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PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

3.5 Conclusões Parciais

Este capítulo apresentou a linha de investigação da mobilização do direito, dentro da qual esta tese se insere. Isto é, uma linha que tem por objetivo analisar a mobilização do direito pelos movimentos sociais, por meio da integração das teorias dos movimentos sociais com as do campo do direito.

Ao se aprofundar na teoria dos movimentos sociais e adotar seu ponto de vista, de forma contextualizada com o processo político, esta agenda de pesquisas consegue enxergar a complexidade que envolve esta interação entre a ação coletiva e a demanda por direito(s). Com isso, não incorre em reduções ou simplificações, seja

na sua concepção de movimentos sociais, seja na sua concepção a respeito do papel do direito na – e para a – luta social. Afinal, como recorda McCann (1994, p. 309): “those who identify legal discourses and institutions in general as either categorically supportive, antagonist, or irrelevant to egalitarian reform causes are bound to be overly simplistic”.

O direito é concebido, neste campo, para além de um conjunto de normas formais, como um recurso estratégico a ser mobilizado pelos atores sociais. Os atores, por sua vez, irão mobilizá-lo porque reconhecem em sua gramática um poder constitutivo. Isto é, o direito produz sentidos e significados sociais, que influenciam fortemente as relações sociais. De modo que Zemans (1983) chega a afirmar que o direito confere poder.

Além de constitutivo, o direito é um instrumento estratégico que pode ser moldado pela ação coletiva. Nesse sentido, veja-se a síntese desenvolvida por Maciel (2011, p. 100):

De um lado, o direito é constitutivo para a vida social, pois as normas jurídicas fornecem a moldura normativa e categorial que orienta a percepção dos agentes acerca das relações nas quais estão inseridos, dos seus interesses, das formas e das possibilidades de ação. De outro lado, o direito é recurso estratégico, pois as normas jurídicas são objeto de uso calculado para a consecução de interesses e de resultados práticos. As dimensões constitutiva e estratégia do direito representam dois níveis distintos de poder, mas não totalmente separados.

Assim como ele molda as relações sociais, ele também é moldado por elas. Afinal, o direito é plural, maleável e até eventualmente indeterminado, com o que a produção de discursos na esfera pública pode influenciar sua interpretação.

rights are invested with meaning by cultural practices themselves, by the repeated acts of citizens using those conventions to negotiate material relations with each other. The fact that legal conventions have no transcendent foundation should not obscure their constitutive authority as public knowledge rooted in a lived history of social engagement (MCCANN, 1994, p. 297).

Nesse sentido, esta agenda de pesquisas adota uma visão descentralizada da narrativa legal, pois ela não é somente aquilo que as cortes dizem que é, ele também é produzido pelas práticas sociais e nos discursos dos atores sociais, como os movimentos sociais.

Para tanto, para que os movimentos de fato influenciem a produção normativa, invariavelmente devem absorver o discurso jurídico. Até para saber quais normas estão sob conflito interpretativo, é indispensável e extremamente necessária esta interação entre os movimentos sociais e o direito, em nome da concretização da igualdade. E mais: “When we invoke rights, we shift the character of our demands from the status of mere ‘wants’ to that of ‘entitlement’ deserving greater respect from others” (MCCANN, 1994, p. 297). Assim, ao adotar o discurso dos direitos, tende-se a atingir a atenção da comunidade maior e das autoridades.

Com isso, os argumentos críticos que sugerem que os ativistas que usam o discurso dos direitos são ingênuos ou enganados pela ideologia dominante, tendem a ser paternalistas ou desdenhosos em relação à consciência e à capacidade de julgamento dos movimentos (MCCANN, 1994).

Finally, to criticize rights-based challenges because they are limited and insufficient is inadequate without reference to more promising alternative strategies and discourses available to citizens. In this regard, political experience suggests that wholesale assaults rooted in utopian visions and exogenously derived ideologies rarely are effective. ‘Radical’ ideas and symbols themselves are not only often philosophically problematic on their own terms, but by their very definition they tend to be alien, unfamiliar, unconnected to the ‘normal’ lives of the dispossessed (MCCANN, 1994, p. 308).

Enfim, estas premissas básicas da abordagem da mobilização do direito proporcionam a esta tese uma visão mais expansiva, sutil e complexa do papel da lei na luta política.

Inclusive para pensar o contexto brasileiro, que passa, justamente, por uma ampliação da estrutura de oportunidades jurídicas e percepção dos movimentos sociais quanto a isso, de modo que eles têm mobilizado o direito como meio para melhorar sua condição social. Conforme casos de sucesso vêm demonstrar, como as campanhas pela criação de leis (como da Lei Maria da Penha), ou o ingresso de demandas nas cortes (pelo casamento igualitário ou aborto).

