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PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

5.2 Os Crimes de Ódio e o Direito Penal Antidiscriminatório

5.2.3 Reflexões sobre a Legitimidade do Direito Penal Antidiscriminatório

Já se adiantou, nos tópicos anteriores, a concepção desta tese em torno à legitimidade da criminalização dos crimes de ódio ou de discriminação (inclusive os de discurso de ódio), desde que verificado o efetivo dano à dignidade dos membros de um grupo social em vulnerabilidade social e política. Este tópico irá aprofundar nesta questão que envolve a legitimidade do direito penal para intervir nesta seara, sobretudo em se tratando de crimes sem violência física, como o próprio discurso de ódio e a difamação.

Para iniciar, lança-se a seguinte questão proposta por Jeremy Waldron (2012): “Why, you may ask, would the criminal law concern itself with libel at all, in the specific

civic dignity of the members of a group stands separately from the status of their beliefs, however offensive an attack upon the prophet or even upon the Koran may see” (WALDRON, 2012, p. 123).

sense of defamation, when there was no public issue of sedition or obscenity or blasphemy? Why not leave it to private law” (WALDRON, 2012, p. 46).

A resposta está na percepção de que certas formas de difamação devam ser vistas como um verdadeiro ataque à ordem pública. Pois, por mais que, diretamente, a lei esteja procurando prevenir um ataque à dignidade e reputação de cada pessoa enquanto cidadã; indiretamente, está-se procurando proteger todos os membros do grupo social ao qual esta pessoa pertence e, com isso, preserva-se a ordem pública (democrática) e o status de cidadão aos diversos grupos sociais.122 É como diz Catharine MacKinnon (em Only Words, 1993) citada por Waldron (2012, p. 58):

We argued that group libel… promotes the disadvantage of unequal groups; … that stereotyping and stigmatization of historically disadvantaged groups through group hate propaganda shape their social image and reputation, which controls their access to opportunities more powerfully than their individual abilities ever do. Portanto, não se trata de proteger pessoas de insultos esporádicos. Trata-se de procurar assegurar, de forma sistemática, um aspecto particular da paz social e da democracia: a dignidade da inclusão e, principalmente, de sentir-se reconhecido. Ora, uma sociedade verdadeiramente democrática depende que seus membros sejam respeitados e tenham iguais condições para a interferir na esfera pública e na tomada de decisões.

Nesse ponto a lei tem um papel importante. Quanto a isso, muitos dirão que a lei não tem capacidade de proteger as pessoas de sofrerem discriminação ou de que, com elas, o ódio continuará às escondidas. Mas, como ressalta Waldron, este é justamente o ponto!

(…) we want to convey the sense that the bigots are isolated, embittered individuals, rather than permit them to contact and coordinate with one another in the enterprise of undermining the assurance that is provided in the name of society’s most fundamental principles. True, there is a cost to this: such laws may drive racists sentiment out of the marketplace of ideas into spaces where it cannot easily be engaged (WALDRON, 2012, p. 95).

122 “Perhaps if the defendant says ‘some of the members of group X are guilty of criminality’, with the

implication that it may be an unknown dozen among millions, then the injury to the dignity and reputation of members of X generally is ‘lost in the numbers’. And the disorder that such a diluted insult is likely to occasion may, by the same token, be slight or nonexistent. But that is not what happens when the libel is associated ascriptively with group membership as such” (WALDRON, 2012, p. 56).

E mais, em havendo lei, abre-se a possibilidade de as pessoas – com muito mais capilaridade e efetividade do que as instituições – se apropriarem de seu conteúdo e fazerem valer seus direitos. Neste caso, de eventualmente responder e barrar discursos de ódio, constrangendo o discursante.

Muito embora o escopo, a implementação e a eficácia das disposições sobre crimes de ódio possam variar em cada país, as leis de combate aos crimes de ódio ¾ e mais especificamente, as estruturas que vêm junto com essas leis para aumentar as penas ¾ têm um valor importante no que concerne à sua capacidade de expressar a condenação coletiva do preconceito; para enviar uma mensagem assertiva aos agressores; para transmitir uma mensagem de apoio às vítimas e às comunidades estigmatizadas; para fortalecer a confiança dos membros mais descontentes e vulneráveis socialmente nos sistemas judiciais; e para reconhecer os maiores prejuízos causados pelas agressões de ódio (CHAKRABORTI; GARLAND, 2015; WALTERS, 2014; ODIHR, 2009).

