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PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

5.1 Tendências Político-Criminais: Diagnósticos e Modelos de Análise

5.1.2 Modelo Analítico Proposto por José Luis Díez Ripollés: Dimensão

Outro pesquisador fundamental para análise de política criminal é o catedrático de Direito Penal da Universidad de Málaga e membro do “Grupo de Estudios de Política Criminal”, José Luis Díez Ripollés. Sob cuja orientação, a propósito, a autora desta tese realizou período-sanduíche no Instituto Andaluz Interuniversitario de Criminología, na Universidad de Málaga/Espanha.

Na segunda edição de seu livro “La política criminal en la encrucijada” (201583), Díez Ripollés opõe-se ao modelo analítico de Garland e propõe outra tipologia político-criminal. Díez Ripollés defende que a hipótese de Garland de que todos os países ocidentais estariam caminhando para um endurecimento generalizado do sistema penal e, consequentemente, a uma política criminal mais rigorosa, não estaria se confirmando na realidade. Ele apresenta uma série de estudos84 que demonstram que, nos países ocidentais, na verdade, conviviam e convivem modelos e tendências político-criminais distintos, inclusive contrapostos. O que corrobora com o ponto de vista adotado nesta tese; pois, de fato, a depender do

83 Versão brasileira: Versão brasileira: A política criminal na encruzilhada. Tradução de André Luis

Callegari. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

84 “Nelken (2005): 218-219; (2010): 10, 57-59; Brown, D. (2005): 29, 35-42; Hinds (2005): 59-60;

Moore/Hannah-Moffat (2005): 86-88; Meyer/O’Malley (2005): 201-203, 213-214; Roché (2007): 472, 476, 494-504, 540-545; Tonry (2007): 1-2, 38-40; Snacken (2007): 207-209; Webster/Doob (2007): 301-302; Lappi-Seppälä (2008): 313-314” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 145).

âmbito de intervenção (crimes patrimoniais ou “sexuais”, por exemplo, é natural que haja diferentes tendências no que tange à sua política criminal).

O enfoque do autor parte da análise da Europa Ocidental e procura demonstrar o grau de divergência político-criminal entre esses países e os EUA e a Grã-Bretanha, mas não é só: apesar de ter como marco analítico a Espanha, sua ideia é desenvolver uma tipologia que torne possível avaliar as políticas criminais de todos os países, sobretudo em uma perspectiva comparativa. Para tanto, inicia seu estudo com uma análise preliminar teórica a respeito das tendências político-criminais gerais, para só depois propor um estudo empírico e comparativo entre as tendências específicas adotadas pelos Estados.

Assim como Garland (2008), Díez Ripollés (2015) também identifica uma forte politização das políticas criminais nacionais. A propósito, ele destaca três fenômenos nessa direção.

O primeiro fenômeno diz respeito ao fato de que a política criminal deixou de refletir as diferenças ideológicas, por exemplo, entre direita e esquerda. Segundo o autor, “sólo restan indicios de antiguos signos distintivos, como una mayor resistencia a la estigmatización del delincuente en la izquierda, o las ocasionales reticencias de la derecha hacia intervenciones punitivas en exceso invasivas de la esfera personal” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 146). Esta tese tende a se distanciar neste ponto. É que entende ser possível encontrar diferenças importantes entre uma política criminal de direita e de esquerda, sobretudo quanto aos âmbitos da esfera social que cada um defenda que haja intervenção penal.

O segundo fenômeno está ligado com a demonstração de que a agenda político-criminal é determinada e configurada predominantemente pelos partidos políticos e não pelas autênticas demandas sociais ou, principalmente, pela realidade social a ser confrontada. Essa situação corrobora para a conclusão do autor de que na configuração da política criminal tenham mais presença decisões valorativas ou ideológicas que considerações utilitárias ou de eficácia (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015).

E o terceiro fenômeno aponta para o fato de que as práticas político-criminais estrangeiras, ou as obrigações internacionais, estão influenciando cada vez mais nas decisões nacionais sobre prevenção ou redução da delinquência, isto é, sobre a política criminal nacional. Segundo o Professor,

Los modelos extranjeros más prestigiosos, entre los que destaca para muchos países el de Estados Unidos, penetran difusamente en los centros de decisión político-criminal; esta interacción es positiva, y justifica los estudios de política criminal comparada (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 149).

