os problemas de relação que se traduzem em heterogeneidade e conflitualidade social e escolar que, por sua vez, impõem estratégias profissio- nais impossíveis de prever.

Por outro lado, a desestruturação das relações sociais e produtivas, provocada pela aplicação da inteligência artificial aos contextos de trabalho, não só multiplica as interacções que, de materiais, se tornam cada vez mais simbólicas e imateriais, na medida em que o trabalho exige uma crescente mediação intelectual, como provoca a desestruturação semântica atribuída à realidade, de que resulta, con- traditoriamente, por um lado, o reforço do recurso à linguagem-máquina que é, simultaneamente, disciplina produtiva e social, imposta pelas exigências de an- tecipação do consumo, como fonte de mais valia e, por outro, multiplicação das subjectividades e dos sentidos, por força da incitação à produção de singularidades

pessoais sem as quais a circulação do consumo não se reproduz.

É, neste contexto, que o interaccionismo surge como uma instância teórica que confronta os sujeitos sociais com as suas lógicas de acção, remetendo para eles o sentido das suas práticas. Nestes termos, o interaccionismo social apresenta-se como uma via superadora da intervenção externa do Estado (prioridade à “socie-

dade civil”) e permite, por isso, que se faça a economia de pensar o político como

agência de regulação das acções, propondo a autonomia do social e do profissio- nal como uma esfera de auto-regulação.

Nesta perspectiva, Reynaud (1997, pp. 9 e sgs.) estabelece que o interaccionismo permitiu superar a velha querela que opunha individualismo e colectivismo na abor- dagem teórica da constituição da sociedade. Para isso, o interaccionismo clássico teve de reconhecer a necessidade de ultrapassar os limites ontológicos do sujeito, enquanto referido a entidades individuais que se interconstituem em situação, para admitir a existência de “quase-sujeitos” que são entidades colectivas capazes de atri- butos que se pensava estarem reservados apenas a sujeitos individuais.

Aplicada aos contextos educativos, na perspectiva dos saberes que aí são uti- lizáveis, como fora já aplicada às organizações empresariais, a configuração dos “quase-sujeitos” permite interpretar o interaccionismo como o processo que presi- de à construção do saber colectivo como um conhecimento distribuído num siste- ma de actores, o qual, enquanto tal, não precisa de ser recapitulável por cada um dos elementos do sistema para que o sistema funcione.

Esta interpretação é particularmente apta para explicar como os comporta- mentos colectivos se organizam e desenvolvem no interior de redes de interacção, cuja aprendizagem, sendo social, faz das regras ou das normas institucionalmente estabelecidas uma apropriação estratégica e já não um modelo normativo de ac- ção, como queriam o modelo clássico da decisão racional ou a teoria naturalista da acção, para a qual a prática era regulada mediante uma prévia interiorização dos valores a que as normas se reportavam (Queré, 1993).

Nestes termos, as práticas profissionais são tributárias das práticas institu- cionais e sócio-organizacionais agindo interactivamente, o que torna a formação profissional dos professores indissociável da análise da acção colectiva e da rela- ção contextual, processo a que corresponde a conhecida expressão de “formação

centrada na escola”. Constituindo um referencial simbólico bastante apelativo para

muitos profissionais de educação e ensino pelo potencial de autonomia que pro- mete, o modelo assim designado remete a definição da profissão para um espaço de cooperação imediato que é a escola enquanto organização concreta onde se desenvolve o trabalho quotidiano. Nestas condições, os saberes profissionais são indissociáveis das competências sociais, relacionais, organizacionais e técnicas e a sua produção ocorre no contexto da acção que se torna objecto de permanente reflexão individual e colectiva.

Resgatando os saberes informais (ou profanos, como José Alberto Correia gos- ta de dizer) da rotina quotidiana, libertando-os da clandestinidade onde os meca- nismos do poder institucional os têm forçado a viver, este modelo viabiliza a pers- petiva segundo a qual o trabalho é, ele mesmo, formação, abolindo dessa forma a distância entre o trabalho e a formação. Deste modo, reconhece-se aquilo que já Hegel e Marx tinham apontado: o trabalho forma, é por ele que se chega à cons- ciência de si e para si. É por aqui que é possível a reflexão, pela qual a consciência interactiva reencontra, afinal, o sentido teórico das práticas, quando a teoria é vivida e trabalhada na acção.

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