Claro está que o direito penal não é o único instrumento à disposição, tampouco o melhor para enfrentar o preconceito e a discriminação. Entretanto, abdicar dele também não parece razoável, afinal conforme desenvolvido na teoria de base, a lei possui uma importante função simbólica, e a lei penal, então, mais ainda. É a mesma conclusão a que chegou Slonimsqui (2005, p. 102):

La ley tiene una función simbólica, en cuanto transmite un mensaje a la sociedad, en el sentido de subrayar la gravedad de determinadas conductas y garantizar su prevención y/o sanción. Entonces, cuando la ley no se aplica en casos concretos, todo el mensaje se vuelve en contra, en cuanto frustra las expectativas creadas.

De qualquer forma, a produção de uma lei criminalizante não envolve uma tarefa fácil. Há sempre que se ter cuidado com restrições a liberdades, sobretudo quando a sanção é punitiva. Deve-se cuidar, enfim, para não produzir um dano maior do que o dano do discurso. Nesse sentido, pondera Waldron (2012, p. 160): “Maybe the opponent of regulation can show that this harm is greater (…) than the individual harm that accrues from hate speech. This doesn’t seem very likely, given the nature of the harms from hate speech that we have been describing”.

5.3 Conclusões Parciais

Como apontado, tanto por David Garland e José Luís Díez Ripollés quanto pelas pesquisas nacionais, os Estados passam, hoje, pela adequação das políticas criminais às transformações sociais desencadeadas pelo advento da pós- modernidade, as quais modificam a forma com que as instituições e organizações pensam o crime, a pena, a justiça e o controle.

A hipótese de Garland (2008) é de que respostas denegatórias (que negam a insuficiência do sistema penal e procuram dotar-lhe de mais soberania penal) e simbólicas (que são instrumentais, instituídas para simbolizar que algo está sendo feito, quando, na verdade, sua efetividade é bastante duvidosa para atender aos fins a que se propõe) são as mais presentes e recorrentes não só nos EUA e na Grã- Bretanha, mas em todos os países ocidentais, configurando o populismo punitivo como um tendência ocidental.

José Luis Díez Ripollés (2015) contesta essa conclusão de que há uma tendência generalizada ao populismo punitivo no mundo ocidental e propõe outro modelo de análise político-criminal. Esse modelo abandona as dimensões “punitivismo” e “moderação” e cria outras: política criminal “inclusiva socialmente” e “exclusiva socialmente”. Segundo o autor, essas categorias funcionam melhor porque o que importa, em última análise, é o efeito social gerado por uma determinada política criminal.

Note-se que um Estado pode ter uma política criminal que produza a inclusão social dos suspeitos e condenados e, por outro lado, possuir uma série de leis que criminalizem novas condutas. Dizer tão somente que esse Estado adota uma política criminal punitiva, não retrataria com fidelidade a realidade deste lugar. Da mesma forma, um Estado pode ter pouquíssimos crimes tipificados em seu ordenamento, mas, por outro lado, não respeitar garantias individuais dos cidadãos, tais como devido processo legal, presunção de inocência, entre outros.

A apresentação do estado da arte no Brasil contou com a apresentação de quatro pesquisas: a de Gazoto (2010) trabalhou com as dimensões gravosa/benéfica e concluiu que a política legislativa penal brasileira segue um cariz populista punitivo. Campos (2010) traz mais matizes à discussão das tendências político-criminais no Brasil e, assim com Cifali (2015), destaca a ambivalência da política criminal brasileira, em que coexistem leis que buscaram ampliar direitos e garantias com leis mais

punitivas. Ferreira (2017) focou no campo da execução, em que diagnosticou uma produção político-criminal desinformada, propondo, portanto, que se adote Estudo de Impacto Legislativo, como condição para a aprovação de uma lei penal.

