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PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

4.2 Legitimidade do Direito pelo Caminho da Teoria Discursiva do Direito de

Habermas, para desenvolver sua teoria do direito, apoia-se na teoria do discurso. Seg`undo ele (2011), após a guinada linguística73, é possível reinterpretar a compreensão deontológica da moral em termos de uma teoria do discurso. Com isso, “o modelo do contrato é substituído por um modelo do discurso ou da deliberação: a comunidade jurídica não se constitui através de um contrato social, mas na base de um entendimento obtido através do discurso” (HABERMAS, 2011, p. 309).

Segundo a teoria do discurso, o processo democrático possibilita a livre flutuação de temas, de contribuições, de informações e de argumentos e, com isso, assegura um caráter discursivo à formação política da vontade. É por assegurar esse caráter discursivo da vontade que o processo democrático se apresenta como a única fonte da legitimidade da criação do direito.

Há duas considerações que, segundo Habermas, falam a favor do princípio da teoria do discurso: (i) do ponto de vista de uma teoria da sociedade, o direito preenche funções de integração social: “ele garante, através da estabilização de expectativas de comportamento, relações simétricas de reconhecimento recíproco entre titulares abstratos de direitos subjetivos” (HABERMAS, 2011, p. 309); (ii) do ponto de vista da teoria do direito, as ordens jurídicas modernas extraem sua legitimação da ideia de autodeterminação74, pois as pessoas devem poder se entender a qualquer momento como autoras do direito, ao qual estão submetidas como destinatárias.

O princípio do discurso, formulado por Habermas, consiste justamente nisso: “são válidas as normas de ação com as quais poderiam concordar, enquanto participantes de discursos racionais, todas as pessoas possivelmente afetadas” (HABERMAS, 2011, p. 322). É dizer, o princípio do discurso submete a validade do direito ao assentimento daqueles que, na qualidade de atingidos, tomam parte em

73 A partir de Martin Heidegger (2012) diz-se que houve uma virada linguística, mormente no universo

jurídico, porque ela deixou de ser considerada como meio entre sujeito e objeto, passando a assumir a condição de existência do intérprete, quer dizer, o intérprete é alguém inserido na linguagem. Após a virada, passou-se a entender a linguagem como um meio universal para compreender, pois pela linguagem há comunicação, interpretação e, consequentemente, compreensão. Hans-Georg Gadamer (1999) chega a afirmar que: “Todo compreender é interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do intérprete”.

74A autodeterminação dos cidadãos é dividida em: autonomia pública, uso público das liberdades

comunicativas; e autonomia privada, liberdade de arbítrio em limites garantidos juridicamente (uso privado das liberdades subjetivas).

“discursos racionais” (HABERMAS, 2012, p. 199). O caminho para se chegar ao discurso racional dá-se por meio de um procedimento democrático, o qual regula as negociações/comunicações/discursos sob o ponto de vista da imparcialidade.

Se a negociação de compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que se chegou são conformes à equidade (HABERMAS, 2012, p. 208).

Nesse sentido, o princípio do discurso assume ¾ pela via da institucionalização jurídica ¾ a figura jurídica de um princípio da democracia quando consegue atribuir a todos os atingidos igual direito à participação em processos coletivos de formação da opinião e da vontade. E, nessa medida, passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização (HABERMAS, 2012).

Ocorre que o processo democrático só promete uma racionalidade procedimental “imperfeita”, afinal não pode garantir um perfeito consenso entre os envolvidos. Com efeito, é impossível supor a produção de consensos via deliberação em sociedades tão plurais. A intenção é, nesse sentido, ultrapassar a ideia de que deliberações buscam sempre o consenso, de modo a conciliar o pluralismo e a deliberação.

Por outro lado, a racionalidade do processo democrático é “pura, “sob a premissa de que, em princípio, os participantes considerem possível haver justamente uma resposta correta também para as questões de justiça” (HABERMAS, 2002, p. 324). É que o processo democrático está instituído de tal maneira que dá direito a supor resultados racionais, sem poder, entretanto, garantir a perfeita correção dos resultados. De fato, o processo democrático “justifica a suposição de que os resultados da formação política da opinião e da vontade são racionais” (HABERMAS, 2011, p. 316).

Assim, a teoria do direito fundada no discurso entende o Estado democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais democráticos, isto é: de formas de comunicação que tornam possível a formação discursiva de uma vontade política racional, o que implica a garantia de liberdades subjetivas de ação e de reclamação (equiprimordialidade entre os direitos clássicos

da liberdade e os direitos políticos do cidadão), a qual possibilita, por seu turno, a criação legítima do direito.

