• Nenhum resultado encontrado

PARTE I – MARCO TEÓRICO: TEORIA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS,

3 MOBILIZAÇÃO DO DIREITO: APROXIMAÇÃO TEÓRICO-EMPÍRICA ENTRE A

5.2 Os Crimes de Ódio e o Direito Penal Antidiscriminatório

5.2.2 Discurso de Ódio: Dano x Ofensa

Os crimes de ódio, em sua modalidade discursiva108, colocam as democracias em uma formidável encruzilhada, pois ao mesmo tempo em que envolve discursos que negam os valores democráticos (já que preconceituosos e discriminatórios) e, portanto, devem ser enfrentados; não se pode restringi-los em excesso, sob pena de negar-se a própria democracia e o direito à liberdade de expressão. Trata-se do paradoxo da tolerância enunciado por Popper109, na seguinte questão: Quanta intolerância frente aos intolerantes pode proceder uma democracia que se define tolerante? (1994 apud ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 2).

O fato é que países vem seguindo a tendência já anunciada no tópico anterior e regulamentando, também, os discursos de ódio. Nesse sentido, países como o Canadá110, a Dinamarca111, a Alemanha112, a Nova Zelândia113 e a Inglaterra114, vêm usando suas leis para restringir a liberdade de expressão. Por outro lado, outros países, como os Estados Unidos, têm mais dificuldade em intervir nesta área, em nome da proteção da liberdade de expressão. Entendimento, este, no entanto, que, como alguns julgados demonstram115, pode estar perdendo força.

108 “In fact, though the two ideas – hate speech and hate crimes – do have a distant connection, they

really raise quite different issues in our thinking about law. The idea of hate crimes is an idea that definitely does focus on motivation: it treats the harboring of certain motivations in regard to unlawful acts like assault or murder as a distinct element of crime or as an aggravating factor. But in most hate speech legislation, hatred is relevant not as the motivation of certain actions, but as a possible effect of a certain forms of speech” (WALDRON, 2012, p. 35).

109 Para quem: “si extendemos una tolerancia ilimitada incluso hacia quienes son intolerantes, si no

estamos dispuestos a defender una sociedad tolerante frente a la embestida de los intolerantes, entonces el tolerante será destruido, y con él la tolerancia misma” (POPPER, 1994, p. 512 apud ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 2).

110 “Prohibiting public statements that incite ‘hatred against any identifiable group where such incitement

is likely to lead to a breach of the peace’ (Canada)” (WALDRON, 2012, p. 8)

111 Proíbe “statements ‘by wich a group of people are threatened, derided or degraded because of their

race, colour of skin, national or ethnic background’ (Denmark)” (WALDRON, 2012, p. 8)

112 Proíbe “attacks on the ‘human dignity of others by insulting, maliciously maligning or defaming

segments of the population’ (Germany)” (WALDRON, 2012, p. 8)

113 Proíbe “‘threatening, abusive, or insulting… words likely to excite hostility against or bring into

contempt any group of persons… on the ground of the colour, race or ethnic origins of that group of persons’ (New Zealand)” (WALDRON, 2012, p. 8)

114 Proíbe “the use of ‘threatening, abusive, or insulting words or behaviour’, when these are intended

‘to stir up racial hatred’ or when ‘having regard to all the circumstances racial hatred is likely to be stirred up thereby’ (United Kingdom)” (WALDRON, 2012, p. 8).

115 Ainda que: “In 1952, the Supreme Court upheld an Illinois law prohibiting the publication or exhibition

of any writing or picture portraying the ‘depravity, criminality, unchastity, or lack of virtue of a class of citizens of any race, color, creed or religion’. The case was Beauharnais v. Illinois, and the Court

Jeremy Waldron (2012), na obra mais relevante sobre discurso de ódio116 nos últimos anos – The Harm in Hate Speech – afirma que nessa discussão em torno ao discurso de ódio é fundamental encontrar uma linha divisória entre ofensa (“offending

people”) e dano à dignidade (“Attacking their dignity”) (WALDRON, 2012). Pois este

autor defende, rompendo com a tradição norte-americana, a necessidade de restringir o exercício da liberdade de expressão no segundo caso, isto é, no caso de se atentar contra a dignidade de membros de determinados grupos sociais (group difamation).