Com isso, Díez Ripollés (2015) adverte para a necessidade de criação de um modelo analítico que possibilite análises rigorosas das políticas criminais nacionais, de modo a poder compará-las. Para tanto, ele elenca três pressupostos teóricos que devem ser levados em consideração em relação à política criminal: (i) a política criminal insere-se dentro do conjunto de políticas públicas; (ii) a finalidade de toda política criminal é prevenir a delinquência dentro de parâmetros socialmente aceitáveis; (iii) a colocação em prática de qualquer política criminal exige que se escolham, elaborem e implementem objetivos específicos que sejam coerentes com essa finalidade.

O modelo analítico proposto por Díez Ripollés (2015) ¾ diferentemente do proposto por Garland (2008) ¾ não gira em torno do grau de moderação punitiva das políticas criminais nacionais, toma como referência, outrossim, a capacidade do correspondente sistema penal nacional para minimizar a exclusão social dos que entram em conflito com a lei penal. Isso supõe avaliar as políticas criminais segundo suas capacidades de permitir a “adquisición, recuperación, consolidación o al menos no empeoramiento de un aceptable nivel de inclusión social de los sospechosos y los delincuentes” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 158-9).

Com isso, Díez Ripollés cria duas novas categorias para a análise político- criminal: a dimensão inclusiva e a dimensão excludente, as quais refletem aproximações contrapostas ao objetivo de prevenir a delinquência de pessoas propensas a entrar em conflito com a lei penal. Senão, vejamos:

El enfoque inclusivo pretende asegurar que el sospechoso o delincuente se encuentre, tras su contacto con los órganos de control penal, en iguales o mejores condiciones individuales y sociales para desarrollar voluntariamente una vida conforme con la ley. El enfoque exclusivo quiere garantizar que el sospechoso o delincuente se encuentre, tras su contacto con los órganos de control penal, en unas condiciones individuales y sociales en las que le resulte más difícil infringir la ley o evitar ser descubierto (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 159). Esta proposta fundamenta-se em duas hipóteses essenciais e correlacionadas: (i) a de que a manutenção de um certo nível de inclusão social de

suspeitos, apenados e ex-apenados é uma das mais eficazes estratégias para a prevenção da criminalidade; e (ii) a de que a produção ou aprofundamento da exclusão social de suspeitos, apenados e ex-apenados pelas instituições de controle penal gera maior criminalidade a médio e longo prazo (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015). Hipóteses, essas, sem dúvida, pendentes de demonstração definitiva, conforme alerta o próprio professor espanhol. Mas que poderiam ser colocadas à prova por este modelo analítico.

Poder-se-ia supor que uma política criminal inclusiva corresponderia necessariamente a uma política criminal moderada, enquanto que a excludente seria sempre mais punitiva; entretanto, o autor refuta essa hipótese, na medida em que não estão necessariamente presentes nas mesmas sociedades. É que as sociedades situadas mais próximas da ponta da inclusão do que da exclusão social, por exemplo, apesar de serem mais sensíveis à igualdade social e à proscrição de condutas vantajosas, tendem a desenvolver processos de criminalização primária de comportamentos dos setores sociais poderosos em maior medida do que as próprias políticas criminais das sociedades mais excludentes. Logo, seriam, quanto a este âmbito de intervenção penal, mais punitivas do que sociedades mais excludentes socialmente. Nesse sentido,

Sociedades consideradas muy incluyentes pueden diseñar programas de criminalización primaria muy extensivos, con la finalidad de prevenir procesos de desorganización social que pudieran amenazar su capacidad integradora. Es, sin duda, el caso de los países nórdicos respecto a su política de persecución del tráfico y consumo de drogas, y quizás esté siendo ya respecto a la persecución de la prostitución y la pornografía infantil; ello es compatible con una práctica moderada y bienestarista a la hora de aplicar las correspondientes reacciones penales (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015, p. 167-8).

A ideia do autor espanhol é construir uma linha comparativa em que, em um polo, teríamos um Estado com a política criminal mais inclusiva socialmente, e em outro polo, o Estado com a política criminal mais excludente socialmente, enquanto os demais países ficariam localizados mais para um lado ou mais para outro, a depender do grau de proximidade com um ou outro polo.

Para determinar esse grau em que os diferentes sistemas de justiça criminal se encontram, Díez Ripollés (2015) ressalta que se tem que identificar as regras e práticas punitivas e, a partir daí, desvelar que efeitos são produzidos sobre as pessoas

envolvidas, isto é, se geram inclusão ou exclusão social. Mas, para uma análise comparativa rigorosa, o autor vai além e sugere a transformação dessas regras e práticas em indicadores, o que permitirá proceder, enfim, às comparações.