É que os cidadãos, para poderem influenciar na esfera pública discursiva, devem ter sua autonomia pública assegurada, só que, para tanto, é mister que sua autonomia privada também seja plenamente assegurada, pois, como já se afirmou, ambas são co-originárias ou equiprimordiais (e, juntas, configuram a autodeterminação dos cidadãos). Esse raciocínio também se manifesta na gênese do direito vigente, pois “o direito legítimo se reproduz no fluxo do poder regulado pelo Estado de direito, que se alimenta das comunicações de uma esfera política pública” (HABERMAS, 2012, p. 146).

Gráfico 3 - Formação Legítima do Direito (macro)

Fonte: a autora.

Nota: a partir de HABERMAS (2011).

A chave da visão procedimental do direito consiste nesse complexo circular que forma sua legitimação: “Uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia cidadã de seus membros, pois ambas são co- originárias; ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se” (HABERMAS, 2011, p. 146).

A ideia é a seguinte: as condições da gênese democrática das leis iniciam nas estruturas comunicativas de uma esfera pública legada pelos meios de massa, passam, a seguir, pelas chances reais de se conseguir espaço para vozes desviantes

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PROCESSOS COMUNICACIONAIS DEMOCRÁTICOS FORMAÇÃO DISCURSIVA DA OPINIÃO E DA VONTADE AUTODETERMINA- ÇÃO DOS CIDADÃOS CRIAÇÃO LEGÍTIMA DO DIREITO

e de reclamar efetivamente direitos de participação formalmente iguais, chegando até à representação simétrica de todos os grupos relevantes, interesses e orientações axiológicas no nível das corporações parlamentares e atingindo a amplitude dos temas, argumentos e problemas, dos valores e interesses, que têm entrada nas deliberações parlamentares e que são levadas em conta na fundamentação das normas a serem decididas.

Gráfico 4 - Condições para a gênese democrática das leis (micro)

Fonte: a autora.

Nota: a partir de HABERMAS (2011).

Essa ideia da autolegislação de cidadãos não pode “ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares” (HABERMAS, 2012, p. 353). Afinal, o direito positivo não pode ser submetido simplesmente à moral. Na medida em que “discursos políticos se estendem a negociações e à generalização moral de interesses, o procedimento democrático não pode mais extrair sua força legitimadora do acordo prévio de uma comunidade ética pressuposta, e sim de si mesmo” (HABERMAS, 2012, p. 353).

É por isso que o princípio do discurso é, para Habermas, indiferente em relação à moral e ao direito e insiste em afirmar que:

a formação democrática da vontade não tira sua força legitimadora da convergência preliminar de convicções éticas consuetudinárias [concepção ética da autonomia do cidadão], e sim de pressupostos comunicativos e procedimentos, os quais permitem que, durante o

GÊNESE DEMOCRÁTICA DAS LEIS ESTRUTURAS COMUNICACIONAIS INSTITUCIONALIZADAS CHANCES REAIS DE VOZ E DE RECLAMAÇÃO REPRESENTAÇÃO SIMÉTRICA DELIBERAÇÕES PARLAMENTARES

processo deliberativo, venham à tona os melhores argumentos (HABERMAS, 2012, p. 345).

Diferente da moral, o direito serve como medium para a auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. O que não quer dizer que seus conteúdos não devam estar em harmonia com ideias morais. Ora, a vontade política de uma comunidade jurídica “é a expressão de uma forma de vida compartilhada intersubjetivamente, de situações de interesses dados e fins pragmaticamente escolhidos” (HABERMAS, 2012, p. 191).

Habermas (2012, p. 350), inclusive, chega a afirmar que: “para ser legítimo, o direito de uma comunidade jurídica concreta, normatizado politicamente, tem que estar, ao menos, em sintonia com princípios morais que pretendem validade geral, ultrapassando a própria comunidade jurídica”. Afinal de contas, “o direito não é um sistema fechado narcisicamente em si mesmo, uma vez que se alimenta da ‘eticidade democrática’ dos cidadãos e da cultura política liberal” (HABERMAS, 2012, p. 323). Dessa forma, o conteúdo moral de direitos fundamentais e de princípios do Estado de direito se explica pelo fato de que “os conteúdos das normas fundamentais do direito e da moral, às quais subjaz o mesmo princípio do discurso, se cruzam” (HABERMAS, 2012, p. 256). Essa sobreposição dos conteúdos, entretanto, não “modifica a diferenciação entre direito e moral, que se introduziu irreversivelmente no nível de fundamentação pós-convencional e sob condições do moderno pluralismo de cosmovisões” (HABERMAS, 2012, p. 256).