E o discurso de ódio tem este condão de atacar a dignidade. Para enxergar isso, Waldron defende que se compreenda a forma como o discurso de ódio polui o ambiente social de uma comunidade e torna a vida de determinadas pessoas muito mais difícil. Nas suas palavras: “hate speech is both a calculated affront to the dignity

of vulnerables members of society and a calculated assault on the public good of

inclusiveness117” (WALDRON, 2012, p. 5-6).

Ressalta-se, aqui, a palavra “vulneráveis” adotada pelo autor. A apreciação de quem é esta vítima de um discurso de ódio – assim como de qualquer crime de ódio – é fundamental para sua configuração. Não é qualquer pessoa que pode ser vítima dele. Nesse sentido, Waldron defende que se encare esta questão desde o ponto de vista das pessoas que se busca “beneficiar” (ou proteger) com a garantia da regulação do discurso de ódio, tal como esta tese tem se empenhado em fazer. E continua o autor: “In a sense we are all supposed to benefit. But for the members of vulnerable

minorities, minorities who in the recent past have been hated or despised by others within the society, the assurance offers a confirmation of their membership”

(WALDRON, 2012, p. 5).

Veja-se como para ele, assim como para esta tese, é fundamental a análise conjuntural do conflito para aferir a legitimidade da criminalização. Nesse sentido,

refused an invitation on First Amendment grounds to overturn a fine of $200 imposed on the president of the White Circle League of America, who had distributed a leaflet on Chicago street corners urging people to ‘protect the white race from being mongrelized’ and terrorized by the ‘rapes, robberies, guns, knives, and marijuana of the negro” (p. 27).

116 Entendido, por ele, sinteticamente como “publications which express profound disrespect, hatred,

and vilification for the members of minority groups” (WALDRON, 2012, p. 27). Ainda, segundo a Recomendação 20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, de 30 de outubro de 1997, deve- se entender por discurso de ódio: “toda forma de expresión que difunda, incite, promueva o justifique el odio racial, la xenofobia, el antisemitismo y otras formas de odio basadas en la intolerancia, incluida la intolerancia expresada mediante el nacionalismo agresivo y el etnocentrismo, la discriminación y hostilidad contra las minorías, los inmigrantes y las personas de origen inmigrante”.

117 “An open and welcoming atmosphere in which all have the opportunity to live their lives, raise their

interessante observar a incursão que Waldron faz na história estadounidense em relação à regulamentação do discurso de ódio. Nela, ele mostra como nos primeiros anos daquela República, punia-se discursos de crítica política e religiosa118 (Sedition

Act119). Segundo ele refletiu, tal ocorria porque a República sentia-se vulnerável em

sua soberania e defendia-se com este instrumento legal. E agora, que as minorias alertam para sua vulnerabilidade e demandam o enfrentamento ao discurso de ódio, não se quer aceitar a legitimidade da demanda (WALDRON, 2012).

Nas palavras do autor:

I said earlier that prosecutions for seditious libel began to seem inappropriate when we realized that the government had become so powerful that it did not need the support of the law against the puny denunciations of the citizenry. Does that apply to vulnerable minorities? Is their status as equal citizens in the society now so well assured that they have no need of the law’s protection against the vicious slur of racist denunciation? (WALDRON, 2012, p. 30).

É a partir desta desigualdade de status que se encontrará o discurso de ódio. Se não se voltar a reflexão a este nível de análise, a diferença entre ofensa a valores e um verdadeiro dano à dignidade se diluiria, pois toda a “ofensa a símbolos o creencias de una comunidad constituiría un daño al honor o la dignidad de sus miembros" (ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 41).

Para tanto, é fundamental analisar o polo passivo e sua real vulnerabilidade social, de modo que um discurso de ódio que lhes seja direcionado tenha o condão de lhes menoscabar a dignidade, a autonomia pessoal, obstaculizando-lhe, enfim, sua participação equitativa na vida política e social.120 Enquanto que discursos que

118 Como nos seguintes casos: “In 1798 Colonel Matthew Lyon, a Republican member of Congress,

sent a letter to a newspaper with his impressions of president John Adams (…) Shortly before this letter was published, Congress had passed a Sedition Act making it an offense to bring the president or Congress into disrepute or ‘to excite against them… the hatred of the good people of the United States’. Colonel Lyon was arrested and indicted under this legislation for seditious libel” (WALDRON, 2012, p. 19). “In 1823, a man was jailed for sixty days in Massachusetts for writing an essay in the Boston Investigator that denied the existence of God (…) the judge went on to suggest that Christianity could not do its work of holding society together if it was exposed to public denunciation” (WALDRON, 2012, p. 22).

