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2.2 DEMOCRACIA CONTRA-HEGEMÔNICA

2.2.3 Participação Política

A participação é definida por Lúcia Avelar como “a ação de indivíduos e grupos com o objetivo de influenciar o processo político”124.

Já Hebert Kitschelt e Philipp Rhem entendem que a participação política é “uma atividade que ocorre apesar de todos os tipos de obstáculos e preferências voltada para uma ação espontânea e autossuficiente”125.

Para esses autores, quando o modelo hegemônico de democracia é a representação política, a participação permite que se estabeleçam relações entre os

123

VITULLO, Gabriel Eduardo. Teorias da democratização e democracia na Argentina contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2007, p. 44-46.

124

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp, 2004, p. 225.

125

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 332 (tradução nossa).

cidadãos e as elites políticas, pois através desta, o povo pode pressionar as elites, para que suas principais demandas sejam atendidas.126

Este trabalho utiliza uma questão fundamental apontada por Kitschelt e Rhem127, para discutir o tema da participação política: como ela ocorre.128

Para os autores, existem três dimensões principais que permitem identificar como a participação acontece.129

A primeira refere-se ao local onde ela se desenvolve. Pode se iniciar em espaços públicos (na comunidade, na rua, na mídia, etc.), a partir da comunicação com agentes públicos ou através do envolvimento no processo eleitoral.

A segunda dimensão se relaciona com a intensidade com que essa participação acontece. Cada local onde ela ocorre envolve diferentes níveis de esforço pessoal. Para Kitschelt e Rhem o alto envolvimento dos cidadãos pressupõe compensação monetária, já que os custos da participação, em relação a tempo e dinheiro, são muito altos.130 Contudo, a participação não é motivada apenas por obtenção de benefícios pessoais, podendo envolver uma série de outros fatores.

Lúcia Avelar propõe quatro modelos que podem contribuir para explicar essa questão do envolvimento dos cidadãos com a política.131

O modelo da centralidade pressupõe que a participação social varia de acordo com a posição central do individuo, ou seja, quanto mais recursos materiais e simbólicos (como prestígio e educação), mais estímulos o indivíduo tem para participar. Nesse sentido, os indivíduos com baixa posição social e poucos recursos seriam inibidos a participar. Contudo, na prática, muitos cidadãos com posição social baixa participam ativamente da política.

126

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 332.

127

Os autores citam outras questões acerca da democracia que se referem à: por que, quem, quando e onde a participação ocorre. Contudo, este trabalho aborda apenas o tema de como a participação política ocorre, para não torná-lo exaustivo e porque este é relevante para o assunto aqui tratado, na medida em que apresenta os mecanismos de participação cidadã que permitem que a participação ocorra pela via institucional.

128

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 331.

129

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 334.

130

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 332.

131

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp, 2004, p. 229-232.

O modelo da consciência de classe, por sua vez, determina que quanto maior a consciência do cidadão em relação a sua situação, maior será sua participação. Para este modelo, a educação política seria uma possível alternativa para superar condições sociais mais baixas. Nesse sentido, quanto maior a participação, mais os cidadãos adquirem informações e se tornam, gradativamente, mais capazes de participar.

Conforme o modelo da escolha racional, os indivíduos agem racionalmente participando, desde que os benefícios da participação sejam superiores aos benefícios da não participação. Para este modelo, a questão do custo-benefício determina a existência ou não de participação. Assim, os indivíduos agem motivados pelos benefícios que podem ser adquiridos com o seu envolvimento. Contudo, os benefícios não são obrigatoriamente financeiros.

Por fim, o modelo da identidade pressupõe que os indivíduos participam buscando o reconhecimento da identidade pessoal ou coletiva. Para este modelo “a participação em ações coletivas é, em suma, uma procura por reconhecimento, própria dos indivíduos com déficit de reconhecimento”132.

É possível perceber que as razões pela qual um indivíduo participa da política são muito variadas, não se resumindo à condição econômica.

A terceira dimensão que determina como a participação ocorre, está relacionada ao grau de risco para a vida e liberdade dos participantes. O grau de risco da participação é medido, principalmente, pelo tipo de regime político adotado, ou seja, o risco de participação é menor em democracias do que em regimes autoritários, repressivos e despóticos.

Kitschelt e Rhem consideram que quem se envolve em atividades de participação normalmente o fazem a partir de uma ação coletiva e com caráter mais ou menos permanente. Nesse sentido, essa ação pode se desenvolver em grupos como movimentos sociais, grupos de interesse e partidos políticos.133

132

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp, 2004, p. 230.