Para construir essa linha tipológica, Díez Ripollés parte de duas hipóteses: a primeira diz respeito aos indicadores e a segunda, aos países que servirão de paradigma de um polo e de outro.

Quanto aos indicadores, o autor sugere nove indicadores-chave, aos quais outros indicadores estão agrupados, configurando, ao todo, vinte e cinco indicadores. Esses indicadores têm, segundo o autor, as qualidades necessárias para revelar os efeitos socialmente inclusivos ou excludentes de um sistema criminal, assim como para caracterizar comparativamente o respectivo sistema entre as dimensões contrapostas (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015).

Os vinte e cinco indicadores, agrupados em torno dos indicadores-chave, estão esquematicamente formulados na Quadro que segue:

Quadro 4 - Indicadores

Fonte: CALLEGARI; MASIERO, 2015.

Nota: A partir de Díez Ripollés (2015).

• Urbanizações fechadas • Vídeovigilância

• Proibições urbanas de acesso 1. Controle de espaços públicos

• Enfraquecimento de garantias processuais • Obstaculização ou restrição de recursos judiciais 2. Garantias penais

• Discricionariedade judicial • Leis agravadas de reincidência • Uso extensivo da prisão • Penas alternativas à prisão • Controles eletrônicos 3. Sistema de determinação da pena

e sistema de sanções

• Pena de morte • Prisão perpétua • Penas longas de prisão 4. Penas máximas

• Condições da vida na prisão • Respeito aos direitos do preso • Liberdade condicional 5. Regime penitenciário

• Internação após cumprimento da pena • Prisão preventiva

6. Internações de segurança

• Privação de direitos de participação política • Privação de outros direitos civis

• Recursos sociais acessíveis 7. Status legal e social de

delinquentes e ex-delinquentes

• Expansão e acessibilidade aos registros • Paradeiro de ex-delinquentes

8. Registros pliciais e penais

• Limite de idade

• Tratamento diferenciado ao dos adultos 9. Direito penal juvenil

A segunda hipótese do autor propõe que os dois modelos político-criminais paradigmáticos e mais opostos quanto aos seus efeitos de inclusão ou exclusão social podem ser representados, no início do século XXI, dentre os países ocidentais, pelos Estados Unidos da América (sistema federal e sistema da maioria de seus Estados federados), de um lado, e pelos países nórdicos europeus (Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia), de outro.

Nesse sentido, o sistema de controle penal americano constitui, para o autor, o modelo político-criminal ocidental mais energicamente inspirado na exclusão social dos suspeitos ou condenados (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015). Enquanto que os países nórdicos europeus são os que possuem modelo político-criminal mais decididamente focado na inclusão social dos envolvidos com o sistema penal (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015).

O que é interessante destacar nesse aspecto é que, apesar de estarem em polos contrapostos atualmente, ambos os países compartilharam, durante várias décadas da segunda metade do século XX, um mesmo modelo de intervenção penal: o ressocializador. Foi só a partir dos anos 1980 que começou a surgir essa divergência progressiva (DÍEZ RIPOLLÉS, 2015).

Daí a relevância de se proceder a um estudo comparativo, pois permite perceber com clareza empírica que as escolhas de intervenção penal não são naturais e inevitáveis, mas escolhas políticas com determinadas finalidades. Enfim, a pretensão de Díez Ripollés é fornecer uma proposta de estudo comparativo, para que se possa, a partir de investigações paralelas de aplicação do modelo analítico e tipológico proposto, medir a intensidade de inclusão social ou exclusão social operada pelas políticas criminais dos países.

5.1.3 Diagnósticos e Modelos de Análise Político-Criminal no Brasil

Quanto às pesquisas brasileiras sobre política criminal no Brasil85, destaca-se aqui quatro trabalhos: a dissertação de Marcelo da Silveira Campos, defendida no

85 “No Brasil, existe uma carência muito grande de pesquisas sobre a realidade legislativa penal, sua

formação e efeitos: nas ciências sociais, não encontrei nenhuma pesquisa empírica a respeito; no campo das ciências jurídicas, vêm-se desenvolvendo estudos sobre o que se denominou «direito penal simbólico», que teriam pertinência com o tema, mas que não são tão específicos, além de que tais pesquisas, em geral, carecem de demonstração empírica” (GAZOTO, 2010, p. 20).

Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UNICAMP, publicada sob o título: “Crime e Congresso Nacional: uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006” (2010); a tese de Luís Wanderley Gazoto, defendida no Programa de Pós- Graduação em Sociologia da UnB, sob o título “Justificativas do Congresso Nacional Brasileiro ao Rigor Penal Legislativo: O estabelecimento do populismo penal no brasil contemporâneo” (2010); a dissertação de Ana Claudia Cifali, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS, sob o título “A política criminal brasileira no governo Lula (2003-2010): diretrizes, reformas legais e impacto carcerário” (2015); e a tese de Carolina Costa Ferreira, defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB, publicada sob o título “A política criminal no processo legislativo” (2017).

A pesquisa de Gazoto (2010) consistiu na análise das leis criminais (quanto aos crimes comuns86) aprovadas após o Código Penal de 1940 até o primeiro semestre de 2009. Período em que foram identificadas 122 leis. Delas, o autor identificou que 80,3% foram mais gravosas87; 12,3%, mais benéficas88; e 7,4% têm conteúdo misto89 ou foram indiferentes90.

Ainda, Gazoto (2010) analisou os projetos de lei que tramitavam na 53º Legislatura da Câmara dos Deputados (período de 1º de janeiro de 2007 a 30 de junho de 2009), em que foram identificados 308 projetos tratando de direito penal, dos quais “cerca de 95% são para aumentar penas e incidências criminais” (GAZOTO, 2010, p. 280). Ele também analisou os projetos das 52º e 53º Legislaturas do Senado Federal (período de 1º de janeiro de 2003 a 30 de junho de 2009), em que foram identificados 172 projetos tratando de direito penal, dos quais “cerca de 97% são para aumentar penas e incidências criminais” (GAZOTO, 2010, p. 280).

86 Excetuam-se, portanto, os crimes eleitorais e militares.

87 “Foram consideradas como gravosas as leis que tipificaram novos delitos, aumentaram penas ou

restringiram direitos penais, como a liberdade provisória, a progressão do regime de cumprimento da pena etc” (GAZOTO, 2010, p. 210).

88 “Em leis benéficas se encontram aquelas que promoveram a abolição de crimes, diminuição de penas

ou o estabelecimento de beneplácitos, como novas causas extintivas de punibilidade” (GAZOTO, 2010, p. 211).

89 “No grupo das leis mistas se encontram aquelas que, concomitantemente, geraram situação de maior

gravosidade aos infratores e, em outras situações, estabeleceram benefícios” (GAZOTO, 2010, p. 211).

90 “Assim consideradas as que somente especificaram crimes, referindo-se a penas já existentes, a

Veja-se que, apesar de ele analisar as exposições dos motivos presentes nos projetos das leis91, sua classificação entre gravosa e benéfica leva em consideração tão somente a quantidade de pena e o aumento/diminuição da criminalização de condutas. Desde o ponto de vista adotado nesta tese (cujo modelo analítico para política criminal será apresentado no tópico seguinte), este tipo de análise é importante para situar a política criminal brasileira em termos gerais, mas incorre em algumas conclusões simplórias e até enganosas, quando submetido a uma reflexão mais aprofundada.

Por exemplo, em determinado momento da tese, Gazoto (2010, p. 173) apresenta um quadro (n. 7), em que compara as penas do Código Criminal do Império (1830) com o Código Penal republicano (1890) em relação a tipos-penais por ele selecionados. Dos dez crimes elencados no quadro, houve diminuição na pena de sete, e os demais se mantiveram iguais. A conclusão, portanto, é de que o Código penal republicano é mais benéfico – em comparação com o anterior. Na sequência, esses mesmos crimes tiveram suas penas modificadas pelo Código Penal de 1940, o qual, por sua vez, aumentou a pena de quase todos. Fazendo com que o autor afirmasse: “podemos concluir que o Código Penal de 1940 é a legislação penal brasileira mais rigorosa até então”. Sendo que não é bem assim, basta recordar que as modalidades de penas do Código Penal de 1940 não são mais severas que as anteriores, haja vista que havia pena de morte no Brasil, assim como de galés e de galés perpétua antes de 1940.