Esses exemplos mostram uma abertura do espaço institucional privilegiado em ouvir a “voz” de novos atores. O que corrobora a visão de Zemans (1983) no sentido de que a mobilização do direito é uma atividade política por meio da qual a autoridade pública das normas é convertida pelos agentes em forma relevante de participação

nos sistemas democráticos, de modo que a mobilização do direito é, inclusive, uma forma de demonstrar o vigor de uma democracia, tanto quanto o voto.

4 TEORIA CRÍTICA DO DIREITO: ENTRE DOMINAÇÃO E EMANCIPAÇÃO

Como já se enunciou no capítulo anterior, a crítica tradicional do direito tende a afirmar que ele é sempre um instrumento de dominação. Este é, contudo, apenas um lado da moeda, uma vez que se pode demonstrar – a partir da “mobilização do direito” – como os movimentos sociais, ao articularem suas demandas por meio da linguagem do direito, têm conseguido produzir efeitos positivos, tais como o de escancarar injustiças na esfera pública, de modo que medidas sejam tomadas.

As questões em torno do uso do direito por parte dos discriminados socialmente e de sua legitimidade – “por que os subalternos deveriam se servir do meio que ‘garante a ordem social existente’ e tem à sua disposição as estruturas normativas que possibilitam a reprodução dos processos de dominação?” (FISCHER-LESCANO; MOLLER, 2017, p. 30) – já faziam parte das inquietações da teoria crítica do direito dos anos 1920 e 1930, desenvolvida na Escola de Frankfurt, principalmente a partir dos trabalhos de Franz Neumann e Otto Kirchheimer, os quais “descreveram a função e a instrumentalidade do direito de forma implacável” (FISCHER-LESCANO; MOLLER, 2017, p. 30).

Franz Neumann já na década de 1930 discordava do senso comum marxista segundo o qual o direito opera como mera superestrutura à serviço da dominação de classe. Em O império do direito, ele via potenciais emancipatórios no direito liberal, que surgiria com a “entrada do proletariado no parlamento” e se viabilizaria “com a racionalidade procedimental do direito liberal materializado” (RODRIGUEZ, 2006, p. 24-5). O direito, portanto, criaria a “possibilidade real de que as forças sociais possam vir a regular os rumos da sociedade, inclusive os da economia, pelo controle do processo eleitoral e pela criação de normas jurídicas” (RODRIGUEZ, 2006, p. 25).

Para Kirchheimer (1976), decisões jurídicas não se tratavam “de meras questões de cálculo, mas sim do resultado de lutas político-jurídicas” (FISCHER- LESCANO; MOLLER, 2017, p. 33). Ele desprezava, portanto, a “pobreza de espírito dos operadores jurídicos, cuja opinião seria a de que o direito não é político e que conhecer o direito objetivo seria uma tarefa da ciência pura” (FISCHER-LESCANO; MOLLER, 2017, p. 33). A partir de Kirchheimer, “pode-se demonstrar como o direito à primeira vista aplicado mecânica e tecnicamente é repolitizado em seu próprio interior” (FISCHER-LESCANO; MOLLER, 2017, p. 33).

A teoria do discurso de Jürgen Habermas incorporou estas preocupações. Enquanto Neumann descreve o direito sob o capitalismo monopolista (RODRIGUEZ, 2006), Habermas, em “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, contextualiza o direito cinquenta anos depois, já diante da crise do Estado de Bem- Estar Social europeu e o surgimento dos Estados Democráticos de Direito de fins do século XX e de fenômenos sociais outros que tornavam as sociedades mais complexas, como a globalização.

Apesar das perspectivas teóricas de ambos autores serem úteis para pensar o objeto desta tese – a mobilização dos movimentos sociais em torno ao direito e seu potencial emancipatório – este capítulo limita-se a examinar os aportes desenvolvidos por Habermas. Pretende-se, com ela, refletir a respeito da legitimidade do papel constitutivo do Direito para a emancipação social nas sociedades complexas atuais.

Este capítulo está dividido em quatro partes: na primeira (3.1), é apresentada a visão de Habermas em torno aos paradigmas do direito: liberal, social e procedimentalista. A segunda parte (3.2) aprofunda-se na teoria discursiva do direito de Habermas. Na terceira (3.3), a reflexão se volta especificamente à legitimidade do direito penal e seu papel para a emancipação social. E, por fim, na última parte (3.4), são apresentadas as conclusões parciais do capítulo.