A partir de concordâncias e divergências com as teorias supracitadas, propõe- se que as análises em torno das políticas criminais levem mais em consideração as justificativas (tanto oficiais, quanto extraoficiais) por trás da aprovação de uma lei penal, de modo a procurar quatro aspectos: (i) se a proposta decorre de um problema social concreto, (ii) com dano a um bem jurídico relevante (mormente uma violação de direitos humanos), (iii) que os demais ramos do direito não dão conta de enfrentar e que, sobretudo, (iv) decorre de mobilização por parte de atores sociais envolvidos/afetados por este problema.

A partir desta análise, defende-se que é possível distinguir o “populismo punitivo” do “realismo de esquerda”. Sendo o primeiro ilegítimo e, provavelmente, irracional; e o segundo, legítimo e racional, já que advém de um problema social real e decorre do discurso produzido pelas pessoas implicadas no conflito. No segundo, ainda, é possível encontrar um defensável efeito simbólico, na medida em que poderá ser manejado pela sociedade nos seus usos cotidianos da gramática jurídica.

Os crimes de ódio são um exemplo de conflito que ascendeu à agenda pública graças à atuação dos movimentos sociais (sobretudo os chamados identitários), que lograram mostrar que se tratava de um problema social e a denunciar os prejuízos que este problema envolve aos atingidos. A partir disso, Estados e Organizações internacionais passaram a produzir políticas públicas para o enfrentamento do problema, dentre elas, instrumentos legais foram construídos no sentido de defini-los e até criminaliza-los, conformando o chamado Direito penal antidiscriminatório.

Para verificar a legitimidade desta intervenção penal há que se verificar, ainda, a existência de dano a um bem jurídico digno de tutela (ao lado da verificação dos dados da realidade e do discurso dos movimentos sociais postulantes). Afinal, segundo o modelo de política criminal defendido nesta tese, uma lei criminalizante só terá efetividade se absorver o discurso dos afetados pela norma. Isto é, em última análise, dos movimentos sociais envolvidos, que são os que se mobilizam em torno ao tema e o conhecem com profundidade (muito maior, inclusive, do que pretensos técnicos ou especialistas).

O dano dos crimes de ódio se dá em duas ordens: tanto para a vítima direta, quanto para o grupo de pessoas que possui a mesma característica depreciada da

vítima que desencadeou a violência. Com isso, acaba, ainda, prejudicando a própria efetivação de uma sociedade verdadeiramente plural e democrática.

Afinal, como visto, os crimes de ódio possuem a capacidade de minar a autocompreensão, autonomia ou dignidade de suas vítimas, de modo que lhes obstaculize acessos iguais à esfera pública. Para isso ocorrer, entretanto, é indispensável a verificação de que se trata de uma vítima em situação de desigualdade de status real, decorrente de uma histórica exclusão social.

Caso contrário, tratar-se-á de mera ofensa a sentimentos identitários ou crenças particulares, sejam religiosas, patrióticas ou ideológicas, o que não é digno de intervenção penal, na medida em que não atentam contra o status de cidadão de alguém. Nesse sentido, bem sintetiza Alcácer Guirao (2016, p. 51):

el genotipo del discurso de odio está íntimamente ligado a la existencia de grupos vulnerables por su situación histórica de marginación, por lo que la discriminación del grupo forma parte de su núcleo de sentido como fenómeno social, mientras que la difamación no es más que un efecto reflejo de esa situación previa de marginación. [...] Se puede difamar públicamente a los dentistas, a los soldados o a los miembros de la Casa real, pero desde luego estaremos ante un hecho social de muy distinta significación que la que suele asignarse al discurso de odio.

A partir dessas premissas – existência de lesão à dignidade de grupos sociais vulneráveis político-socialmente – parece não restar dúvidas de que o Direito penal ¾ como um instrumento que só pode ser utilizado em situações excepcionais, de violações graves de direitos humanos ¾ não estará excedendo suas funções ou princípios, ao criminalizar atos de preconceito e discriminação.

PARTE II – PESQUISA: ATUAÇÃO POLÍTICO-CRIMINAL DOS MOVIMENTOS