Esta leitura perde de vista, ainda, outras sutilezas. Senão vejamos: nestes quadros que comparam as penas, aparecem os crimes de estupro e de roubo simples, cuja comparação das respectivas penas é de interessante verificação:

Tabela 5 - Comparação entre penas: roubo simples x estupro

Crimes CP 1830 CP 1890 CP 1940

Roubo simples 1a – 8a de galés (art. 269) 2a – 8a (art. 356) 4a – 10a (art. 157)

Estupro 3a – 12a (art. 222) 1a – 6a (art. 262) 3a – 8a (art. 213) Fonte: a autora.

Nota: a partir de GAZOTO, 2010.

91 A partir do que concluiu: “as exposições dos motivos dos projetos de leis quase sempre trazem como

argumento a necessidade da repressão, sem, todavia, a apresentação de dados empíricos que possam sustentar suas posições; é comum o apelo exagerado, puramente retórico, do valor ético- moral da proteção estatal ao interesse em questão, mas sem nenhuma referência a critérios de proporcionalidade; não poucas vezes, os parlamentares deixam expresso que suas preocupações decorrem de leituras de jornais e influência da mídia, em geral” (GAZOTO, 2010).

Veja-se que é possível fazer a leitura de que, em 1830, o crime de estupro tinha maior relevância para o sistema penal do que o roubo simples; tendo-se esta relação de proteção se invertido nos anos subsequentes. Os quais, então, estariam dando maior importância para o patrimônio do que para a liberdade sexual da mulher. Por outro lado, a leitura realizada por Gazoto limita-se a enxergar uma lei benéfica quanto ao estupro, quando diminui sua pena (CP 1890), e uma mais gravosa (1940), quando a aumenta. Justificando, ainda, este aumento num apelo exagerado de ordem ético- moral. Esta tese irá discordar desta leitura, conforme o material empírico da segunda parte irá demonstrar. Adianta-se, desde já, que não se trata de moralismo, mas do crescimento da consciência coletiva em torno à uma sociedade marcada pela cultura do estupro, proporcionada principalmente a partir da mobilização dos movimentos sociais engajados com esta temática, assim como pesquisas empíricas o demonstraram.

No que diz respeito ao interesse específico desta tese (direito penal antidiscriminatório), Gazoto (2010) identificou que a maior parte das leis penais posteriores ao Código Penal de 1940 dizem respeito à criminalização ou aumento de pena de crimes que “tenham como vítima determinados segmentos da sociedade ou coletividades que a lei entende que merecem proteção especial” (GAZOTO, 2010, p. 229). É dizer, das 122 leis criminais aprovadas, 18 (14,7%) teve por tema o que o autor catalogou como “minorias, racismo, crianças, mulheres, idosos etc”.

Quando o autor analisa especificamente este âmbito de intervenção incorre – desde o ponto de vista desta tese – em novas simplificações. Por exemplo, ele afirma que a exclusão operada pela Lei Maria da Penha dos institutos (que ele chama “benefícios”) previstos na Lei nº 9.099/95 foi uma “medida ilógica, tendo em vista o sistema, pois os Juizados Especiais se constituem em um importante instrumento de pacificação social e de evitação de querelas processuais” (GAZOTO, 2010, p. 233). Acontece que, como será apresentado na segunda parte desta tese, a realidade das mulheres que denunciavam violência doméstica e eram encaminhadas ao Juizado Especial Criminal não confirma que este seria um instrumento de pacificação social; pelo contrário, conforme as feministas lograram comprovar, os casos acabavam por ser banalizados pelo sistema de justiça, que acabava resolvendo tudo em “cestas básicas”92. Sem contar que a Lei Maria da Penha desenvolveu, também, um Juizado,

92 Interessante registrar que a noção de impunidade que esta situação gerava não está

com potencial pacificador mais acentuados que os Juizados Especiais Criminais (enfim, isso é tema que será explorado na segunda parte da tese, quando da análise da Lei Maria da Penha).

Esta simplificação que se reputa aos garantistas, em geral e ao Gazoto (2010) em especial na sua apreciação do tema específico das “minorias, racismo, crianças, mulheres, idosos etc”, decorre se sua visão unilateral ao réu e desconsideração em relação ao problema social que leva ao conflito. Veja-se que quando ele aprecia a Lei nº 11.106/05, que aboliu os crimes de rapto para fins sexuais, sedução e adultério, portanto considerada “benéfica”, ele critica o fato de que:

A preocupação parlamentar não se lastreou em princípios de