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Da política à economia: o caminho para o défice permanente de formação

Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Universidade do Porto

3. Da política à economia: o caminho para o défice permanente de formação

Com a capitalização dos saberes5, ou seja, com a incorporação dos saberes

escolares nas competências do trabalho como uma mais valia e com a consequen- te aplicação do saber escolar ao desenvolvimento económico, tanto dos países, como dos indivíduos, a escola passou a ser procurada, não já pela sua função distintiva de integração numa identidade social e cultural superior, mas pela re- presentação dos seus efeitos materiais sobre as condições de vida dos indivíduos. É a partir desta inversão radical do papel da escola, inscrita num movimento mais amplo de democratização da vida social, que a regulação clássica pelos co- nhecimentos pré-activos se torna problemática, quer porque os conhecimentos se desprendem tanto das suas referências naturalistas, como racionalistas, para admitir versões paradigmáticas que são, sobretudo, construções culturais inter- nas às comunidades científicas, quer porque, no que expressamente diz respeito à acção social, os conhecimentos estão inelutavelmente conotados com interesses relativos à natureza das acções em jogo, pelo que se torna epistemologicamente impossível transcendê-los, donde decorre que a passagem da teoria à prática está sujeita à crítica e à denúncia. É nestes termos que as ideias de progresso ou de futuro, como suporte de mudança, são assimiláveis a narrativas, isto é, a mitos racionalizados ou racionalizáveis apenas com sentido para aqueles que neles in- vestem os seus interesses, independentemente da sua natureza.

As práticas do sistema escolar que permitiram conceptualizar o saber escolar como um instrumento ou um aparelho ideológico do Estado (Althusser) ou como uma instância de reprodução do capital cultural, indispensável à manutenção dos processos de produção cognitiva, que tornasse necessária a aceitação social do que era um arbítrio cultural, prenunciam que o saber escolar perdeu o estado de

graça em que tinha vivido à sombra tutelar do Estado, situação que se agrava sob o

fogo cruzado, lançado tanto por parte dos movimentos da Educação Permanente, apostando nas teses da desescolarização, enquanto o escolar deveria integrar-se, tendencialmente, na formação ao longo da vida, como por parte das corporações industriais que denunciam, crescentemente, o défice da Escola relativamente às necessidades do mundo do trabalho.

5 Trata-se da consumação da tese da transformação da educação em capital humano, formulada, entre outros, por Schultz (1983: 181 e ss.), o qual, aliás, reconheceu, expressamente que investir no homem através da Educação representava um combate a travar no âmbito da mudança de para-

digma educacional e cultural, quando disse que “os nossos valores e crenças impedem-nos de con-

siderar os seres humanos como bens de capital (...) mas, ao não tratar explicitamente os recursos humanos como uma forma de capital, como um meio de produção produzido, como o produto de um investimento, tem-se favorecido a manutenção da noção clássica de trabalho como uma capa- cidade de realizar um trabalho manual que requer pouco conhecimento e aptidão; uma capacidade

Se as novas referências epistemológicas são ditadas, em grande medida, pela dinâmica económica e social, em boa parte determinada pelas estratégias de inci- tação à sobredominância do consumo, como eixo duma economia planetarizada que faz da ideologia da mudança a grande referência para a modernização dos sistemas educativos, a verdade é que elas se projectam na escola de forma inten- samente contraditória, já que, ao subentenderem a relação cognitiva como uma relação intersubjectiva e situacional, indissociável da experiência social e cultural, é a própria autoridade disciplinar do saber, enquanto conhecimento codificado e institucionalmente protegido, que legitimava o exercício docente na sua tripla função (cognitiva, metodológica e sócio-moral), que passa a estar em causa. Daí que a gestão dessa contradição se tenha constituído na preocupação maior dos sistemas educativos, tanto por parte dos investigadores, como dos responsáveis políticos, como das organizações representativas dos interesses profissionais.

No âmbito do movimento da profissionalização do ensino, o modelo de forma- ção que tem sido privilegiado é o que decorre duma concepção de produção do saber que não dispensa uma visão funcionalista da realidade profissional, segun- do a qual a realidade é visada atribucionalmente e não relacionalmente, isto é, a realidade é assumida em função de um conjunto de propriedades definitórias dos indivíduos a formar segundo a lógica de produtos comportamentais a obter, para o que é essencial assegurar uma formação profissional que encare os seres sociais como dotados de propriedades que sejam redutíveis a objectos teóricos cientifi- camente tratáveis, isto é, “objectos” independentes da forma e das condições em que são produzidos.