Enfim, para que o processo democrático de estabelecimento do direito tenha êxito, Habermas afirma que é necessário que os cidadãos “utilizem seus direitos de comunicação e de participação num sentido orientado também para o bem comum” (HABERMAS, 2012, p. 323), isto é o que ele chama de “uso público da razão”, o qual se opõe à utilização de uma razão orientada para a defesa de interesses próprios tão somente. Esse uso público da razão não pode ser imposto juridicamente, somente proposto politicamente.

Para saber se normas e valores podem encontrar o assentimento racionalmente motivado de todos os atingidos, é preciso assumir a perspectiva, intersubjetivamente ampliada da primeira pessoa plural, a qual assume em si, de modo não-coagido e não-reduzido, as perspectivas da compreensão do mundo e da autocompreensão de todos os participantes. Para uma tal assunção ideal de papeis, praticada em comum e generalizada, recomenda-se a prática da

argumentação [forma reflexiva do agir comunicativo] (HABERMAS, 2012, p. 284).

Ao se apoiar em uma teoria procedimentalista, mede-se a legitimidade de normas jurídicas pela racionalidade do processo democrático de formação da legislação, que se deve apoiar na soberania do povo. A formação política da vontade dos cidadãos é que deverá culminar em decisões sobre políticas e leis. Nesse sentido, “o legislador político só pode utilizar suas autorizações de normatização jurídica para a fundamentação de programas de leis compatíveis com o sistema de direitos e acopláveis ao corpus das leis vigentes” (HABERMAS, 2012, p. 210). Sob esse aspecto jurídico, todas as resoluções têm que ser submetidas a um exame de coerência. Pois a unidade do direito precisa ser resguardada, por razões de sua própria segurança.

A inefetividade da igualdade formal e a estigmatização da diferença, segundo Jürgen Habermas (2011), podem e devem ser superadas pelo Estado democrático de Direito, ou, em outras palavras, pelo Direito produzido no interior de um Estado democrático, a partir de um “projeto constitucional talhado segundo o formato de sociedades complexas” (HABERMAS, 2011, p. 126). Para tanto, há que se superar o paternalismo do Estado social, afinal, como insiste Habermas, os direitos só se tornam socialmente eficazes quando os atingidos são suficientemente informados e, inclusive, capazes de atualizar a proteção do direito. Isto é, os cidadãos devem ter competência para mobilizar o direito. Daí a necessidade de uma política compensatória, inclusive, de proteção jurídica, capaz de fortalecer o conhecimento do direito, a escolaridade, a representatividade política. Enfim, há a necessidade de estabelecer igualdade jurídica face às desigualdades de fato, de modo que “autonomia não pode significar desregulação, mas regulação no sentido da emancipação” (RODRIGUEZ, 2015). As pessoas só podem ser autônomas à medida que lhes seja permitido, no exercício de seus direitos civis, compreender-se como autores dos direitos aos quais devem prestar obediência.

Entende-se, assim, que o Direito possui, sim, uma potencialidade de promover mudanças e remover injustiças historicamente consolidadas. Como afirma José Reinaldo de Lima Lopes (2006, p. 32), “a mudança no direito não apenas se segue às mudanças culturais, mas ajuda a promovê-las”.

Realmente, conforme coloca Mireille Delmas-Marty (2014), a normatividade jurídica influencia as concepções da normalidade social, indicando onde está a normalidade; de modo que a regra jurídica, transmutada em padrão, em medida da

normalidade, “contribui para fazer aceitar como normais alguns comportamentos, ou, ao contrário, a desqualificar outros a partir de então considerados como anormais” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 62). É o que o Pierre Bourdieu (2002) chama de “efeito de normalização” da norma jurídica. Segundo o autor, “a instituição jurídica contribui, sem dúvida, universalmente, para impor uma representação da normalidade em relação à qual todas as práticas diferentes tendem a aparecer como desviantes, anómicas, e até mesmo anormais, patológicas” (BOURDIEU, 2006, p. 247). O sociólogo destaca, ainda, entre os efeitos propriamente simbólicos do direito, o “efeito de oficialização”, que se dá com o “reconhecimento público de normalidade que torna dizível, pensável, confessável, uma conduta até então considerada tabu (é o caso, por exemplo, das medidas que dizem respeito à homossexualidade)” (BOURDIEU, 2006, p. 247).