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PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

5.2 Os Crimes de Ódio e o Direito Penal Antidiscriminatório

5.2.1 Crimes de Ódio: Traços Característicos

Não existe uma definição única e universal para “crime de ódio” ou de “discriminação”. Trata-se de um conceito em evolução, que não está adstrito a um só campo do conhecimento (HARDY; CHAKRABORTI, 2017). Pelo contrário, esta categoria envolve distintas disciplinas, comunidades e fronteiras, que passam pelos campos político, acadêmico-jurídico, criminológico e penal.

É dizer, tal como esta tese, este fenômeno se desenvolve na intersecção entre o campo político e o da justiça penal. Ele surge para responder a uma série de pressões e campanhas sociais, que demandam o combate à discriminação e ao preconceito. Adiciona-se, aí, ainda, o campo acadêmico, que, a partir de diversos campos de estudo, produz conhecimento para relatar o desenvolvimento de intervenções (eficazes ou não) em torno a este tema ao redor do mundo (Iganski, 2008105 apud HARDY; CHAKRABORTI, 2017).

Apesar desta complexidade, se procurará apresentar os traços característicos dos crimes de ódio, que vêm se consagrando nos meios político e acadêmico. Em primeiro lugar, cumpre alertar que, apesar de o termo “ódio” estar consagrado na denominação deste fenômeno, ele não é o mais acertado. Isso porque o ódio não se constitui em um elemento essencial para que alguém cometa este tipo de delito. Afinal, o ódio é um sentimento interno-subjetivo da pessoa de difícil comprovação prática. Nesse sentido, há autores que vêm utilizando outros termos, como “crimes de discriminação”, “de preconceito” ou “de hostilidade direcionada”.

Antes de enumerar as demais particularidades deste fenômeno, cumpre apresentar a estrutura conceitual proposta pela criminóloga Barbara Perry (2001, p.

10 apud HARDY; CHAKRABORTI, 2017) que, diante da diversidade de definições, tem sido adotada por muitos pesquisadores do campo:

Hate crime … involves acts of violence and intimidation, usually directed towards already stigmatised and marginalised groups. As such, it is a mechanism of power and oppression, intended to reaffirm the precarious hierarchies that characterise a given social order. It attempts to re-create simultaneously the threatened (real or imagined) hegemony of the perpetrator’s group and the ‘appropriate’ subordinate identity of the victim’s group. It is a means of marking both the Self and the Other in such a way as to re-establish their ‘proper’ relative positions, as given and reproduced by broader ideologies and patterns of social and political inequality.

Observe-se que este conceito reconhece o contexto de opressão como inerente aos delitos de discriminação, ao destacar a relação que suas condutas têm com as hierarquias sociais e o preconceito. Este aspecto é importante e voltará a aparecer nestas linhas.

Enfim, os traços característicos dos crimes de discriminação, que os diferenciam dos demais, são: (i) não se trata de um problema imóvel ou isolado, ele é histórico e culturalmente contingente; (ii) a ação discriminatória não começa ou acaba com a realização da agressão; e (iii) seus atos de violência ou intimidação não são direcionados somente à vítima individualmente, como também à comunidade à qual pertence a vítima (HARDY; CHAKRABORTI, 2017).

Da mesma forma pensa Patricia Laurenzo Copello (1996, p. 234), quando afirma que a discriminação “se caracteriza precisamente por el origen del trato desigual, porque las causas que lo producen están siempre relacionadas con ciertos caracteres diferenciales de la víctima”, que a conduzem a situações de marginalização e rechaço social. Trata-se, portanto, o crime de ódio de um mecanismo de subordinação: concebido para reforçar a superioridade percebida do autor ao mesmo tempo em que mantém a vítima no seu lugar inferior "correto" dentro da sociedade (HARDY; CHAKRABORTI, 2016).

Outros pesquisadores preferem utilizar uma definição mais simples de crimes de ódio, tal como a que o conceitua como: “atos de violência, hostilidade e intimidação direcionado a pessoas em virtude de sua identidade ou diferença percebida” (Chakraborti, Garland e Hardy, 2014). Pode-se, ainda, citar definições de fora do ambiente acadêmico, como a adotada pela “Oficina para las Instituciones Democráticas y Derechos Humanos” (ODIHR), da Organização para a Segurança e

Cooperação da Europa (OSCE, 2009), que os define como: “actos delictuosos cometidos con móviles de prejuicio” (2009, p. 16).

Já as leituras mais atentas a questões de dogmática penal põem o foco na natureza do bem jurídico afetado pelos delitos de ódio. Em verdade, são identificados dois bens jurídicos, conforme explicita o argentino Pablo Slonimsqui:

en primer lugar, existe un bien jurídico relevante digno de la protección penal, cual es la dignidad humana de la persona que se proyecta en el derecho individual a no ser discriminado por razón de su origen racial, étnico, religioso o nacional y, en segundo lugar, nos encontramos ante figuras delictivas que tutelan el orden público entendido como el normal desarrollo de la convivencia de los diferentes grupos humanos que integran una comunidad determinada, lo cual implica que los miembros de las minorías diferenciadas no sean sometidos a situaciones de tensión social motivadas por marginaciones, discriminaciones, persecuciones o ataques por un sector de la mayoría dominante (SLONIMSQUI, 2005, p. 98).

Da mesma forma, Laurenzo Copello (1996) assinala a existência de dois bens jurídicos lesionados pelo trato discriminador: “el derecho a ser tratado como un ser humano igual a los demás y el modelo de convivencia plural y multicultural del que parte nuestra Constitución106” (LAURENZO COPELLO, 1996, p. 241). De fato, segundo o Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos107 (ODIHR, 2009), os prejuízos associados aos crimes de ódio, envolvem tanto a violação de direitos humanos, como intensifica a quantidade de dano físico sofrido pela vítima individualmente, reforçando o sentimento de medo e intimidação da comunidade mais ampla à qual a vítima “pertence”.

O fato é que, independente do conceito que se queira utilizar, para caracterizar uma conduta como “crime” de preconceito, de discriminação ou de ódio, deve-se verificar nela a produção de um dano a um interesse merecedor de proteção penal. A grande dificuldade está, justamente, em distinguir as condutas que, de fato, geram dano ao bem jurídico protegido pela criminalização ao ódio, das condutas que representam meras ofensas a valores e sentimentos identitários, culturais, religiosos. Esta dificuldade se agrava quando se trata de crimes de ódio que não produzem violência física, os chamados discursos de ódio.

106 De fato, a constituição espanhola, em seu artigo 9.2, impõe aos poderes públicos promover “las

condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas”, assim como remover “los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud” (ESPAÑA, 1978).