Na verdade, o objecto privilegiado pela investigação educacional que aspira a desempenhar um papel preponderante no campo da formação profissional é, ain- da, o comportamento como realidade observável, isto é, como expressão factual de um conjunto de propriedades e características assumidas como imputáveis aos indivíduos e susceptíveis de serem vazadas em variáveis controláveis e avaliáveis, cujo domínio científico se traduz em possibilidade de intervenção técnica, jurídica e administrativa.

O movimento da profissionalização do ensino, ao tentar centrar-se sobre o conteúdo funcional da profissão, na expectativa de a poder legitimar como um conjunto de actos técnicos cientificamente fundados, corresponde a uma concep- ção de saber que, objectivamente, ilude a questão da distinção entre factos e valo- res ou, para sermos mais explícitos, confunde o conteúdo normativo do discurso científico, fundado numa ordem causal, abstractamente referida a uma normati- vidade social (a ordem dos factos socialmente “convenientes” ou dominantes) com o seu sentido prático, isto é, com a sua pertinência relativamente ao vivido, onde essa normatividade, mesmo que seja desejável, não existe antes de ser construída.

Nos termos do exercício profissional do professor, o que está em causa é, en- tão, a construção do aluno, processo onde o saber é artesanal, inventivo e multi-

-modal e cujas condições de possibilidade e de exercício supõem uma implicação pessoal e social do profissional docente que releva da compreensão crítica do mundo do outro como um outro eu e não como uma duplicação do eu próprio, o que exige que o saber seja sempre uma produção concreta e singular, como diz Lerbet (1995:244).

O processo de hiperescolarização, que se acentua à medida que a escola vê multiplicadas as suas funções sociais num contexto em que se agudizam os fenó- menos da competição escolar, inviabiliza uma relação profissional que torne signi- ficativa a relação com o saber a partir da realidade do aluno. É neste contexto que a profissionalização tende a assumir a actividade profissional como um acto emi- nentemente técnico, cuja legitimidade científica fica dependente da obediência a critérios de conformidade entre objectivos e resultados superiormente definidos e não questionados.

Todavia, os limites do modelo científico-técnico relativamente às competências práticas tornam-se particularmente evidentes à medida que à Escola cabe cada vez mais participar na resolução dos problemas sociais, e não já apenas daqueles que tradicionalmente lhe estavam cometidos, como os que se prendiam com a atribuição e distribuição dos bens culturais, científicos e técnicos. O desemprego, a marginalidade, a conflitualidade social e familiar projectam-se no quotidiano das escolas, tornando problemática a construção do aluno, como figura reconhecível pela instituição escolar, a partir daqueles que são portadores de tais experiências. Esta nova realidade exige um novo relacionamento, um novo sistema de comu- nicação, ou uma nova prática profissional que não é dedutível de nenhum sistema científico-técnico. Não se trata já de, apenas, tarefas de ensino, mas de relação, isto é, tarefas que o não são tecnicamente falando, uma vez que não se trata de ac- tividades que podem ser organizadas segundo acções segmentadas, organizadas em fluxos temporalmente identificados e finalizadas sobre produtos tecnicamente controláveis. Mais do que de conhecimentos, as novas competências supõem ati- tudes, disposições, processos de envolvimento e de implicação e, portanto, uma nova profissionalidade. Numa perspectiva de formação científico-técnica, não faz sentido, por exemplo, definir como objectivo de ensino “que o professor tem de ser capaz de respeitar a identidade cultural do seu aluno”.

Na verdade, que os professores tenham de comprometer-se com os seus alunos e com a sua aprendizagem, por um lado, ou que tenham de conhecer as matérias que ensinam e o modo como ensinam estas matérias aos seus alunos, por outro, compreende-se que ambas constituam qualidades desejáveis dum bom profissional, mas não se é “obrigado” a reconhecer que há uma relação de continui- dade científica e técnica (de causalidade) entre uma coisa e outra de modo a poder sustentar-se que haja uma relação de implicação “causal” (científica) entre ambas.

Esta indistinção ou esta relação de continuidade entre o domínio das atitudes (a que pertence o compromisso ou o dever de respeitar) e que implica uma refe-

rência ao sujeito e o domínio dos saberes científicos e técnico-didácticos que im- plica uma referência ao objecto ou, se quisermos, esta indistinção entre o domínio prático e o domínio teórico traduz uma exigência-chave que condena o movimen- to da profissionalização do ensino (nos termos que tem vindo a ser prosseguido) a um logro profissional que tem sido, todavia, difícil de reconhecer, porque esse reconhecimento põe em causa uma atribuição central da identidade docente, qual é a de supor que o saber disciplinar traz inerente a si a competência prática.

Conclusão: do saber como competência individual