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Como pôde ser observado neste capítulo, o debate democrático aponta duas teorias distintas: a concepção hegemônica e a contra-hegemônica.

A primeira adota a democracia como uma forma de eleger elites para governar. Dessa maneira, o povo se reduz a um selecionador de representantes, que não deve interferir nas escolhas deste último, tendo a sua atuação restringida aos períodos eleitorais. Tal concepção está amparada em um modelo de Estado liberal que defende o ideal do “Estado mínimo”, seja na esfera política, seja na esfera econômica. Isso significa que, para o liberalismo, o Estado deve se restringir ao papel de legislar e fiscalizar para que as liberdades (econômicas e individuais/políticas) estejam asseguradas. Além disso, para o liberalismo, a democracia representativa pode se desenvolver em um contexto capitalista de crescentes desigualdades, onde a lógica de mercado impera.

Já a segunda concepção, trata da democracia como substância, ou seja, a democracia não é um simples procedimento que se resume às eleições e ao voto, ela prevê valores de justiça social e participação de todos os cidadãos nas decisões do governo. A principal característica deste tipo democrático é a incompatibilidade entre a democracia, o liberalismo e o capitalismo, ou seja, uma democracia social plena pressupõe um modelo de Estado diferente do liberalismo: o socialismo, que

não é compatível com desigualdades e injustiças sociais. Ao contrário do liberalismo, o socialismo prevê uma maior atuação estatal e um amplo controle do mercado.

É possível perceber a existência de um dilema democrático: de um lado, a democracia liberal prevê o instituto da representação pura, restringindo a participação cidadã e, de outro lado, a democracia direta defende uma ampla participação limitando a representação política.

Conforme foi visto ao longo deste capítulo, a democracia representativa é a visão democrática hegemônica e se apresenta como a única forma de democracia possível em uma sociedade complexa. A democracia participativa, por sua vez, indica uma contra-hegemonia, ou seja, uma alternativa que é pouco discutida e debatida.

Nesse sentido, o critério utilizado para definir se o modelo democrático é hegemônico ou contra-hegemônico é a forma de Estado defendida. Assim, aqueles autores que defendem o liberalismo político são considerados hegemônicos, ao passo em que, os autores que sustentam o socialismo são tidos como contra- hegemônicos. Isso por que, o liberalismo é a forma de Estado que sustenta a democracia representativa em seu sentido mais puro, enquanto o socialismo é o modelo estatal que permitiria o desenvolvimento pleno da democracia direta.

Essa divisão entre hegemonia e contra-hegemonia se torna clara pela bibliografia utilizada ao longo deste capítulo. A bibliografia hegemônica é, em sua maioria, clássica, ou seja, compreende autores conhecidos e disseminados pelo mundo acadêmico (Locke, Friedman, Schumpeter, Bobbio...). A bibliografia contra- hegemônica, em contrapartida, abrange autores secularizados e regionalizados (Moraes, Coutinho, Buonicore, Tonet...). Tal fato confere a sensação de que o conceito de democracia é dado pelos autores clássicos, o que reforça a hegemonia da representação.

Além da influência dos autores clássicos para a democracia representativa, em especial Schumpeter, que inaugurou a ideia de eleições como um método democrático, a Ciência Política como disciplina, acaba por disseminar essa visão hegemônica e afastar os casos onde a participação política ocorre de forma bem sucedida e estruturada.

Assim, não há espaço nos meios acadêmicos, para um verdadeiro debate acerca da democracia. O que ocorre é a reprodução do modelo representativo. O fato das pesquisas sobre a democracia, geralmente serem financiadas por entidades privadas, também pode justificar a tentativa de secularizar os debates democráticos que acrescentem elementos como a condição social e econômica do país analisado, ou o peso da participação popular para o processo democrático.

Geralmente, os autores elitistas argumentam que a democracia representativa deve ser mantida, ainda que apresente problemas, especialmente no caso da América Latina, pois do contrário, haveria sérios riscos do retorno a regimes autoritários. Nesse sentido, a democracia participativa não é apenas secularizada, a participação ativa dos cidadãos nas questões políticas é, na verdade, vista com um risco a estabilidade do próprio sistema democrático. Essa ideia é defendida e disseminada nos meios acadêmicos, motivo pelo qual, não há incentivo para discussão de maior participação política.

Dessa forma, justifica-se a força e manutenção da democracia representativa, mesmo em um contexto de crescente insatisfação e inviabilidade da representação política pura.

Contudo, ainda que seja a visão hegemônica, atualmente existe uma crise na representação política, baseada, principalmente, nesta insatisfação geral com a democracia e no sentimento generalizado de que os representantes não estão agindo conforme os anseios dos cidadãos. A crise da representação é, portanto, uma crise de legitimidade, na medida em que a democracia representativa vem servindo mais a interesses privados, do que ao interesse comum dos cidadãos.

Neste contexto de crise da democracia representativa, surgem os mecanismos de democracia semidireta, que foram inseridos no texto Constitucional para permitir que os cidadãos possam participar diretamente na decisão de determinados assuntos. A análise desse modelo democrático e, consequentemente, dos mecanismos de participação, será realizada no próximo capítulo.

Contudo, antes de proceder tal análise, é necessário mencionar que, para este trabalho, o que define participação política é o seu caráter vinculante na tomada de decisão, ou seja, só existirá participação quando a decisão da população for dotada de poder para influenciar os representantes. Tal critério é adotado, em

função da amplitude do termo “participação política”, que acaba aproximando governos com programas e modelos completamente diferentes.

Por fim, importa ressaltar que, ao apresentar a visão hegemônica e contra- hegemônica de democracia em suas formas mais extremas, este estudo pretende apenas, criar as condições para, posteriormente, explicar a utilização ou não dos mecanismos de participação cidadã e, em especial, do plebiscito criado pelas ECs aqui analisadas.

3 MECANISMOS DE DEMOCRACIA SEMIDIRETA NO BRASIL: INSTRUMENTOS DE PARTICIPAÇÃO CIDADÃ?

Nesta parte do estudo, é realizada uma análise sobre a democracia semidireta e os seus meios de atuação: os mecanismos de participação cidadã, mais especificamente, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, que são adotados constitucionalmente no Brasil.

Para tanto, este capítulo está dividido em três partes. De início, são abordados os mecanismos de democracia expressos na CRFB/88 e seus conceitos.

Após a revisão conceitual dos mecanismos, será observado como eles estão regulamentados no Brasil, tanto de forma constitucional, como infraconstitucional146.

Por fim, realiza-se um estudo sobre a utilização do plebiscito e do referendo em diferentes contextos, a fim de demonstrar como estes mecanismos podem funcionar na prática.

Antes de iniciar esta análise, importa referir que, uma descrição correta dos mecanismos de democracia semidireta, deve considerar dois elementos importantes: identificar como essas figuras estão inseridas na Ciência Política e verificar como o direito define tais instrumentos. Uma discussão jurídica é necessária, na medida em que plebiscito, referendo e iniciativa popular, são garantias constitucionais, não havendo como debatê-los sem considerar seu aspecto jurídico e sua regulamentação legal. Por esta razão, neste momento, faz-se necessária a utilização de uma bibliografia híbrida.