133

KITSCHELT, Herbert; RHEM, Philipp. Political Participation. In: CARAMANI, D. (ed.). Comprative politics. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 333-334.

Lúcia Alvear distingue três grandes canais ou vias de participação onde esses grupos podem se desenvolver: eleitoral, corporativo e organizacional.134

O primeiro envolve qualquer participação com o processo eleitoral, conforme as regras constitucionais do país em que ocorre a eleição. Todas as atividades relacionadas ao processo eleitoral são incluídas neste aspecto, desde o voto até contribuições financeiras para os partidos. Contudo, a análise restrita a esse canal, não permite abordar outras formas de participação, que não envolvem a elite política.135

A via corporativa de participação corresponde à representação dos interesses privados no sistema político estatal. Normalmente, são ações de grupos e associações que não possuem interesse em modificar o sistema político. Assim, esse canal de participação é visto como positivo pela elite. Como nessa via, a participação ocorre por grupos que possuem comunicação com o governo, a participação é seletiva podendo contribuir para o aumento das desigualdades sociais.

O canal organizacional, por sua vez, se refere à participação popular em vias não institucionais da política, como, por exemplo, a participação de movimentos sociais.

Há ainda, outra maneira que permite que a participação ocorra: as vias institucionais da política. Neste sentido, a participação acontece a partir de mecanismos de participação que possuem previsão legal na Constituição de um país. Tais mecanismos se apresentam como uma possível resposta a representação pura e seus limites, o que será analisado no próximo capítulo.

É possível perceber, pelo que foi exposto até aqui, que o conceito de participação política é muito amplo, pois muitas ações podem ser consideradas como participativas. Tal amplitude pode acabar causando confusões conceituais e aproximando governos e políticas totalmente diferentes. Isso quer dizer que, um governo com medidas de esquerda pode ser confundido com um governo com medidas conservadoras, caso o termo seja utilizado em sentido amplo. Tal confusão

134

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp, 2004, p. 228.

135

AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antônio Octávio (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp, 2004, p. 226.

ocorre, pois qualquer tipo de envolvimento dos cidadãos em atividades políticas, ainda que não sejam capazes de exercer efetivo impacto nas decisões tomadas pelos governantes, podem ser consideradas como uma forma de incluir a população nas questões políticas.

Nesse sentido, o povo é utilizado como um ícone, ou seja, adota-se o argumento de que as decisões são tomadas em nome do povo e com o auxilio deste, mas tal afirmação não passa de retórica.136

Assim, mesmo que o povo exerça algum grau de participação, ele será considerado como um ícone, a não ser que tal participação represente verdadeiro poder dos cidadãos de influenciar nas decisões tomadas. Sobre isso, Décio Saes apresenta exemplos de participação que não são dotados de efetivo poder:

É possível, numa sociedade capitalista, que os trabalhadores de uma empresa sejam consultados sobre a conveniência da substituição de um contra-mestre brutal; no entanto, tais trabalhadores pouco poderão dizer sobre os objetivos atuais da produção, sobre o destino final do produto (mercado interno ou externo) ou sobre decisões estratégicas (como a decisão de terceirizar não apenas os serviços mas também a produção). Analogicamente, é possível que, numa municipalidade de um Estado capitalista, a comunidade seja chamada a opinar sobre dimensões relativas dos diferentes gastos em políticas sociais; todavia, a sua intervenção ocorrerá dentro dos limites fixados pela linha geral de ação administrativa

do governo local.137

É possível perceber que existem muitas formas através das quais os cidadãos podem participar na política de seu Estado, contudo, a maior parte delas é meramente simbólica, pois a participação não produz efeitos na decisão final. Dessa forma, Carlos Ayres Britto138 explica que a participação política só ocorre efetivamente, quando os cidadãos exercerem o poder político, ou seja, quando eles, de fato, influenciarem na formação da vontade do Estado.

136

MULLER, Friedrich. Quem é o povo: a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 65-73.

137

SAES, Décio Azevedo Marques de. Cidadania e capitalismo: uma crítica à concepção liberal de

cidadania. Disponível em:

<http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo9316saes.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 42.

138

BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/9/docs/doutrinaparcel_06.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 5-6.