119 “The Sedition Act did not last long; it was repealed in 1801. And its abuses were so clear to a

subsequent generation that Congress in the 1840s passed bills to repay with interest the fines that Colonel Lyon and Anthony Haswell had incurred” (WALDRON, 2012, p. 23).

120 “Desde esta concepción – defendida por señaladas voces del feminismo como Katherine MacKinnon

o Caroline West, por representantes del critical race theoryo por Owen Fiss –, se afirma que los mensajes hostiles y discriminatorios, al minusvalorar la dignidad y negar el reconocimiento social de determinadas minorías, les impiden intervenir con plenitud en la deliberación pública, pues sus palabras carecerán de toda influencia social al haber sido desautorizadas con la pérdida de reputación y consideración como iguales (ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 19).

meramente afetem sentimentos morais, religiosos, ideológicos são aborrecimentos que atacam a existência mesma da pessoa.

Não é uma distinção fácil, mas é possível de ser realizada. Senão vejamos:

Quadro 6 - Dano à dignidade x ofensa a valores

Dano Ofensa

“Cuando se degradan o menosprecian gravemente las características inherentes a los

miembros del grupo y que los definen como tal grupo étnico, religioso, etc. – los negros son

monos; los judíos son una raza inferior, los homosexuales son enfermos mentales, etc. –; o

cuando se propagan mensajes que promueven la discriminación de tales grupos en atención a sus características – moros fuera, los negros no

son bienvenidos, etc. – Esos ataques reputacionales atentan contra la dignidad de las

personas” (ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 45).

“Como patriota, me indigna la quema de la bandera o la pitada al himno nacional; como

católico, me escandaliza y me irrita que el crucifijo sea sumergido en orina con pretensiones artísticaso que sea objeto de una receta culinaria en un programa televisivo; como

musulmán, me siento denigrado cuando veo reproducidas caricaturas de Mahoma, cuando se quema públicamente un Corán o cuando se

publica una novela en la que se describe a Mahoma como un ser egoísta y abyecto; etc. etc. [...] La mera negación de hechos históricos,

por más que pueda conllevar profundos sentimientos de indignación a los descendientes del Holocausto – y a toda persona, por lo demás

–, no constituye un atentado a la autonomía personal de los ciudadanos, y su represión penal” (ALCÁCER GUIRAO, 2016, p. 41-2).

Fonte: a autora.

Dignidade, para Waldron, é uma questão de status. Nesse sentido, ele vai ao encontro do que já dizia Fraser, tal como explorado no primeiro capítulo, de que os movimentos buscam uma equalização de seu status social e não a promoção de sua identidade cultural. Nas palavras do autor:

one’s status as a member of society in good standing – and it generates demands for recognition and for treatment that accords with the status. Philosophically, we may say that dignity is inherent in the human person – and so it is. But as social and legal status, it has to be established, upheld, maintained, and vindicated by society and the law (WALDRON, 2012, p. 60).

Assim, posso criticar as visões econômicas, políticas ou religiosas das pessoas, mas não posso criticar as pessoas por serem de determinada corrente econômica, política ou religiosa.121 Quando houver dúvida a respeito das intenções do discursante,

121 Assim, por exemplo: “Individuals Christians, millions of them, are entitled to protection against

defamation, including defamation as Christians. But this does not mean that any pope, saint or doctrine is to be protected … by the same token, individuals Muslims, millions of them, are entitled to protection against defamation, including defamation as Muslims. But that doesn’t mean that the prophet Muhammad is to be protected against defamation or the creedal beliefs of the group. The

Waldron (2012) defende que a interpretação penda para a liberdade. Veja-se, por exemplo, o caso do cartoon publicado em um jornal holandês, em 2005, retratando o profeta Muhammad como um homem-bomba.

Figura 1 - Cartoon

Diante desse cartoon, houve interpretações de que se tratava de uma crítica legítima ao Islã e interpretações de que se tratava de discurso de ódio contra os muçulmanos. Na dúvida, o Diretor do Ministério Público da Holanda não ingressou com ação judicial contra o jornal (WALDRON, 2012). Waldron admite que sua visão particular é de que a mensagem do cartoon é desagradável e até ofensiva, mas, como já afirmou, a ofensividade por si só não é uma boa razão para a regulação legal.