Sherry Arnstein139 também entende que a efetiva participação só ocorre quando existe poder real para influenciar nos resultados, do contrário, ela não passará de um rito vazio, uma ilusão, que somente confere a sensação de inclusão daqueles que estão participando, mas que, na prática, não muda nada. Para a autora, portanto, “participação é a redistribuição de poder que permite aos cidadãos sem-nada, atualmente excluídos dos processos políticos e econômicos, a serem ativamente incluídos no futuro”140.

Embora a autora se refira à participação de pessoas excluídas, como pobres e negros, por exemplo, tal definição pode ser utilizada para a participação de todos os cidadãos nas questões políticas. Assim, só será considerada participação, o que efetivamente vincular os representantes do povo, ou seja, quando estes considerarem o que foi expresso pelos cidadãos para tomar suas decisões. Nesse sentido, a participação pode acabar impedindo que os políticos adotem medidas contrárias aos seus representados. No próximo capítulo, serão analisados alguns casos em que a participação da população interferiu verdadeiramente nas decisões adotadas pelos representantes.

Para demonstrar a diferença entre verdadeira participação e a participação vazia, Arnstein apresenta uma tipologia, que embora possa não incluir todas as formas participativas, permite demonstrar quando a participação é real ou ilusória. A tipologia é apresentada como uma escada, “onde cada degrau corresponde ao nível de poder do cidadão em decidir sobre os resultados”141.

Os dois primeiros degraus correspondem a formas de não-participação: a manipulação, onde as pessoas participam de determinadas reuniões, mas não possuem poder real para decidir, já que a finalidade é apenas obter seu apoio para a decisão que será tomada e; a terapia, onde, sob o pretexto de permitir o

139

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 1-3.

140

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 1.

141

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 2.

envolvimento dos cidadãos, especialistas os submetem à terapia grupal, sem poder algum de interferir nos resultados.142

O terceiro, quarto e quinto degraus representam níveis de concessão mínima do poder: a informação, que embora seja imprescindível para a efetiva participação popular, quando representa uma comunicação de mão única, sem possibilidade de troca de informações, limita a influência dos cidadãos sobre os resultados; a consulta à população que, se for utilizada sem outros mecanismos e sem a garantia de que a opinião do povo será ouvida, também ocorre em grau mínimo e produz pouco efeito e; a pacificação, que consiste em colocar alguns cidadãos em conselhos ou na direção de algum órgão importante, para garantir que a população esteja representada. Contudo, se tais cidadãos não forem legitimamente escolhidos pelos demais e não possuírem verdadeiro poder para interferir nas decisões, a participação permanece limitada.143

Por fim, o sexto, sétimo e oitavo degraus de participação, se relacionam a níveis mais efetivos de poder: a parceria, onde ocorre verdadeira redistribuição de poder, através do diálogo entre os cidadãos e os que tomam as decisões; a delegação de poder, quando os cidadãos assumem o controle de algum plano ou programa determinado e; o controle cidadão, que permite aos indivíduos, definir algumas ações e interferir de fato, nos resultados do processo.144

O importante da tipologia apresentada é observar que, só se considera participação, aqueles atos capazes de interferir nas decisões tomadas pelos representantes, ou seja, quando os cidadãos exerçam efetivo poder de decisão. Assim, a participação, para não ser vazia, requer um povo ativo, ou seja, um sujeito político real e, para isso, são necessárias instituições e mecanismos, como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.145 Contudo, como veremos nos

142

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 1-5.

143

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 6-10.

144

ARNSTEIN, Sherry R. Uma escada da participação cidadã. Disponível em:

<http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/8464/mod_resource/content/1/escada_de_participacao.pd f>. Acesso em: 14 dez. 2013, p. 10-15.

145

MULLER, Friedrich. Quem é o povo: a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 72-73.

próximos capítulos, não basta a simples garantia desses mecanismos, devem existir condições reais para a sua utilização e o resultado do seu exercício deve vincular os representantes.

Dessa forma, podemos classificar o plebiscito para privatização de empresas estatais, caso ele venha a ocorrer algum dia, como uma forma de verdadeira participação, pois a decisão do povo irá vincular os políticos, que não poderão desrespeitá-la, além de exigir um amplo debate entre representantes e a sociedade, o que poderia reconfigurar a lógica representativa e incentivar a maior inclusão da sociedade na tomada das decisões políticas. É nesse sentido que, este estudo entende a participação política, ou seja, somente aquilo que envolve o poder dos cidadãos para vincular os representantes na tomada de decisão.